A anarquia organizada: as barricadas como o subsistema de seguranca da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca/"La anarquia organizada: las barricadas como el subsistema de seguridad de la Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca".

AutorSaavedra, Marco Estrada

"?Que puedo decirte de los seres humanos, Vitia? Me sorprenden tanto por sus buenas cualidades como por las malas. Son extraordinariamente diferentes, aunque todos conocen un identico destino. Imaginate a un grupo de gente bajo un temporal: la mayoria se afanara por guarecerse de la lluvia, pero eso no significa que todos sean iguales. Incluso en esta tesitura cada cual se protege de la lluvia a su manera..." Vasili Grossman Introducao

Seguindo o que era feito por um pouco mais de duas decadas em Oaxaca, os professores membros da 22a Secao do Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Educacao (SNTE) iniciaram seu ciclo de mobilizacoes no 1 de maio de 2006 a fim de demandar melhorias salariais e trabalhistas de diferentes ordens perante o governo de Oaxaca. A negociacao entre os professores e o governo mostrou-se especialmente dificil naquele ano. Como forma de pressao, 70 mil professores decidiram estabelecer no dia 22 daquele mesmo mes um "plantao" na praca principal da cidade ate que suas reivindicacoes fossem plenamente aceitas. Dado que nenhuma das partes cedia em suas demandas, o dialogo deixou de ser possivel. A cidade foi praticamente paralisada pelos docentes. Em resposta, as autoridades estaduais decidiram pela desocupacao violenta da praca principal na madrugada do dia 14 de junho de 2006. Os professores resistiram a policia e, com o apoio de uma parte significativa dos cidadaos de Oaxaca, conseguiram recuperar a praca principal. Tres dias depois, uma impressionante coalizao liderada pelo grupo de professores e formada por organizacoes sociais e politicas de diferentes matizes ideologicos decide constituir aquela que seria conhecida como a Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca. Seu objetivo principal era a renuncia imediata do governador Ulises Ruiz Ortiz.

O conflito alcancou tamanha dimensao que, de fato, foi atingido um estado de ingovernabilidade em Oaxaca, ja que o governador, os juizes e deputados estaduais nao puderam exercer suas funcoes governamentais, judiciais e legislativas. Todos os edificios e reparticoes publicas estaduais e federais foram ocupados e fechados pelos apoiadores da APPO. Os policiais nao se atreviam a aparecer uniformizados na rua; as escolas publicas fecharam; os estudantes iniciaram uma greve de solidariedade. Durante esses dias, era comum observar na cidade manifestacoes massivas contra Ulises Ruiz. Obviamente, tambem havia alguns conflitos e enfrentamentos entre os apoiadores da APPO e do governo. Foi neste contexto que, a partir da terceira semana de agosto, surgiram entre 500 e 2000 barricadas na cidade visando a protecao dos appistas (1) contra a crescente violencia policial.

Talvez uma sucinta narracao seja a maneira mais adequada de introduzir o ambiente que se vivia em Oaxaca no outono de 2006 e compreender, dessa forma, o que foram as barricadas.

Disseminando sua luz amarelada e viva em uma noite negra de setembro, varias fogueiras, distribuidas com certo cuidado no quadrante de algum cruzeiro da unidade habitacional Ricardo Flores Magon, na capital de Oaxaca, sao alimentadas por um par de mulheres com pedacos de arbustos secos, madeira, papel e residuos. Em seguida, os barricaderos (2) se reunem ao redor [das fogueiras] para receber seu calor agradavel. E uma madrugada fria. Homens e mulheres se ajuntam em pequenas rodas, um tanto dispersos para conversar, matar o tempo e despertar tomando uma bebida quente acompanhada de algum refresco. Somente algumas poucas pessoas transitam com certa pressa pelas ruas desertas e mal iluminadas. Os barricaderos vigiam todo o movimento, em especial dos automoveis que se aproximam. Quando isso acontece, a expressao em seus rostos muda; a preocupacao e perceptivel em seus olhares ansiosos. Seus corpos, antes relaxados, se colocam em alerta. Sem trocar palavras, as pessoas buscam instintivamente se aproximar como uma forma de evitar algum problema. O automovel em questao, neste caso um taxi, vira algumas ruas antes a esquerda e desaparece do campo visual das pessoas. Os barricaderos voltam a ficar tranquilos, as conversas sao retomadas e alguns comecam a realimentar as chamas, muito mais com o intuito de esticar as pernas e vencer o sono. Os caes latem e La Ley Del Pueblo, a radio ocupada pela Assembleia Popular de los Pueblos de Oaxaca (APPO), intercala em sua programacao musica e informacao sobre a situacao em diferentes pontos da cidade. Alguns escutam com atencao; outros, ao inves disso, leem, concentrados, livros e jornais. A rua esta cheia de lixo, o que da a cena um ar triste e desolado. Pedras, vigas de madeiras, fogueiras e alguns sacos bloqueiam a passagem. No mesmo pavimento e possivel ler pichacoes como "Fora URO". (3) Uma faixa pendurada em dois postes de luz contem a inscricao "Cidadaos organizados contra a delinquencia e o mal governo. Fora URO !! ". Com lanternas, um pequeno grupo de homens e mulheres se dirigem para realizar uma ronda e garantir que tudo se mantenha em ordem. As conversas se transformam em cochichos; o silencio se apodera da noite (4).

