Anexo XI - Parecer apresentado pela Procuradoria-Geral da República nos autos da ADIn n. 5.322

AutorAndré Franco De Oliveira Passos/Edésio Passos/Sandro Lunard Nicoladeli
Páginas362-423

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Relator: Ministro Teori Zavaschi

Requerente: Confederação Nacional dos Trabalhadores em

Transportes Terrestres (CNTTT)

Interessados: Presidente da República
Congresso Nacional

CONSTITUCIONAL E TRABALHO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 13.103/2015. CONDIÇÕES DE TRABALHO DO MOTORISTA PROFISSIONAL RODOVIÁRIO. JORNADAS DE TRABALHO EXTENUANTES. PRORROGAÇÃO HABITUAL DA JORNADA EM ATÉ 4 HORAS EXTRAORDINÁRIAS. AUSÊNCIA DE HORÁRIOS DE TRABALHO. DESCONSIDERAÇÃO DE ATIVIDADES DE ESPERA DE EMBARQUE E DESEMBARQUE COMO TRABALHO. REDUÇÃO DE INTERVALOS PARA REPOUSO. REMUNERAÇÃO POR PRODUÇÃO NO TRANSPORTE DE CARGAS EXCESSO DE JORNADA, DE VELOCIDADE E DE PESO. AUMENTO DO REPOUSO COM VEÍCULO EM MOVIMENTO, NO REGIME DE DUPLA. FIXAÇÃO DE JORNADA EXCLUSIVAMENTE POR NORMA COLETIVA NO TRANSPORTE DE CARGAS VIVAS E PERECÍVEIS. FATORES DE RISCO DE ACIDENTES E DE DOENÇAS PROFISSIONAIS. VIOLAÇÃO, ENTRE OUTROS, DO DIREITO À SAÚDE E À SEGURANÇA DO TRABALHADOR (ART. 7º, XXII), DA SEGURANÇA VIÁRIA (ART.144, § 10), DO VALOR SOCIAL DO TRABALHO (ART. 1º, IV, DA CONVENÇÃO 155 DA OIT). PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. VEDAÇÃO DE RETROCESSO SOCIAL. PROIBIÇÃO DE EXCESSO. DESVIO DE FINALIDADE LEGISLATIVA. INCONSTITUCIONALI-DADE MATERIAL E INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO.

  1. Têm causa de pedir abertos os processos de controle concentrado de constitucionalidade, de modo que a validade de dispositivos não impugnados especificamente pode ser apreciada pelo tribunal, desde que tenham relação de complementaridade normativa com aqueles atacados de forma fundamentada. Não se deve conhecer, porém, ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra outros dispositivos sem essa relação, se quanto a eles a petição inicial é desprovida de fundamentação.

  2. Não comporta conhecimento ADI que tenha como objeto omissão constitucional e violação a norma infraconstitucional.

  3. O frete rodoviário brasileiro é um dos menores do mundo (pesquisa CNT/COPPEAD), compromete a saúde do setor e dificulta o crescimento de outros modelos de transporte. Jornadas de trabalho excessivas são uma das causas do baixo valor do frete. O transporte rodoviário de cargas no País tornou-se dependente de jornadas excessivas de trabalho dos motoristas, as quais resultam de: (a) baixa remuneração,
    (b) pagamento de salário por produção (com comissionamento) e (c) ausência de controle da jornada de trabalho. Motoristas profissionais submetem-se a extensas jornadas em busca de melhor remuneração, o que gera consequências danosas para si e demais usuários de rodovias, na forma de risco elevado e evitável de acidentes. Excesso sistemático de jornada de trabalho no transporte de cargas tem sido determinante de alto índice de consumo de drogas ilícitas por motoristas profissionais.

  4. Segundo diversas pesquisas (USP, UFSC etc.), alimentação incorreta e inadequada, locais inseguros para dormir, ausência de sanitários higienizados, trabalho isolado, sedentarismo e problemas da organização do trabalho caracterizam motoristas de caminhão como trabalhadores com alto risco de sofrer acidentes. Indivíduos que trabalham sob muita tensão são os mais propensos a alcoolismo, como é o caso dos motoristas de caminhão e de ônibus. A

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    extensa jornada de trabalho a que se submetem conduz a privação crônica de sono e a baixo nível de alerta e eleva o risco de acidentes de trânsito, especialmente de motoristas que dirigem em ambos os turnos. A maioria desses trabalhadores apresenta alta prevalência de vida sedentária, hábitos alimentares inadequados e tabagismo, conhecidos fatores de risco para patologias cardiovasculares, como hipertensão arterial sistêmica, hipercolesterolemia e coronariopatias. Evidências crescentes demonstram que “motoristas apresentam risco aumentado de desenvolver distúrbios cardiovasculares, gastrintestinais, de sono e psíquicos”. Há conexão entre superjornadas praticadas por motoristas rodoviários brasileiros, pouca disponibilidade de tempo para sono e alto índice de consumo de anfetaminas e outras drogas estimulantes (Univ. Est. Londrina, Univ. Est. Ponta Grossa, Unicamp etc.).

  5. São inconstitucionais a prorrogação habitual de jornada de trabalho e a prorrogação de jornada diária por negociação coletiva, autorizadas pelo art. 235-C, caput, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), na redação do art. 6º da Lei n. 13.103/2015. Ao “normalizar” por habitualidade o serviço prestado além da jornada-padrão de 8 horas e ao permitir extensão da jornada por negociação, o dispositivo viola a Constituição da República (CR), pois institui jornada “normal” de 10 ou até 12 horas diárias (68 horas semanais), em burla ao limite constitucional. Afronta normas constitucionais (arts. 1º, III, 6º, 7º, XIII e XXII, 144, § 10, 196, 217, § 3º, 227) e internacionais de proteção à dignidade humana, à segurança viária e ao trabalho (Declaração Universal dos Direitos do Homem, Convenção Americana sobre Direitos Humanos [CADH, ou Pacto de São José da Costa Rica], Protocolo Adicional à CADH em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), Convenções ns. 153 e 155 da Organização Internacional do Trabalho [OIT]), nas dimensões dos direitos a saúde, repouso, lazer e convivência social e familiar.

  6. Afrontam a segurança rodoviária, que é valor constitucional, normas como o art. 235-C, caput, da CLT, por ignorar os limites de condução biologicamente toleráveis ao trabalhador, fomentar exigência de trabalho além de suas capacidades físicas e mentais, favorecer condições que ensejam uso de drogas estimulantes e elevar riscos de acidentes de trânsito causados por fadiga e deterioração das condições físicas e psíquicas desses profissionais, “com aumento da mortalidade por causas violentas, produção de sequelas, absenteísmo por motivo de doença e recuperação de traumas, exaustão e dependência química dos motoristas” (Ministério da Saúde).

  7. Viola as mesmas normas constitucionais e internacionais a permissão de jornada negociada para transporte de cargas vivas e perecíveis, sem limite temporal, do art. 235-D, § 8º, da CLT, inserido pela Lei n. 13.103/2015.A norma legal flexibiliza direitos de indisponibilidade absoluta (dignidade, saúde e segurança de motoristas e usuários de rodovias) e submete-os unicamente a imperativos da atividade econô-mica. Esvazia o conteúdo de direitos fundamentais e viola a proporcionalidade.

  8. Fere a Constituição o art. 6º da Lei n. 13.103/2015, no ponto em que alterou o art. 235-C, §§ 1º, 8º e 9º, da CLT e nele inseriu o § 12, para tratar do tempo de espera, por a) descon-siderá-lo como jornada de trabalho e não o admitir como jornada extraordinária, mesmo quando houver movimentação de veículo; b) permitir que motoristas sejam obrigados a permanecer indefinidamente à disposição do empregador, mesmo após longa jornada de condução, sem que esse tempo seja considerado trabalho efetivo, podendo afetar o direito a descanso semanal remunerado; c) reduzir o valor da indenização do tempo de espera de 130% para 30% do salário-hora, sem reflexo nos demais direitos trabalhistas; d) permitir trabalho em tempo integral, inclusive noturno, e, ao negar ao tempo de espera o caráter de “trabalho efetivo”, atribuindo-lhe indenização ou remuneração em valor fixo diário, afastar a incidência do adicional noturno previsto na Constituição e nas leis; e) não estarem sujeitas à redução de cômputo da hora noturna.Tempo de espera é instituto do transporte de cargas, inaugurado pela Lei n. 12.619/2012, e corresponde ao período em que motoristas permanecem em filas aguardando embarque ou desembarque de cargas, no embarcador ou destinatário ou em postos de fiscalização. A disciplina da Lei n. 13.103/2015 agride os arts. 1º, III e IV; 5º, XIII; 7º, caput e I, III, IV, VI,VII,VIII, IX, XIII, XVI, XVII, XXII e XXXIV; 170 e 193 da CR e o art. 3, itens 1 e 8, da Convenção 171 da OIT.

  9. É inconstitucional o art. 6º da Lei n. 13.103/2015, no ponto em que alterou o art. 235-C, § 13, da CLT, para prever inexistência de horário de início e término da jornada de trabalho dos motoristas rodoviários. A norma enseja a possibilidade de que:
    a) motoristas sejam convocados a qualquer momento para iniciar jornada de trabalho, em período diurno ou noturno, em turnos regulares ou alternados, de dia ou à noite; b) se exija do profissional que usufrua do intervalo interjornada para sono em qualquer período do dia ou da noite, de forma fixa ou alternada. Pesquisas demonstram que trabalhar em turnos alternados causa diversas consequências nocivas ao indivíduo. A norma viola o art.7º, XXII, da CR, por sujeitar o profissional a riscos incompatíveis com a condição humana, e o art. 144, § 10, da CR, que define a segurança viária como direito coletivo, por associar a ausência de horários fixos de trabalho — e a possibilidade de alternância de turnos — às extensas jornadas permitidas a motoristas rodoviários, acentuando riscos de acidentes de trânsito.

  10. Afronta o art. 7º, XIII e XXII, e art. 144, § 10, da CR o art. 6º da Lei n. 13.103/2015, no ponto em que insere o § 6º no 235-D da CLT, ao permitir inobservância “justificada” não excepcional do limite de jornada, quando a) o motorista trafegue por local inseguro, inviabilizando parada imediata para o intervalo interjornada do art. 235-C, § 3º, da CLT, e b) terminada a jornada normal, o motorista deva dirigir pelo tempo necessário até chegar ao destino. Não há nessas situações traço de excepcionalidade que justifique afastar a regra constitucional, pois são plenamente previsíveis no transporte rodoviário.

  11. Inconstitucionalidade semelhante atinge, por arrastamento, o art. 235-D, § 6º, da CLT e o art. 67-C, § 2º, do CTB, inserido pela Lei n. 13.103/2015 e destinado ao motorista rodoviário autônomo de transporte de cargas. Consoante as normas, inobservância justificada do tempo de direção somente caberá quando “não haja comprometimento da segurança rodoviária”. Isso constitui contradição em termos, pois condução por tempo...

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