O antitruste e as empresas estatais

AutorMario Engler Pinto Junior
Páginas178-192

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I - A atuação governamental na economia

É possível identificar três grandes linhas de atuação estatal no contexto da ordem económica: (i) exploração de atividade económica propriamente dita; (ii) prestação de serviços públicos; e (iii) exercício de poder de polícia e regulação da atividade económica, incluindo fomento e planejamento. Cada uma dessas formas de manifestação do ente público possui características próprias e está sujeita a regramento jurídico-constitucional específico. Além disso, interagem com o direito concorrencial de modo variável, segundo o modelo adotado para a estruturação do respectivo setor.

No sistema constitucional brasileiro, a exploração da atividade econômicastricto sensu está reservada preferencialmente à iniciativa privada, somente sendo admitida a intervenção direta do Estado (aqui entendido na acepção ampla das três esferas políticas: União, Estados e Municípios), quando necessária aos imperativos de segurança nacional ou para atendimento de relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. Vale dizer, as pessoas políticas não possuem livre arbítrio para se transformarem em agente empreendedor no domí-nio económico; somente podem fazê-lo com base em motivos considerados legítimos (segurança nacional ou relevante interesse coletivo) e nos estritos limites da autorização legislativa assim concedida (cf. art. 173, CF).1

As restrições constitucionais aplicam-se não só à ação empresarial direta do Estado, mas também quando a atividade é exercida por intermédio de outras pessoas jurídicas integrantes da administração descentralizada (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista). Daí porque a criação de qualquer daquelas entidades pressupõe a existência de lei específica, que deverá necessariamente definir a respectiva área de atuação (cf. art. 37, incisos XIX e XX, CF).2

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Por outro lado, a exploração de ativi-dade económica pelo Estado (abrangendo a atuação direta ou indireta) pode ter cará-ter monopolístico ou ser exercida em regime de competição com a iniciativa privada. A opção pelo regime de monopólio é do próprio constituinte, não sendo lícito ao legislador infraconstitucional ampliar o rol de negócios previstos no art. 177 da Carta Política (indústria do petróleo, gás natural e minerais nucleares).3

Já a prestação de serviços públicos é considerada atividade inerente ao Estado, a quem também cabe autorizar a sua substituição pelos particulares, valendo-se dos instrumentos jurídicos da concessão e permissão (cf. art. 175, CF).4 O próprio texto constitucional menciona vários tipos de serviços públicos de competência federal, estadual e municipal. Alguns desses serviços possuem natureza indelegável (v.g., segurança pública, justiça e correios), outros não são privativos e estão sujeitos a regime de colaboração ou complementa-riedade com o setor privado, a exemplo da saúde (cf. art. 197, CF),5 educação (cf. art. 209, CF)6 e assistência social (cf. art. 204, II, CF),7 e outros ainda são passíveis de delegação, mediante remuneração por tarifa cobrada diretamente dos usuários.

Entre os serviços públicos delegáveis de competência federal podem-se citar as telecomunicações (art. 21, XI, CF), a radiodifusão de sons e imagens, a energia elé-trica, a navegação aérea e infra-estrutura aeroportuária, o transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros, o transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros, os portos marítimos, fluviais e lacustres (art. 21, XII, CF). Para os Municípios foram reservados os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo (cf. art. 30, V, CF).8 Finalmente, os Estados-membros foram contemplados com a parcela residual, i.e., tudo aquilo que não foi definido na Constituição como serviço público de competência da União e dos Municípios, sem embargo da menção expressa aos serviços locais de distribuição de gás canalizado (cf. art. 25, §§ 1° e 2°, CF)9

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Pode-se argumentar que as referências contidas na Constituição Federal não esgotam as atividades enquadradas na categoria de serviços públicos. Conseqiien-temente, seria possível ao legislador de qualquer das três esferas políticas instituir outras modalidades de serviços e subordinar a sua prestação ao regime de direito público, desde que não restrinja injusti-ficadamente o campo da atividade económica reservada aos particulares.

Vale aqui a observação de Eros Roberto Grau, no sentido de que os valores maiores albergados pelo constituinte atribuem ao Estado a responsabilidade de atuar positivamente para superar as desigualdades sociais, mediante o oferecimento de novas alternativas de serviços públicos, além daquelas explicitadas na Constituição Federal.10

O mesmo autor explica que o texto constitucional também acolhe o conceito de atividade económica em sentido amplo, que abrange tanto o domínio económico reservado à iniciativa privada, quanto à prestação de serviços de competência estatal. Em razão da ausência de fronteira clara entre as duas formas de atuação, afigura-se justificável a preocupação com a possibilidade de desvio de finalidade. Isso ocorre quando o Estado atribui tratamento jurídico de serviço público a determinada atividade, que, a rigor, possui natureza económica stricto sensu. Daí a importância em se reconhecer que não se trata de opção simplesmente discricionária, sem nenhum compromisso com as diretrizes constitucionais.1112

A terceira vertente de atuação governamental, no âmbito da ordem económica, consiste no exercício do poder de polícia de mercado. Nesse caso, o Estado pode assumir concomitantemente o papel de agente normativo e regulador da atividade económica, que compreende a fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este último vinculante para o setor público e indicativo para o setor privado (cf. art. 174, CF).13

Trata-se das modalidades também chamadas de intervenção por direção e por indução. No primeiro caso, o Estado esta-

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belece normas de comportamento compulsório para os agentes económicos privados. Já no segundo, o Estado manipula instrumentos de política industrial para estimular o desenvolvimento de determinados se-tores da economia, em conformidade com as leis que regem o funcionamento dos mercados.14

II - Ambito de aplicação da legislação "antitruste"

A legislação antitruste brasileira tem a sua matriz constitucional no art. 173, § 4fi, da Lei Maior, segundo o qual a lei reprimirá o abuso do poder económico, que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. Esse dispositivo é complementado pelo art. 170, que menciona como princípios informadores da ordem económica, entre outros, a livre iniciativa, a função social da propriedade, a livre concorrência, o livre exercício de qualquer ativi-dade económica e a defesa do consumidor, todos eles mantendo estreita relação com o direito concorrencial.

É bastante sintomático que a previsão sobre a repressão do abuso do poder económico esteja incluída justamente no art. 173 da Lei Maior, que trata da exploração da atividade económica pelo Estado. Essa constatação reforça a ideia de que o Estado deve sujeitar-se à legislação antitruste, notadamente quando assume a condição de agente empresarial. Qualquer dúvida nesse particular é afastada pela literalidade do art. 15 da Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, que dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem económica. Segundo aquele preceito, as normas de defesa da concorrência aplicam-se indistintamente às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, mesmo quando exerçam atividade sob regime de monopólio legal.15

Portanto, a exploração da atividade económica pelo Estado, tanto de forma di-reta, quanto através de empresas públicas ou sociedade de economia mista, deve obediência às normas de conduta previstas nos arts. 20 e 21 da Lei n. 8.884/1994, bem como ao controle preventivo de estruturas a que se refere o art. 54 do mesmo diploma legal.16

Forçoso admitir, porém, que a sujeição do Estado à legislação antitruste (e por extensão também das empresas estatais) demanda algumas adaptações, em razão de suas peculiaridades. A título ilustrativo, lembra-se que o art. 174 da Constituição Federal legitima o planejamento económico de observância obrigatória para o setor público. Nessa hipótese, a regulamentação pode definir metas específicas para a atua-ção empresarial do Estado, que sejam incompatíveis com os princípios concorrenciais.17

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De outra banda, cabe indagar se, além da atuação estatal no domínio económico, a prestação de serviços públicos tarifados também deve conformar-se aos ditames da legislação antitruste, tendo em vista o seu caráter oneroso ou contraprestacional, aliado à presença de um usuário em posição equivalente ao consumidor comum de bens e serviços.

Como se sabe, a distinção entre prestação de serviço público e exploração de atividade económica não é exatamente tranquila. Além das situações já definidas na Constituição Federal como serviço de competência federal, estadual ou municipal, existe uma gama considerável de outras ati-vidades de interesse coletivo, que podem ser prestadas ou reguladas pelo Estado, segundo a ótica do direito público. É certo também que a organização de muitas dessas atividades poderia assumir a forma empresarial, conforme definição contida no art. 966 do atual Código Civil.18

Na verdade, o enquadramento de determinada prestação estatal como serviço público, para efeito de subordiná-la ao regime próprio de direito público, constitui uma opção política de cada nível de governo. No entanto, tal...

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