O anticlericalismo na cultura brasileira: da colônia à república

AutorRicardo Luiz de Souza
Páginas176-199

Page 176

A minha dignidade humana proíbe entregar-me às suas práticas papistas.

Thomas Mann - A montanha mágica

Introdução

O anticlericarismo* brasileiro tomou formas diversas ao longo do tempo: críticas reformistas de clérigos, críticas de protestantes ao catolicismo luso-brasileiro, críticas políticas da relação Igreja-Estado, críticas de agnósticos ou ateus a crenças católicas, práticas sociais difusas combatidas pela Inquisição; diferentes formas de manifestações anticlericais, que entendo como críticas mais ou menos amplas à atuação da Igreja Católica, não necessariamente derivadas de uma postura anticristã ou irreligiosa.

Estudá-lo em um período histórico de longa duração implica ter em mente tal diversidade, bem como a diversidade de campos sociais a partir dos quais ele se manifestou. Não implica, por outro lado, em reconhecer tendências e movimentos estruturados historicamente que tenham tido o anticlericalismo como eixo e, sim, em estudar uma prática social difusa e uma mentalidade recorrente que reapareceram com maior ou menor vigor em diferentes episódios históricos. E é preciso distinguir, ainda, anticlericalismo e irreligiosidade, com o período colonial presenciando um anticlericalismo difuso e condenado como herético pela Inquisição, mas sem ser marcado, ainda, por uma irreligiosidade que iria disseminar-se apenas durante o Império, sem, contudo, jamais tornar-se popular.

Colônia

A título de comparação: a blasfêmia foi, no México, durante o período colonial, o crime mais comum praticado pelos escravos aos olhos da Inquisição (VILLA-FLORES, 2002, p. 442). Já no Brasil, os diferentes atores que adotaram posturas críticas ou indiferentes em relação aos símbolos cristãos - o que se entendia, na época, como blasfêmia - não organizaram-se a partir de movimentos heréticos nem cismas organizados, muito menos protagonizaram discussões teológicas às quais o catolicismo colonial nunca foi afeito. Mas produziram, durante o período, reações individuais de blasfêmias e apostasias que indicavam, porém, um fermento de rebeldia perante a autoridade eclesiástica e seus dogmas.

Page 177

Tivemos assim, nas Denunciações, recusas à existência de um Juízo Final e crenças na santificação pelo suicídio após o sacramento, assim como (o que lembrava o marcionismo) na impassibilidade e imortalidade do corpo de Cristo (OMEGNA, 1971, p. 155). E um depoimento de 1654 registrou, em Salvador, a substituição da coroa de espinhos por uma coroa de cornos por parte de maus cristãos ( CASCUDO, 1984, p. 154).

Por outro lado, o anticlericalismo de setores das elites intelectuais – não sendo possível neste momento histórico, como em nenhum outro, tratarmos tais elites de forma homogênea no que tange à sua religiosidade e postura perante a Igreja - já era perceptível entre os intelectuais que absorviam, principalmente em Minas e na Bahia do século XVIII, as idéias enciclopedistas e iluministas, estruturando uma consciente, se bem que clandestina, mentalidade anticlerical.

Ao mesmo tempo, momentos de tensão como a insurreição baiana de 1798 tornaram-se propícios para manifestações anticlericais e deixaram vir à tona um latente sentimento de rejeição à influência católica, que demonstrava sua presença, por exemplo, quando um tenente afirmava, no momento de seu casamento e na presença do padre, dispensar o ritual da igreja, bastando sua vontade de noivo, ou quando um cabo recusava-se a descobrir-se na presença do viático levado por um sacerdote (RUY, 1970, p. 47). Ou ainda, expressa em frases como esta, proferida por um dos envolvidos no levante: “Isto de religião é peta, devemos todos ser humanos iguais, livres de subordinação” ( MATOS, 1998, p. 115).

Foram atitudes isoladas que tiveram o dom, ainda, de provocar a indignação geral. Mas foram atitudes de contestação que indicavam um processo de ruptura que tomou a Igreja como alvo, por vê-la como parte integrante do sistema a ser combatido. Tanto que a ruptura com Roma chegou a fazer parte dos princípios revolucionários de 1798, objetivandose a criação de uma igreja brasileira, a “Igreja Americana”. E neste contexto, lembra Ruy, “merecem um estudo especial, ainda não feito, as tendências separatistas agitadas no último quartel do século XVIII, no que concerne à religião” (RUY, 1970, p. 97).

A Inconfidência Baiana ocorreu em uma Salvador onde manifestações anticlericais eram cada vez mais comuns, e não pode ser compreendida sem elas. Simplesmente, o estatuto colonial e a hierarquia eclesiástica confundiam-se de forma inseparável na mente dos insurretos, de tal forma que atacar um correspondia a atacar a outra.

