Apatrida em legislacoes discriminatorias de genero/Statelessness in gender discriminatory legislation.

Autorde Oliveira Simoes, Barbara Bruna
  1. Introducao

    A apatridia pode ser consequencia das praticas discriminatorias de genero nas leis de nacionalidade, desencadeando a luta das mulheres que geram filhos apatridas. Por esta razao, analisa-se a realidade descrita por meio do estudo das interseccionalidades entre variaveis--como genero, raca, religiao, nacionalidade - que se interconectam no desempoderamento de mulheres. As discussoes de genero e as teorias feministas tem marcado atuais acontecimentos nacionais (1) e internacionais. Perspectivas feministas tem sido pensadas a partir de distintos contextos, desenvolvendo olhares "subalternos" (SPIVAK, 2010) que deslocam o pensamento feminista. Ditas abordagens, de(s)colonizadoras (2) e criticas, auxiliam no entendimento das lutas especificas de mulheres de diversas partes do mundo.

    O estudo das interseccionalidades, desenvolvido por Kimberle Crenshaw (2002), auxilia na identificacao de variaveis--raca, etnia, classe social--que, em conjunto com o genero, podem discriminar e desempoderar as mulheres. Crenshaw pesquisou, em especifico, a interseccao entre raca e genero, mostrando a discriminacao pela qual as mulheres negras passam ao longo de suas vidas. Contudo, novas interseccionalidades surgem conforme se estuda a realidade de cada nacao. Rocio Medina Martin (2016) apresenta um estudo sobre a agencia (3) das mulheres refugiadas saarauis, mostrando que a condicao de agente dessas mulheres esta baseada em sua situacao de refugiadas. Nesse sentido, utilizamos seu estudo com para ilustrar a presenca do refugio e da apatridia como elemento nas interseccoes. (4)

    Diante da interseccao entre variaveis, este artigo aborda a questao da apatridia a partir de uma de suas causas: as leis de nacionalidade discriminatorias de genero. A apatridia nao e um fenomeno atual, contudo, o numero de apatridas, em 2017, chegou em cerca de 10 milhoes de pessoas e nao para de crescer. As causas da apatridia sao inumeras e em graus de complexidade diversos. Uma simples adequacao legislativa pode extinguir a apatridia em uma nacao. Mas, em alguns casos, ha discriminacao proposital, como ocorre com as leis de nacionalidade que nao permitem que a mae confira sua nacionalidade aos filhos. Desse modo, se o pai e desconhecido, apatrida ou ate mesmo de outra nacionalidade que conflita com a do pais de sua esposa, os filhos restam apatridas e passam esta condicao para as proximas geracoes. (5)

    Assim, este artigo analisa as legislacoes sobre nacionalidade discriminatorias de genero constantes do Relatorio das Nacoes Unidas Background Note on Gender Equality, Nationality Laws and Stateless (2017). Discute o paradoxo da nacionalidade e da ausencia desta, bem como as diversas interseccionalidades presentes na realidade das mulheres que correm o risco de gerar filhos apatridas por conta da discriminacao na legislacao e como essa situacao fundamenta a sua agencia e sua luta antidiscriminatoria.

  2. Perspectiva Descolonial e interseccionalidades

    As discussoes de genero e teorias feministas desenvolveram-se, de modo distinto, em diversas partes do mundo. Contudo, as hegemonias destas ideias, por longo tempo, estiveram concentradas nas teorias do norte. "As teorias do genero da metropole europeia (um termo que designa o centro economico, cultural e politico de que outras regioes sao direta ou indiretamente dependentes) sao produtos de uma cultura secular, racionalista e cetica." (CONNEL; PEARSE, 2015, p.122). (6) A realidade distinta das mulheres do Sul-Global revelou a necessidade de estudar a experiencia vivida pelas mulheres desta parte do mundo, nao se falando somente numa questao de geografia, mas sim de um conhecimento democratico (CONNEL; PEARSE, 2015, p.121).

    As lutas das mulheres nao brancas, nao ocidentais, terceiro mundistas criaram novas vertentes nos estudos feministas que tiraram o foco da Europa, a exemplo do que se denomina de feminismo descolonial. Rocio Medina Martin (2016) argumenta que foi a partir dos anos 1970 que surgiu a genealogia feminista critica que, posteriormente, recebeu o nome de feminismo descolonial, pos-colonial, dentre outros.

    Fundamentalmente, denunciaron como cierta feminidad occidental, la de la mujer blanca, de clase media y heterosexual, se erigio como representativa de "la mujer" en el seno de los feminismos eurocentricos. Los privilegios de esta mujer -y los de sus companeros-, sin embargo, se sostenian sobre la explotacion y subordinacion de otros grupos humanos en razon de variables que trascendian la diferencia sexual, biologica o sociologizada (MEDINA MARTIN, 2016, p.125) A critica ao feminismo ocidental representou novas leituras do movimento feminista, interpretando-se o genero em conjunto com variaveis (raca, etnia, religiao, classe) presentes nas lutas locais travadas por mulheres.