Momentos como este se repetirao, noites apos noites, em centenas, se nao em milhares de ruas de uma cidade que, no verao e outono de 2006, parecia um campo de batalha em que se encenava um tipo de guerra civil entre os apoiadores da APPO e o governo estadual.

E possivel que devido a proximidade temporal que ainda existe com o conflito social e politico que se viveu em Oaxaca, e cujas influentes reverberacoes persistem ate hoje, nao se tenha alcancado a distancia intelectual e emocional necessaria para compreender e explicar a constituicao, organizacao e mobilizacao de protesto da APPO. Ao menos isso responderia o porque a producao cientifica a respeito tem sido exigua desde o termino dos acontecimentos (5). Alem disso, e preciso considerar o fato de que, depois da repressao massiva no final de novembro daquele ano que continuou de maneira mais localizada nos meses subsequentes, os protagonistas tem preferido, por razoes de seguranca, de sofrimento e de trauma da experiencia, silenciar e reservar suas opinioes, testemunhos e reflexoes para tempos menos nefastos. Previsivelmente, tem predominado ate este momento as publicacoes periodicas, testemunhais, de partidos e de denuncia de violacao aos direitos humanos (Osorno, 2007; Martinez Vasquez, 2007; Beas Torres, 2007; Garriaca, 2008; Denham et AL, 2008; CCIODH, 2008; y Sotelo MArban, 2008), assim como uma notavel producao documental sobre a mobilizacao das mulheres que formaram a Organizacao de Mulheres de Oaxaca (Mal de Ojo y Contraimagen, 2007), as origens, desenvolvimento e consequencias do conflito (Freidberg, 2007 e Coladangelo, 2009), a criacao musical dos mobilizados (Law, 2008), a participacao de midias alternativas (Videohachers e Indymedia, 2007), os coletivos de artistas urbanos e a producao grafica de protesto (Garduno e Salsido, 2008 e Mal de ojo s/f), a repressao subgovernamental (Mal de Ojo e Comite de Libertacion 25 de noviembre, 2007) e, obviamente, as barricadas (Ballesteros, 2007). Tambem contamos com uma compilacao fotografica que retrata o ambiente de indignacao e violencia desses meses na antiga Antequera (Leyva, 2008). E certo que nenhuma dessas obras contem pretensoes de analise cientifica-social, contudo o material reunido e muito rico em materia de informacao, imagens e audio, resultando, sem a menor duvida, numa fonte primaria fundamental para o estudo do que se conheceria como "A comuna de Oaxaca" (6). Consequentemente, o que e preciso fazer e iniciar um trabalho de analise sociologico para compreender e explicar as causas e consequencias da mobilizacao contestatoria dos appistas.

Neste artigo, desejo trabalhar um dos fenomenos sociologicos mais singulares do conflito oaxaquenho: as barricadas. Para isso, I) descreverei brevemente o marco teorico-metodologico utilizado para, posteriormente, II) explicar as funcoes das barricadas para a reproducao da APPO como sistema de protesto, III) descrever sua forma e IV) dar conta de sua organizacao interna. Em seguida, V) me ocuparei tanto de sua capacidade de criar distincoes espaciais e identitarias, VI) como de seu projeto politico e a utopia social surgidos das experiencia dos barricaderos. Finalmente, VII) tratarei das relacoes sistemicas entre a APPO e as barricas e VIII) as tensoes existentes entre ambas. (7)

I

Em termos teoricos e metodologicos, concebo a APPO nao como um movimento social, mas como um "sistema de protesto". Esta e uma forma especial dos sistemas sociais (8) que se caracteriza por uma constituicao e producao que se da mediante comunicacoes orientadas ao conflito. Estas comunicacoes se expressam tematicamente como mobilizacoes de protesto contra diferentes oponentes (como o governo, as organizacoes eclesiasticas, as empresas, os meios de comunicacao) ou contra consequencias nao previstas oriundas da operacao dos sistemas funcionais da sociedade (como a politica, o direito, a economia, a ciencia ou a arte) (9).

A complexidade de um sistema de protesto pode ser apreendida pela distincao de diferentes niveis de analise. Com efeito, mediante a diferenciacao sistema/ambiente e possivel observar qualquer sistema de protesto tanto em seus elementos, processos, funcoes e estruturas internas como tambem em suas comunicacoes externas, interpenetracoes e acoplamentos estruturais com outros sistemas sociais (incluindo os sistemas funcionais) de seu ambiente. Esta distincao fundamental se complementa com outras tres mais: a interacao, a organizacao e a sociedade (10). Enquanto que a ultima, compreendida analiticamente, pertence ao ambiente do sistema de protesto, as primeiras duas distincoes estao ligadas a sua constituicao interna. Em outras palavras, os participantes no sistema de protesto podem ser observados 1) seja em suas interacoes cotidianas em seus respectivos meios sociais ou mundos de vida, 2) como membros da organizacao sistemica a partir de seus diferentes papeis, posicoes de autoridade e relacoes de poder...

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