Anarquismo e não-dominação

AutorRuth Kinna, Alex Prichard; Peterson Roberto da Silva
CargoDoutora em política pela Universidade de Oxford, Ruth Kinna é professora de teoria política no Departamento de Política, História e Relações Internacionais da Loughborough University
Páginas156-190
DOI: https://doi.org/10.5007/2175-7984.2021.e77729
156156 – 190
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Anarquismo e não dominação1-2
Ruth Kinna
Alex Prichard3
Resumo
Neste artigo recuperamos temas republicanos, como não dominação, tirania e escravidão, no anar-
quismo clássico, para expor os limites da revitalização republicana neorromana contemporânea.
Para anarquistas, o Estado-nação moderno e a propriedade privada são antitéticos à liberdade
como não dominação, atuando como limites estruturais à liberdade em vez de como meios para
sua realização. Reanalisamos os fundamentos dessa crítica, propondo dois argumentos. Primeiro,
que um comprometimento, seja com o Estado ou com a propriedade privada, representa um com-
prometimento moral e ético positivo sem fundamento que enviesa a teoria negativa de liberdade
que republicanos contemporâneos buscam desenvolver. Segundo, que o comprometimento moral
com o Estado faz com que o republicanismo neorromano seja essencialmente conservador. Teorias
anarquistas da liberdade como não dominação vão muito além do que a revitalização republica-
na parece permitir, abrindo novas possibilidades para inovações institucionais e constitucionais,
permanecendo ao mesmo tempo consistentes com o valor normativo nuclear do republicanismo,
a não dominação.
Palavras-chave: Anarquismo. Republicanismo. Liberdade. Não dominação.
1 Introdução
Após o colapso do comunismo e o m da Guerra Fria, tanto o repu-
blicanismo quanto o anarquismo se viram revitalizados, ascendendo por
1 Publicado originalmente em: KINNA, R.; PRICHARD, A. Anarchism and non-domination. Journal of Political
Ideologies, v. 24, n. 3, p. 221-240, 2019.
2 Tradução de Peterson Roberto da Silva.
3 Doutora em política pela Universidade de Oxford, Ruth Kinna é professora de teoria política no Departamento
de Política, História e Relações Internacionais da Loughborough University. Alex Prichard é doutor em política,
relações internacionais e estudos europeus pela Loughborough University, e professor associado da Universidade
de Exeter.
Política & Sociedade - Florianópolis - Vol. 20 - Nº 47 - Jan./Abr. de 2021
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esposar uma losoa política normativa que equaciona liberdade e não
dominação. Na teoria política contemporânea, o republicanismo de longe
atraiu mais interesse acadêmico. Associado ao terceiro conceito de liberda-
de de Quentin Skinner e à visão neorromana de Philip Pettit, o conceito
republicano de liberdade como não dominação prioriza a rejeição da in-
terferência arbitrária no lugar da não interferência4. Ele se distingue da
taxonomia positiva e negativa delineada por Isaiah Berlin, associando-se
à independência: não ser dominado, argumenta Skinner (2008, p. 86),
signica “[...] possuir um poder de agir conforme sua própria vontade em
vez de ser obrigado a viver em dependência da vontade de outra pessoa”5.
Um linguajar afetivo de emancipação contra a escravidão e a sujeição aos
poderes vigentes é essencial para essa concepção. A não dominação des-
creve o movimento de dominium a libertas, do status de servus ao de liber.
Leis e proteções constitucionais são fundamentais nesse movimento, mas
também servem para checar o poder de maiorias, minorias e indivíduos.
É a presença de leis e de um enquadramento constitucional, referências
para a agência política, que garante que ninguém será capaz de interferir
arbitrariamente com as decisões livres de outros.
O conceito de não dominação também está presente no anarquis-
mo moderno. Uri Gordon, um dos principais teóricos da política de
movimentos anarquistas, demonstrou que anarquistas rotineiramente
identicam e desaam os plurais e interseccionados regimes de dominação
que estruturam a vida moderna (GORDON, 2008, p. 33). “Qualquer
ato de resistência é”, prossegue Gordon, “[...] em essência, ‘anarquista’
quando ele é percebido pelx agente como uma atualização particular de
uma oposição mais sistêmica à dominação”6 (GORDON, 2008, p. 34).
Saul Newman (2010, p. 64), igualmente inuente na teoria pós-anarquis-
ta contemporânea, argumenta que o anarquismo é um projeto “[…] de
exposição da contingência e da arbitrariedade de nossos arranjos sociais
4 Clássicos da tradição republicana neorromana contemporânea incluem: Pettit, 1997, 2012, 2014;, Skinner,
1998; Gelderen e Skinner, 2002a, 2002b. Entre textos secundários importantes podemos incluir: Laborde e
Maynor, 2008; Honohan e Jennings, 2006.
5 N. do T.: Quando traduções de textos diretamente citados estão disponíveis, estas são usadas. As referências
originais foram mantidas, com a tradução consultada a cada caso adicionada em nota de rodapé. Caso uma
tradução não esteja disponível, como neste caso, os trechos citados serão traduzidos diretamente, sem menção
explícita.
6 Ver também: Gordon, 2015, p. 53.
Anarquismo e não dominação | Ruth Kinna e Alex Prichard
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atuais, das formas como são estabelecidos através de múltiplas dominações
e exclusões”.
Assim como a recuperação anarquista de temas tradicionalmente re-
publicanos tem sido negligenciada pela maioria dos teóricos políticos,
anarquistas contemporâneos têm defendido suas concepções sem qualquer
engajamento com o léxico neorromano com o qual é possível compará-las.
A negligência anarquista contemporânea sobre o republicanismo é particu-
larmente lamentável porque ela também aponta para a marginalização da
crítica histórica de anarquistas ao republicanismo. Gordon (2008, p. 5), as-
sim como David Graeber (2002), rastreia as raízes das redes anarquistas de
hoje em dia ao radicalismo dos anos 1960, minimizando seus vínculos com
as tradições anarquistas do século XIX e do início do XX; a preocupação
de Newman (2012, p. 272) em expor o que ele julga serem pontos fracos
epistemológicos e losócos da teoria do século XIX ativamente dissuade
qualquer reexão sobre essas conexões históricas. Embora o anarquismo
forneça uma lente crítica poderosa para expor os limites da teoria repu-
blicana com base no próprio republicanismo, essa crítica permanece na
gaveta da história das ideias. Ao retomá-la, nosso objetivo é reformulá-la
anarquizando o conceito republicano de liberdade como não dominação.
Para Pettit, a liberdade como não dominação é um princípio negativo.
Isso signica que ele está destacado de qualquer visão particular de bem, e
que age como critério a partir do qual é possível julgar diferentes arranjos
constitucionais e avaliar a habilidade de cada um de maximizar liberdades
negativas. Assim, Pettit (1997, p. 134) argumenta que “o ambientalismo,
o feminismo, o socialismo e o multiculturalismo” podem todos “ser vistos
como causas republicanas”, uma vez que cada um congura as condições
negativas que a liberdade como não dominação deve satisfazer, desde ser
livre da degradação ou da vulnerabilidade ambiental, ou do patriarcado,
até ser livre das vicissitudes do capitalismo. A potência crítica da liberdade
como não dominação, portanto, vem do rigor dos testes que ela estabele-
ce para examinar o quanto as instituições políticas favorecem a liberdade
(SKINNER, 2008, p. 83-101). Neste artigo, exploramos de que forma so-
cialistas anarquistas responderam ao chamado republicano. Recuperamos
uma crítica anarquista das instituições republicanas para reetir quanto à

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