A articulação entre o Regulamento (CE) N. 1.346/2000, relativo aos processos de insolvência comunitários, e a Ley N. 22/2003, sobre o regime concursal espanhol

AutorMaria Isabel Candelario Macías
Páginas213-244

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1. Considerações prévias

A eleição do tema objecto de atenção nesta breve e modesta reflexão constitui uma homenagem mais que merecida ao ilustre jurista e Mestre, Professor Don Manuel Olivencia Ruiz. O Mestre abordou de uma maneira brilhante, ao longo da sua extensa e prolífica vida académica e profissional, por um lado o Direito da Insolvência e, por outro, a vertente internacional do processo de insolvência provida de dificuldades ligadas aos elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras.

Assim, começo por assinalar que neste estudo relativo ao Regulamento comunitário n. 1.346/2000 (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, n. L, de 30 de junho de 2000), sobre o processo de insolvência, não realizarei uma exposição geral dos seus antecedentes,1 mas antes farei uma in-

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terpretação exegética das disposições principais2 que conformam este instrumento normativo, aludindo apenas, quando oportuno, aos seus antecedentes.

De igual modo, este trabalho - pese embora o seu título - centra-se fundamentalmente na análise do Regulamento comunitário, sendo que as referências efectuadas àLey n. 22/2003 (in Boletim Oficial del Estado, n. 164, de 1 de Julho) decorrem da análise daquele Regulamento e da sua remissão e relação com a nova lei concursal espanhola, de 9 de julho de 2003.

De um ponto de vista estrutural e sistemático, deveremos observar que o texto do Regulamento (CE) n. 1.346/2000 pode bem dividir-se em três grandes blocos, a saber:

Preâmbulo: consta de 33 considerandos, que justificam a adopção do regulamento.

Articulado: é formado por 47 artigos, repartidos por cinco capítulos:

Capítulo I: Disposições gerais (arts. 1oa15o).

Capítulo II: Reconhecimento do processo de insolvência (arts. 16° a 26°).

Capítulo III: Processos secundários de insolvência (arts. 27o a 38o).

Capítulo IV: Informação aos credores e reclamação dos seus créditos (arts. 39o a 42o).

Capítulo V: Disposições transitórias e finais (arts. 43o a 47o).

Anexos: existem três anexos, A, B e C, os quais estabelecem quais são as instituições concursais nacionais atingidas por este regulamento.

Anexo A: determina quais os procedimentos que, em cada Estado-Membro, são considerados de insolvência, para efeitos deste Regulamento.

Anexo B: estabelece os processos correspondentes ao "processo de liquidação", a que alude o Regulamento.

Anexo C: indica quais são os órgãos da insolvência que em cada Estado-Membro correspondem ao síndico da massa da insolvência previsto no referido Regulamento.

Cura-se de uma estrutura que se assemelha, em grande medida, ao texto da Convenção de Bruxelas de 1995, cuja estrutura transpõe na sua literalidade, apartando-se do texto da proposta de regulamento apresentada pela Alemanha e Finlândia.3 Inclusivamente, o texto do Regulamento apresenta bastantes similitudes com os projectos de 1991 e, sobretudo, como de 1994, que constituiu a base para a Convenção de Bruxelas.

A simples leitura das epígrafes dos capítulos e dos artigos revela, sem margem para dúvidas, essa semelhança. Pelo contrário, existem maiores diferenças entre o Regulamento (CE) n. 1.346/2000 e o projecto de 1982: como se constata, desde logo, pelo número de artigos deste último (85) ou o número de anexos (dois Anexos). O certo é que a redução do número de artigos foi uma tendência que, nesta matéria, marcou a evolução dos trabalhos preparatórios comunitários.

No que tange à justificação desta ordenação4 - a insolvência em sede comuni-

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tária -, tal como à ordenação de outras no domínio do direito comunitário económico, basta recordar: a harmonização do regime dos seguros, da banca, do mercado de valores, da protecção dos consumidores, da propriedade industrial, do comércio electrónico, etc. A justificação deste regulamento, como não podia deixar de ser, é fornecida no seu preâmbulo. As justificações apresentadas pelo Conselho podem ser divididas em três grandes ideias:

  1. Em primeiro lugar, baseia-se na realidade económica. Como assinala o parágrafo ou considerando n. 3, as "actividades das empresas produzem efeitos trans-fronteiriços (...) é necessário exigir a coordenação das medidas a tomar relativamente aos bens de um devedor insolvente".

    Partindo deste facto, o Conselho assinala a necessidade se ser alcançada uma maior eficácia e efectividade nos processos de insolvência transfronteiriços (considerandos ns. 2 a 8). Cura-se do objectivo básico perseguido pelo regulamento, se bem que o fim último e mais geral é, como reconhecem os considerandos ns. 2 e 4, o de contribuir para o bom funcionamento do mercado interno.5

    O Conselho está consciente dos inúmeros problemas colocados pela declara-ção de insolvência com elementos de conexão com ordenamentos jurídicos estrangeiros. Refere-se, sobretudo, a possibilidade de que o devedor insolvente aproveite o Mercado Comum para, de má fé, dispersar os seus bens ou os litígios por diferentes Estados-Membros, a fim de obter uma posição jurídica mais favorável (é o caso da prática do forum shopping), tal como é assinalado no considerando n. 4. O que constitui, sem dúvida, um dos problemas resultantes da existência de diferentes sistemas de direito da insolvência supondo a existência de regras de competência internacional estaduais mais favoráveis para o devedor), circunstâncias que este regulamento pretende erradicar.

  2. Em segundo lugar, dedicam-se vários parágrafos destes considerandos a apoiar o texto do regulamento, relativamente aos Estados-Membros. Vale dizer: dado que se trata de uma matéria delicada, o Conselho parece querer "aprimorar-se" na justificação da existência deste regulamento. E fá-lo em vários considerandos.

    Assim, por exemplo: enquanto os considerandos ns. 2 e 5 manifestam a adequação deste Regulamento com o princípio da subsidariedade, o considerando n. 6 expressa a adequação deste normativo com o princípio da proporcionalidade.

  3. Por último, o considerando n. 8 justifica a necessidade de ser criado um regulamento para alcançar o objectivo comunitário. Afirma expressamente que é "necessário e oportuno" utilizar esta técnica legislativa, pois ela é caracterizada por ser vinculante e directamente aplicável nos Estados-Membros.

    Os restantes considerandos ou parágrafos também justificam o texto do regulamento, mas fazem-no através da referência a concretos conteúdos do corpo do texto e às opções eleitas na disciplina de determinados aspectos para os quais nos remeteremos e os quais iremos comentar, à medida que formos analisando os aspectos particulares deste regulamento.

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    Em resumo: podemos afirmar que a justificação da adopção deste regulamento consiste no facto de estarmos num Mercado Comum, em que são, cada vez mais, frequentes as insolvências transfronteiri-ças e, por conseguinte, faz-se mister adoptar um regime jurídico comum, a fim de coordenar as medidas a tomar em relação ao património do devedor insolvente, face à possibilidade de este poder aproveitar o tratamento jurídico diferenciado oferecido pelos diferentes Estados-Membros (forum shopping).

    Recorde-se que estas preocupações já se surpreendiam nos primeiros projectos comunitários sobre a matéria (desde o trabalho dos anos setenta até à Convenção de Bruxelas de 1995). Neste contexto, estávamos perante projectos de Convenção, de modo que a justificação do normativo surgia no preâmbulo, fazendo-se então referência à necessidade de "garantir a igualdade dos credores" e "reforçar a segurança e o tráfico intercomunitário". A grande diferença do actual normativo face a estes antecedentes projectos de legiferação -volto a acentuar - é a adopção da forma de regulamento, o que permite compreender a maneira particularmente cuidadosa como o legislador comunitário pretendeu justificar a sua iniciativa.

    Seja como for, o Direito da Insolvência da União Europeia está integrado por um Regulamento - agora objecto do nosso interesse - e por duas Directivas6 (a Directiva n. 2001/17/CE, de 19 de março, relativa ao saneamento e liquidação das empresas de seguros, e a Directiva n. 2001/24/ CE, de 4 de abril de 2001, relativa ao saneamento e à liquidação das entidades financeiras.7 No quadro da coerência do requisi-to subjectivo do regulamento, a estas Directivas deverá juntar-se uma outra Directiva sobre empresas de investimento, pois, como veremos adiante, o regulamento exclui tais entidades do seu âmbito de aplicação).8

    Estes instrumentos normativos apresentam como denominador comum a sua natureza conflitual.9 Nem o Regulamento, nem, tão pouco, as Directivas dispõem um regime material uniforme.10 O ponto de partida é o respeito da diversidade material: cada país conserva o seu direito da insolvência. Tais normas estabelecem, pelo contrário, um direito internacional privado uniforme, isto é, um conjunto de regras de competência judicial internacional, lei aplicável, reconhecimento e execução de

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    decisões comuns para todos os Estados--Membros. Como esclarecem Virgos Soria-no e Garcimartín Alférez:11 "Estas reglas de Derecho internacional Privado van acompañadas de ciertas normas uniformes auxiliares, procesuales y materiales, cuyo objeto principal es asegurar el buen fun-cionamiento del sistema, pero fuera de este ámbito sigue vigente el Derecho de insolvencia nacional".

    Retornando à análise do Regulamento, deveremos observar que este é aplicável em praticamente toda a Comunidade Europeia, pois vincula todos os Estados--Membros, à excepção da Dinamarca, em virtude do Protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão, que reconhece a sua posição particular, como se refere no considerando n. 33, a não ser que este...

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