    Intelectuais na periferia sao treinados a enxergar o Norte como fonte de seus conceitos, metodos, equipamentos, treinamentos e reconhecimento. Isso e nitidamente verdadeiro para os estudos de genero tambem. A maioria da pesquisa e do debate sobre questoes de genero no Sul Global parte de teorias de genero da Europa e dos Estados Unidos, procurando combina-las com dados ou experiencias locais (CONNEL; PEARSE, 2015, p.148) Analisar estas variaveis presentes nas lutas de mulheres de qualquer parte do mundo, segundo suas proprias experiencias, significa realizar interseccoes, termo utilizado por Kimberle Crenshaw (7), na decada de oitenta, em seus estudos sobre interseccionalidade entre raca e genero. (8) Para a autora, "A interseccionalidade e uma conceituacao do problema que busca capturar as consequencias estruturais e dinamicas da interacao entre dois ou mais eixos da subordinacao" (CRENSHAW, 2002, p.177).

    Crenshaw analisa a situacao das mulheres negras que, por vezes, sao excluidas das teorias feministas e politicas antirracistas, diante do fato de que ambas se baseiam em um conjunto de experiencias que nao refletem a interacao entre genero e raca. A exclusao da mulher negra nao pode ser resolvida somente pela inclusao dessa nas teorias, pois a experiencia da interseccionalidade e maior do que a soma de racismo e sexismo, de modo que qualquer analise que nao leve em conta a interseccionalidade nao pode de forma suficiente compreender a subordinacao das mulheres negras (CRENSHAW, 1989, 140).

    "Para apreender a discriminacao como um problema interseccional, as dimensoes raciais ou de genero, que sao parte da estrutura, teriam de ser colocadas em primeiro plano, como fatores que contribuem para a producao da subordinacao" (CRENSHAW, 2002, p.176). (9) Assim, Crenshaw (2002, p.177) realiza uma analogia em que os eixos de poder (raca, etnia, classe social, genero) sao avenidas em que as dinamicas de desempoderamento passam. Essas avenidas ou vias cruzam-se, criando intersecoes entre varios eixos. Nesses locais em que as vias se encontram estao as mulheres, e outros grupos, frequentemente atingidos por multiplas opressoes.

    "Somente atraves de um exame mais detalhado das dinamicas variaveis que formam a subordinacao de mulheres racialmente marcadas pode-se desenvolver intervencoes e protecoes mais eficazes" (CRENSHAW, 2002, p.177). A partir do empoderamento e da mobilizacao de mulheres fora da Europa, passou-se a refletir sobre outros cenarios. O trabalho de Rocio Medina Martin, com as mulheres refugiadas saarauis, mostra exatamente como inumeras variaveis proprias da realidade dessas mulheres podem transformar sua agencia:

    No se trata de atender unicamente a "las dominaciones patriarcales sobre las mujeres saharauis", sino de comprender como las violaciones de los derechos humanos en la lucha anticolonial y nacionalista, la resistencia armada, el refugio prolongado o la islamofobia contemporanea son tambien variables constitutivas tanto de las subordinaciones de las mujeres como de su agencia. Mujeres saharauis implica un colectivo de mujeres conformado mayoritariamente por (valga la redundancia, nada inocua): mujeres, saharauis, africanas, arabes, musulmanas y, en concreto, refugiadas. (MEDINA MARTIN, 2016, p.127) A perspectiva descolonial de Rocio Medina amplia o entendimento de interseccionalidades para alem do genero, raca/etnia, classe incluindo a propria condicao das mulheres saarauis, africanas, arabes, muculmanas e refugiadas. Ou seja, o conceito de interseccionalidades desde uma perspectiva dos direitos humanos das mulheres deve ser amplificado. Partindo desta ideia, este artigo questiona a relacao da discriminacao de genero presente em muitas leis de nacionalidade com a apatridia.

    O ACNUR, Alto Comissariado das Nacoes Unidas para os Refugiados (UNHCR, sigla em ingles), orgao encarregado de auxiliar os apatridas e propor mecanismos para extinguir a apatridia, estima que haja cerca de 10 milhoes de pessoas apatridas no mundo (UNHCR, 2014, p.4). O numero de pessoas apatridas pode ser ainda maior, pois e muito dificil realizar uma pesquisa estatistica, ja que essas populacoes nao possuem registros, como certidao de nascimento, identidade, passaporte. Assim, a cada dia, pode haver o nascimento de criancas apatridas no mundo, sem que o ACNUR consiga mapear os casos. Para isso, necessario compreender duas variaveis: a nacionalidade e a ausencia desta, ou seja, a apatridia.

  3. Nacionalidade, genero e apatridia: variaveis de uma mesma discriminacao

    Para que se possa compreender o conceito de um povo apatrida, faz-se necessario conceituar a situacao contraria, possuir nacionalidade. (10) E "(...) o elo juridico que liga uma pessoa a um Estado. Confere a esta pessoa um estatuto juridico que e determinado pelo direito internacional, nomeadamente as leis relativas as condicoes das pessoas e bens." (BOUCHET-SAULNIER, 1998, p.319). (11)

    Para Reis (2004, p.155), nao ha criterios naturais ou provenientes da logica para determinar o que e a nacionalidade. Ha duas tradicoes que estabelecem o criterio de nacionalidade, a francesa (baseada no contrato politico) e a alema (baseada na cultura). Assim, do ponto de vista...

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