Antijuridicidade

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas299-307

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10.1. Antijuridicidade formal ou abstrata e antijuridicidade material ou concreta

Se o vocábulo antijuridicidade é decomposto, facilmente se alcança a sua significação jurídica. Anti constitui prefixo que significa contrariedade, oposição. Juridicidade representa a qualidade daquilo que é jurídico, lícito, id est, que está conforme o Direito.

Com a junção das palavras, verifica-se que a antijuridicidade revela a contrariedade e a oposição da conduta com os princípios e postulados da ordem jurídica. É, salientamos anteriormente (v. n. 1.5), a antítese do correto ou do justo. Representa fato que conturba a harmonia e o equilíbrio sociais, dentro do ideal da ordem e coesão na vida comunitária. A ilicitude consiste em ato que caminha na contramão do Direito e entra em rota de colisão com o ordenamento jurídico. É a conduta que conflita e denota antagonismo com os princípios ditados e assentes pelo Direito.

Ilicitude representa, antes de tudo, um conceito de relação, a oposição entre dois termos: de um lado, o fato humano e, de outro, a norma jurídica. Expressa, como destaca Muñoz Conde, a contradição entre a ação realizada e as exigências do ordenamento jurídico614. É a Rechtswidrigkeit do direito germânico.

Desta sorte, concluída pela tipicidade do fato, cumpre verificar, como momento seguinte na análise do crime, da sua antijuridicidade.

É, então, importante constatar se a conduta, que corresponde a uma figura criminosa recortada na lei, igualmente reúne o atributo da contrariedade ao ordenamento jurídico.

Nesse passo, constitui observação fundamental assinalar que a verificação da antijuridicidade reside na da própria tipicidade, já que esta é sempre indiciária da ilicitude. O tipo e a antijuridicidade, ponderou Mayer, estão como o fumo para o fogo615, pois,

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como afirmou Wegner, o tipo é a aparência do injusto616, uma vez que a antijuridicidade já está fundida no tipo, porque este contém o colorido antijurídico617. Por isso, a tipicidade é a ratio cognoscendi da antijuridicidade.

Só por ser típico, o fato também é antijurídico, no sentido formal ou abstrato.

Para bem compreender a assertiva, é preciso recuar no tempo e regredir àquelas priscas eras em que o direito escrito era inexistente.

Como se sabe, a origem do direito positivo assenta-se sobre um tripé, consoante a tradicional teoria tridimensional do Direito: fato, valor e norma. Essa a grande síntese de surgimento do direito positivo, que se desenvolve em três momentos sucessivos.

Da observação empírica dos fatos nasce o juízo de valor ou axiológico, que os submete à disciplina da lei. A ocorrência dos fatos, que tem sua dinâmica segundo o avanço do progresso, precede à criação da lei. Seria incongruente que a norma desse origem aos fatos. Não é ela que os cria, pois surge para disciplinar fatos que lhe são anteriores.

Sentidos, presenciados e experimentados os fatos ocorrentes, o ser humano não se colocou indiferente a essa realidade. Ser racional e inteligente que é, ponderou-os e os mensurou, formando juízo crítico sobre a ocorrência. Ato contínuo, como consequência do juízo axiológico formulado, o ser humano entreviu a necessidade de que os fatos ocorrentes se submetessem à autoridade de algo que se impusesse erga omnes, para alcançar a generalidade das pessoas. Surgiu, assim, o direito escrito ou positivo, gizado na lei.

Desde os primórdios da civilização, o homem primitivo procurou uma companheira, para a primitiva coabitação e hodierno casamento. Com o advento da prole surgiram as famílias, num incessante criar de gerações. Todavia, mesmo nos tempos antigos a desavença já se instalava no seio da família e, não raras vezes, culminava com a separação do casal e os problemas a respeito da guarda e assistência relativa aos filhos.

Outrossim, desde os tempos primevos o homem realizava atividades mercantis ou avenças para a aquisição de bens, lastreadas - antes do surgimento da moeda - na permuta de objetos. Todavia, também nestas épocas já havia a figura dos inadimplentes, daqueles que não honravam o pactuado.

Dessa forma, precedentemente às leis que regulamentaram o casamento, separação ou divórcio, guarda e alimentos relativos aos filhos, às normas concernentes às atividades comerciais, obrigações ou contratos, já existiam os fatos que corporificavam estas situações.

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Como professa Olesa Muñido, o homem não cria a norma, mas a descobre na realidade618.

O ser humano, inteligente e racional, sentiu e mensurou as ocorrências da vida (juízo de valor) e vislumbrou a necessidade de que elas se subordinassem à lei, regra escrita que, com seu cunho de generalidade, a todos iria impor-se para disciplinar a atividade do homem no contexto da vida comunitária. Do direito natural, que exprime o sentimento inato do ser humano sobre o justo e o injusto, o correto e o incorreto, o certo e o errado, emergiu, posteriormente, o direito positivo. O direito natural finca raízes no juízo de valor sobre os fatos e expressa momento antecedente à criação da norma. E nele o direito positivo teve sua gênese.

À mão de ilustrar: digamos que numa família, composta por quatro pessoas, o pai e a mãe costumassem sentar-se à cabeceira da mesa no horário das refeições e cada criança ocupasse uma das laterais. Certo dia, uma das crianças, que sempre ocupara certa lateral da mesa, desloca-se para a lateral oposta e toma o lugar do pequeno irmão. Este, inicialmente, ao chegar à mesa, percebe a ocorrência (fato). Avalia o episódio (juízo de valor) e sente sua feição de contrariedade aos princípios estabelecidos, julgando-se de algum modo espoliado e invadido (direito natural). Com o fim de restaurar a ordem, recorre à autoridade dos pais (lei), instando-os a atuar no sentido de ser preservado o equilíbrio no seio da família.

Esse o esquema que traça, em geral, a criação e a origem das leis.

Se atualmente há normas que disciplinam o casamento, separação e divórcio, com seus consectários, e leis que regulamentam a atividade comercial, obrigações e contratos, isso se deve à anterior existência dos fatos que, vivenciados e valorados, levaram à edição das normas.

O mesmo sucede no âmbito penal.

Os crimes não surgiram com o advento das leis que os previram. Seria um verdadeiro contrassenso se isso acontecesse, pois, nesse caso, as leis existiriam para criar os problemas, e não para resolvê-los. Se há homicídios, furtos, roubos, estupros... é evidente que esses delitos não advieram dos figurinos típicos inscritos nos arts. 121, 155, 157 e 213 do CP. Não foram estes dispositivos que os criaram e fizeram surgir. Pelo contrário, esses fatos já existiam anteriormente à edição dos preceitos legais incriminadores. Estes simplesmente surgiram, ulteriormente, para disciplinar tais situações...

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