Constitucionalização e 20 anos da constituição: reflexão sobre a exigência de concurso público (entre a isonomia e a segurança jurídica)

AutorPaulo Ricardo Schier
CargoDoutor em Direito Constitucional pela UFPR.
Páginas5-31

Doutor em Direito Constitucional pela UFPR. Professor de Direito Constitucional, em nível de graduação, especialização e mestrado, da Escola de Direito e Relações Internacionais das Faculdades Integradas do Brasil - UniBrasil. Professor do Instituto de Pós-Graduação em Direito Romeu Felipe Bacellar e da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB/PR. Advogado militante.

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I 20 Anos de constituição: breve reflexão sobre o sentido da comemoração

Vinte anos se passaram desde a promulgação da Constituição Federal de 1988. A assertiva chega a ser um lugar comum, certamente, neste ano. A sociedade brasileira, carente de heróis, sempre encontra o que comemorar. Não sem razão o Poder Legislativo no Brasil, em todos os âmbitos da federação, quiçá seja campeão mundial (eis aí a nossa velha necessidade de comemorar recordes) em criação de datas comemorativas1.

Não se quer afirmar que não haja nada para ser comemorado. São vinte anos de rompimento com uma longa experiência autoritária2. São vinte anos de democracia. Vinte anos de um texto constitucional que, se tem seus defeitos3, permitiu a construção de um novo estágio para a comunidade política nacional e, igualmente, para a dogmática jurídica como um todo4.

Porém, comemorar vinte anos do texto da Constituição Federal de 1988, se tem algum sentido (ao menos) como marco simbólico, tem também certa limitação. Zagrebelsky, logo nas primeiras linhas de seu O Direito Dúctil, faz questão de lembrar que os grandes problemas jurídicos não são tratados na Constituição ou nos códigos. Tampouco neles estão as soluções. Afinal, "os juristas bem sabem que a raiz de suas certezas e crenças comuns, como a de suas dúvidas e polêmicas, está em outro lugar (...). O que conta, em última instância, e do que tudo depende, é a ideia do direito, de Constituição, de código, de lei, de sentença"5. Dworkin, ao estabelecer a distinção entre conceitos e concepções, sendo aqueles noções jurídicas indeterminadas cujo conteúdo o Page 6 próprio constituinte deixou a critério das gerações futuras6, parece insinuar que, diante desta categoria, o texto constitucional assume um papel secundário. De modo um pouco mais radical, Charles y William Beard sustentam que a teoria de que a constituição é um documento escrito é uma ficção legal. "A idéia de que ela pode ser compreendida mediante o estudo de seu texto e a história de seu desenvolvimento no passado é igualmente mística. Uma constituição é o que o governo e o povo, que gravitam nos assuntos públicos, reconhecem e respeitam como tal, o que pensam que é"7.

Referidas passagens podem fazer emergir a velha distinção entre constituição formal e material. E neste campo, ao que tudo indica, a história não é linear. Os vinte anos do texto constitucional, com suas inúmeras emendas, foram marcados por avanços e retrocessos. Mas os vinte anos da constituição material, da constituição vivida, certamente, estão a apontar que, se o texto é o mesmo, a constituição, em seu conteúdo, certamente não o é.

Há vinte anos não se imaginava que o Judiciário estaria hoje discutindo, a partir daquele texto, aborto de feto anencefálico, pesquisa com células-tronco, propriedade genética, questões de privacidade decorrentes de relações mantidas através da internet. Da mesma forma, há vinte anos, o debate em torno do conteúdo de dignidade humana, direitos fundamentais, princípios fundamentais, relações homoafetivas, união estável, implementação de políticas públicas etc., eram absolutamente diversos. Há vinte, sob uma concepção ainda estreita de separação dos poderes, era inimaginável que, pouco tempo depois, o Brasil poderia estar discutindo ativismo e auto-contenção judicial.

A constituição material, portanto, certamente é outra. Muitas das concepções dos direitos constitucionais, em regra, avançaram. Os problemas avançaram. As respostas, agora, se têm que partir do texto constitucional, isso não se nega, são absolutamente diversas, adaptadas aos novos tempos.

Por isso que a comemoração dos vinte anos da Constituição não pode ser somente a comemoração de vinte anos de um texto. Se fosse isso, haveria, aí, uma prévia concepção positivista de história, onde a Constituição assumiria o papel de uma fundação mítica, como a afirmação da vitória de uma racionalidade em detrimento da irracionalidade da história concreta. A história constitucional se converteria em história da constituição formal, representando uma grande expropriação. Expropriação, na tese de Zagrebelsky, do verdadeiro sujeito constitucional, na medida em que a história constitucional positivista reserva ao poder constituinte o papel de agente central da vida política8. Uma expropriação do presente e do futuro, eis que situa, esta história, normalmente apenas no passado o momento da grande vitória, dos grandes feitos, dos grandes heróis da democratização9. A história, nesta linha conservadora, aparece como a legitimação do presente e glorificação do passado. Mas no presente "não somos agentes", "não somos construtores". Page 2

É preciso, pois, ao comemorar vinte anos da Constituição de 1988, ter em mente a necessidade de se afirmar um outro tipo de leitura histórica, onde o passado tem seu lugar, mas reconhece, no presente, a verdadeira força legitimadora do vivido e não nega a condição de partícipes aos operadores do direito do quotidiano. Onde o passado tem seu lugar não como uma verdade pré-estabelecida que explica o presente mas, sim, um passado também se manifesta como mais um partícipe que atua nas forças do presente não pelo que representou, como no caso da promulgação da Constituição, há vinte anos, mas pelas ressignificações, reconstruções e atribuições de novos sentidos que hoje dele se faz. Ou seja, o que o passado representa, em sua leitura reconstruída, hoje. Portanto, o que importa não é falar da Constituição vinte anos atrás, mas falar de vinte anos de caminhada, dialeticamente sintetizados no agora. Esta Constituição, então, reitere-se, não tem sua legitimidade fundada no passado e sim nos aportes diários feitos pelos atores jurídicos através de suas petições, textos acadêmicos, sentenças, acórdãos, vivências políticas... Constituição, logo, criada a partir do desenvolvimento das précompreensões de uma sociedade aberta de intérpretes, não previamente estabelecidas pelo texto constitucional, mas construídas com muitas idas e vindas, em permanente processo público e aberto de argumentação.

II O contexto

Com tais premissas a análise do que possa representar esses vinte anos de Constituição de 1988 há de levar em consideração a pré-compreensão dos contextos histórico, social, político, econômico etc., evidentemente, nos quais ela se desenvolveu, mas também do contexto teórico pois é neste campo que estão grande parte das concepções, problemas, questões, elementos de legitimação e condicionantes de respostas que se tem hoje.

Este contexto é marcado por alguns signos: neoconstitucionalismo, póspositivismo e constitucionalização.

A despeito de eventuais discussões sobre a existência de um neoconstitucionalismo ou de neoconstitucionalismos10; a despeito da discussão, aliás, até mesmo sobre a possibilidade de falar-se em neoconstitucionalismo, eis que muitas de suas premissas foram desenvolvidas sob a égide do próprio constitucionalismo; parece legítimo pressupor que, em diversas perspectivas, vive-se, hoje, um estágio teórico e dogmático muito diverso daquele tradicionalmente denominado por "constitucionalismo".

Em breve análise, e aqui tomando como referência alguns parâmetros metodológicos desenvolvidos principalmente Luis Prietro Sanchís11, Guastini12, Page 8 Ferrajoli13, Pozzollo14, Figueroa15 e Ariza16, dentre outros, é possível afirmar que o constitucionalismo é um complexo momento constitucional marcado por algumas características bastante específicas.

No constitucionalismo, segundo expressão de Luigi Ferrajoli17, tem-se a emergência do Estado de Direito sob o viés positivista. A referência do constitucionalismo é a constituição formal e o estado de direito em sentido formal, logo, estado de legalidade, ou predomínio do paradigma da legalidade. As constituições deste contexto organizam-se, basicamente, sob uma regulação mais formal, preocupada em estabelecer limites ao poder e definir regras de reconhecimento do sistema (regras primárias). Assim, neste quadro, vê-se os seguintes fenômenos: (i) maior presença da lei em detrimento da Constituição; (ii) maior presença do legislador em detrimento do juiz; (iii) maior participação das regras em detrimento dos princípios; (iv) mais subsunção e menos ponderação; (v) vinculação do Estado à Constituição como "limitação", por decorrência da separação Estado-Sociedade Civil; (vi) maior homogeneidade axiológica dos textos constitucionais e menos pluralismo; (vii) separação entre direito e moral; (viii) ênfase no procedimento e na forma, em detrimento da substância e (ix) eixo teórico fundado na teoria do direito sob perspectiva do positivismo. No neoconstitucionalismo, por sua vez, tem-se a emergência não mais de um Estado de Direito mas daquilo que se designa como Estado Constitucional fundado em premissas pós-positivistas. A referência do neoconstitucionalismo é a constituição material e o estado de direito substancial, ou predomínio do paradigma constitucional. As constituições deste outro contexto organizam-se, basicamente, sob uma regulação mais material, preocupada em estabelecer a legitimação substancial do direito, das decisões, da política e da comunidade. Assim, neste quadro, vê-se os seguintes fenômenos: (i) maior presença da constituição em detrimento da lei; (ii) maior presença do juiz em detrimento do legislador; (iii) maior participação...

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