Page 178

Assim, dogmas católicos como a Eucaristia foram negados e nichos foram apedrejados à noite, no momento em que era celebrado o Ofício divino (JANCSÓ, 2001, p. 368). Como conclui Jancsó, ainda, “na Bahia dos anos finais do século XVIII, percebe-se nitidamente que a crítica ao status quo valia-se das oportunidades que a permanente reiteração dos rituais da Igreja oferecia para as exteriorizações de descontentamento com a situação vigente” (JANCSÓ, 1997, p. 417). Contestar as práticas ligadas à Igreja Católica era uma maneira, assim, de contestar os padrões sociais dominantes e, geralmente, excludentes em relação aos contestadores.

O anticlericalismo presente no final do século XVIII, na Bahia, não foi, ainda, apenas um fenômeno passageiro, deixando marcas na sociedade baiana das décadas seguintes, visíveis a partir de um relativo abandono de certas práticas religiosas. Diminuíram o número de testadores que pediam intercessão aos santos, diminuíram o número de irmãos que pediam o acompanhamento de irmandades. Tais fatores não estavam ligados de forma direta às consequências da Inconfidência Baiana, mas estavam ligados aos mesmos fatores culturais que a tornaram possível, qual seja o advento de idéias liberais, o enfraquecimento de poderes tradicionais, a secularização de instituições e comportamentos (REIS, 1991, p. 224).

Não é possível neste contexto, porém, confundirmos anticlericalismo com irreligiosidade, a não ser em setores específicos das elites. As camadas populares ainda eram profundamente religiosas, e todo seu cotidiano era estruturado a partir de diversas práticas ligadas à religião. E a Inconfidência Baiana, de resto, foi anticlerical, mas não antireligiosa, tanto que foi descoberta, na ocasião, uma carta endereçada ao prior dos carmelitas descalços da Bahia, na qual este era proclamado “futuro geral em chefe da Igreja baianense” ( PRIORE & VENÂNCIO, 2001, p. 182).

A final, anticlericalismo e irreligiosidade não caminharam necessariamente juntos, sendo perfeitamente possível proclamar as virtudes do cristianismo e adotar uma postura anticlerical sem ser, necessariamente, protestante. Saint-Just, entre tantos outros, o fez: “O desprezo pelas coisas do mundo, o perdão das injúrias, a indiferença pela escravidão ou pela liberdade, a submissão ao jugo dos homens sob pretexto de que é o braço de Desus que o faz pesado, nada disso é o Evangelho, mas seu disfarce teocrático” ( SAINT-JUST, 1989, p. 82). Por outro lado, e tomando um exemplo propositalmente distante, Mário de Andrade menciona a irreverência com a qual os padres são tratados na literatura de cordel,Page 179o que não implicaria, contudo, em anticlericalismo. Para ele, “o povo respeita no geral o padre, como respeita qualquer “seu dotô”, mas se desforra na poesia do respeito místico que tem pelos que lidam com incenso, com papeladas ou drogas, que são formas de feitiçaria” ( ANDRADE, 1965, p. 19).

Os diferentes agentes históricos que defenderam idéias anticlericais partiram de alguns aspectos específicos para justificarem-se. Foram feitas, por exemplo, críticas à Igreja ao longo dos séculos XVIII e XIX referentes ao fato da instituição ser possuidora de imensas propriedades fundiárias, transformando-se, com isto, em obstáculo ao desenvolvimento da agricultura, e criando um clima adverso em certas áreas em relação, por exemplo, aos beneditinos, proprietários de grandes áreas e grandes arrendatários, o que levantava a inevitável hostilidade dos grandes proprietários.

E tal crítica fere um aspecto central das idéias anticlericais, principalmente em sua vertente antijesuítica. O antijesuitismo embasou-se, entre outros fatores, na crença a respeito da riqueza da Igreja. Ele teve origens no período colonial e raízes na fama de grandes potentados da qual os inacianos desfrutaram durante todo o período (se merecida ou não, não vem aqui ao caso). De qualquer forma, Pombal utilizou-se largamente de tal fama para levar adiante sua campanha, enfim bem sucedida, contra a Companhia (PRADO, 1945, p. 249). Era, afinal, uma campanha com larga ressonância popular.

Tal crença havia se consolidado perante a população já no primeiro século da colonização portuguesa, como atesta Nizza da Silva: “ À medida que o século XVI ia avançando, os bens e rendas dos jesuítas iam-se tornando mais evidentes para a população, e a sua imagem de missionários vivendo pobremente de esmolas dificilmente se mantinha” (SILVA, 1992, p. 398). Criou-se um processo histórico, desta forma, no qual os jesuítas surgiram como concorrentes dos colonos no desenrolar de suas atividades econômicas, o que gerou atritos e críticas em setores muito distantes da salvação de almas.

Muitos foram os pretextos para que a hostilidade contra os jesuítas fosse desencadeada, desde textos escritos por ocasião do terremoto de Lisboa até o suposto envolvimento destes em uma rebelião no Porto em 1756, passando pela questão das reduções jesuíticas (JAEGER, 1965, p. 119-125). Criou-se uma política de liquidação da influência jesuítica,Page 180a partir de um contexto bem mais amplo: “Era do papel hegemônico da Igreja em relação às instâncias ideológicas do Estado que se tratava na verdade” ( FALCON, 1982, p. 378), tendo sido o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT