21 anos depois e a inconstitucionalidade por omissão é ainda uma decepção

AutorLuiz Fernando Flores Filho
Páginas5-14

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Introdução

Pode parecer paradoxal que passados 21 anos da vigência da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) se esteja discutindo uma ação constitucional concebida para que as normas constitucionais que dependessem de regulamentação infraconstitucional fossem efetivamente regulamentadas.

Entretanto, considerando que muitas são as normas constitucionais que não alcançaram aplicabilidade e eficácia plena, uma vez que aguardam a norma infraconstitucional regulamentadora – leis ordinárias ou complementares –, parece ser conveniente abordar o assunto.

Dalton Santos Morais1 trata das considerações da doutrina sobre reconhecer que ao Poder Legislativo compete realizar o juízo do momento oportuno para regulamentar as normas jurídicas. Alerta para o pensamento de parte dos doutrinadores que se debruçam sobre o estudo da ADI (ação direta de inconstitucionalidade) por omissão, tendente a admitir que a conduta omissiva possa perdurar por tanto tempo. Em outras palavras, que a regulamentação fique ao livre arbítrio do poder competente.

Para o presente artigo a Constituição Federal será entendida como a norma fundamental, ou seja, é nela que buscamos o fundamento de validade de todas as normas existentes no ordenamento jurídico, ocupando o ápice da pirâmide de Kelsen. Todas as situações jurídicas devem com ela guardar relação de compatibilidade, sob pena de não nascerem válidas2.

Não desconhecemos a posição de Clèmerson Merlin Clève, para quem a Constituição deve ter “conteúdo e identidade”, sob pena de não ser uma Constituição3.

Não desejamos também, como Clève, uma Constituição neutra, mas diante do referente do objetivo deste artigo, e do terreno que se deseja terraplenar para alçar voos mais altos, tem-se que optar por um conceito operacional de Constituição.

A Supremacia da Constituição será tratada como princípio básico nesta análise, considerando que em decorrência dele as normas jurídicas4 infraconstitucionais, que integram o ordenamento jurídico nacional, devem se conformar com as normas constitucionais.

Estuda-se o princípio da Supremacia da Constituição com “olhos do novo”. A expressão é uma metáfora adaptada daquela utilizada por Lênio Luiz Streck, quando denuncia “um certo fascínio pelo Direito infraconstitucional, a ponto de se (...) ‘adaptar’ a Constituição às leis ordinárias (...) Enfim, continuamos a olhar o novo com os olhos do velho...5.

Entende-se que o princípio da Supremacia da Constituição deva ser considerado e observado não só com relação à inconstitucionalidade por ação, mas, na mesma esteira, para a inconstitucionalidade por omissão. O aprofundamento desse entendimento será enfrentado gradativamente ao longo do texto. No momento é necessário afirmar, para que se estabeleça desde já um acordo semântico, que a omissão legislativa, “para ganhar significado autônomo e relevante, deve conexionar-se com uma exigência constitucional de ação, não bastando o simples dever geral de legislar para dar fundamento a uma omissão inconstitucional”6.

1. O controle concentrado de constitucionalidade
1.1. Considerações preliminares

Considerando o objetivo precípuo deste trabalho, não se tratará do controle difuso de constitucionalidade, passando-se direto à análise do controle concentrado.

Hans Kelsen, no estudo comparado entre as Constituições austríaca e americana, reconhece que a constitucionalidade da legislação pode ser garantida por dois mecanismos7.

Um deles é o da inaplicação da norma, diante do caso concreto, efeito próprio do controle difuso de constitucionalidade, o outro é o da responsabilidade pessoal do órgão que promulgou a norma inconstitucional.

Kelsen, fixando-se no primeiro mecanismo, salienta o inconveniente de que esta forma de reconhecer a inconstitucionalidade permite que a mesma norma seja objeto de diferentes interpretações, propiciando o reconhecimento da inconstitucionalidade por um juiz, enquanto outro pode reconhecer a mesma norma como constitucional.

Não se tem por este mecanismo uma uniformidade sobre a questão da constitucionalidade de uma lei, resultando daí, no entender do jurista alemão, uma ameaça à autoridade da Constituição.

Considerando as questões específicas afetas à organização do Poder Judiciário austríaco8, Kelsen ressalta que “uma centralização da revisão judicial da legislação era altamente desejável no interesse da autoridade da Constituição”9.

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Bonavides, tratando do tema sobre o controle por via de exceção, chamado controle abstrato, ensina que este sistema é aquele que “permite o controle da norma in abstracto por meio de uma ação de inconstitucionalidade prevista formalmente no texto constitucional. Trata-se, como se vê, ao contrário da via de exceção, de um controle direto”10.

1.2. Objeto

Barroso, estudando o controle de constitucionalidade por via de ação, leciona que neste sistema o juízo de constitucionalidade é o próprio objeto da ação, a questão principal a ser enfrentada: cumpre ao tribunal manifestar-se especificamente acerca da validade de uma lei e, consequentemente, sobre sua permanência ou não no sistema11.

Com ênfase à inconstitucionalidade por omissão, Barroso salienta que “se a hipótese for de omissão inconstitucional, o que se declara é a ilegitimidade da nãoedição da norma”12.

Desta forma, neste sistema, na ação direta cabe à parte legitimada apontar a lei ou ato normativo que entende inconstitucional in abstracto para que um tribunal competente se pronuncie sobre o pedido.

1.3. Competência e legitimação ativa e passiva

Ainda segundo Barroso, este sistema consiste na atribuição da guarda da Constituição a um único órgão ou a um número limitado deles, sistema este com origem no modelo austríaco, em oposição ao modelo americano, onde o controle cabe a todo e qualquer juiz ou tribunal.

Neste diapasão, o controle concentrado, ou reservado, na Constituição da República de 1988, ficou destinado ao Supremo Tribunal Federal no plano federal, e no plano estadual aos Tribunais de Justiça quando a inconstitucionalidade ocorrer em relação à Constituição do Estado.

No que diz respeito à legitimação, esta apresenta pequenas variáveis, dependendo da espécie de ação própria de controle de constitucionalidade que se esteja manejando.

Quanto à legitimação passiva, esta não apresenta maiores dificuldades uma vez que podem residir no polo passivo das ações de controle de constitucionalidade os órgãos ou autoridades responsáveis pela lei ou pelo ato normativo objeto da ação, aos quais caberá prestar informações ao relator do processo13.

Na defesa da norma impugnada atuará o Advogado- Geral da União, a quem competirá exercer o mister, via de regra, de manifestar-se pela manutenção da norma no ordenamento jurídico, isso como corolário do princípio da presunção de constitucionalidade da norma.

A legitimação ativa acabou por reservar relativa mudança com o advento da Constituição da República de 1988. Alertam os doutrinadores que, desde a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, em 1965, a propositura da ação era de exclusividade do Procurador- Geral da República. Não bastasse esse monopólio da titularidade, o Procurador-Geral o exercia com poderes discricionários, como ressalta Barroso14.

Esta substancial alteração é também destacada por Mendes e Yves Gandra Martins, que asseveram que com a introdução desse sistema de controle abstrato das normas, com ampla legitimação e, particularmente, a outorga do direito de propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral incidente15.

Desta forma, o controle concentrado de constitucionalidade brasileiro admite como partes legítimas para a propositura da ação aquelas pessoas, entidades ou entes públicos arrolados no art. 103 da Constituição da República.

A legitimação referida, embora ampliada pelo texto constitucional de 1988, acabou por sofrer por parte da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal uma consolidação que a distinguiu em duas categorias de legitimados: os universais e os especiais16.

Os legitimados universais podem atuar na defesa da Constituição em qualquer hipótese, enquanto os especiais, no dizer de Barroso, são os órgãos ou entidades cuja atuação é restrita às questões que repercutem diretamente sobre sua esfera jurídica ou de seus filiados e em relação às quais possam atuar com representatividade adequada. Trata-se do que se convencionou chamar de pertinência temática.

1.4. Espécies de ações próprias do controle concentrado

Cinco são as espécies de ações destinadas ao controle concentrado de constitucionalidade contempladas pela Constituição Federal: a) ação direta de inconstitucionalidade genérica (art. 102, I, a); b) ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III); c) ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I, a, in fine; EC n. 03/93); d) arguição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º); e) ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º).

2. Ação de inconstitucionalidade por omissão

Concorda-se com Clève que se possuem eficientes mecanismos para controlar a atuação positiva do Estado, quando esta atuação possa afrontar a Constituição17.

Entretanto, o questionamento de Clève, a seguir...

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