Apêndice. A vida, um bem não negociável
Autor | Ricardo Dip |
Ocupação do Autor | Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo |
Páginas | 389-423 |
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APÊNDICE
A VIDA, UM BEM NÃO NEGOCIÁVEL
Ricardo Dip1
1. A VIDA: OBJETO DO DIREITO HUMANO E DO
DIREITO FUNDAMENTAL, MAS, ANTES DISSO E
SUPERIOR A ISSO, UM BEM JURÍDICO NATURAL
A “vida”2, dado biológico3 e confluente bem moral e jurídico4,
é o objeto material de um vasto condomínio de saberes, que
vai da técnica, é dizer, da biotecnologia5, passando pela
1. Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo.
2. As notas que seguem apenas referem alguns estudos, sem mínima (e por sinal
pouco menos do que impossível) pretensão de ir além de um rol exemplificativo.
3. Por muitos, ROYER, Pierre. 18 leçons sur la biologie du développement
humain; BASSO, Domingo. Nacer y morir con dignidad: Bioética, p. 55 et sqq;
VV.AA. (Direção de Mónica LÓPEZ BARAHONA e Ramón LUCAS LUCAS),
El inicio de la vida: Identidad y estatuto del embrión humano; GRISEZ, Ger-
main. El aborto: Mitos, realidades y argumentos, p. 107 et sqq.; SARMIENTO,
Augusto, RUIZ-PEREZ, Gregorio e MARTÍN, Juan Carlos. Ética y genética:
Estudio ético sobre la ingeniería genética, p. 40 et sqq.; BERNARD, Jean.
Espoirs et sagesse de la médicine.
4. Cf. SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética, tomo I, p. 183 et sqq.; RABAGO,
León. La bioética para el derecho; BERNARD, Jean. Da biologia à ética.
5. Cf. PORRAS DEL CORRAL, Manuel. Biotecnología, derecho y derechos
humanos.
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O DIREITO E A FAMÍLIA
sociologia6, pela ética7, pela teologia8, atingindo ainda um ter-
ritório de fronteiras obscuras – abrange a mesma ação de dé-
truire9, com áreas sobrepostas entre si10 e ainda imbricadas no
âmbito da Moral: é a “vida” como objeto do direito.11
A exemplo, porém, dos sujeitos de outros segmentos
jurídicos, a vida ocupa distintos lugares nos saberes do
direito, empolgando a atenção do direito público e do pri-
vado, do interno e do internacional, do civil e do penal, além
do espaço no direito natural, nos direitos humanos e nos
direitos fundamentais, circunstância esta última que põe
em evidência o avultado relevo que se concede ao bem da
vida, a ponto de dela falar-se ordinariamente qual de um
bem inviolável.
6. SCHOOYANS, Michel. Bioética y población: La elección de la vida; CHAR-
LESWORTH, Max. La bioética en una sociedad liberal; GRISEZ, Germain.
El aborto: Mitos, realidades y argumentos, p. 57 et sqq; HÜBNER GALLO,
Jorge Ivan. O mito da explosão demográfica; SAUVY, Alfred. Coût et valeur
de la vie humaine.
7. Vid. BLÁZQUEZ, Niceto. Bioética fundamental; VV.AA. (direção de
Aquilino POLAINO-LORENTE). Manual de bioética general; QUERÉ,
France. L’éthique et la vie; GEISLER, Norman. Ética cristã, p. 174 et sqq. e
205 et sqq ; AZPITARTE, Eduardo López. Ética y vida: desafíos actuales;
ELIZARI BASTERRA, Francisco Javier. Bioética; GRISEZ, Germain. El
aborto: Mitos, realidades y argumentos, p. 409 et sqq.; CAPONNETTO,
Mario. El hombre y la medicina; VIOLA, Francesco. Etica e metaetica dei
diritti umani.
8. GUERRA, Manuel. Antropologías y teología, p. 85, 91-4, 229, 231, 263 et
sqq., 304, 420-22; MOUROUX, Jean. Sens chrétien de l’homme, p. 43 et sqq.;
VERSPIEREN, Patrick. Face à celui qui meurt ; MALDAMÉ, Jean-Michel.
Création et Providence: Bible, science eu philosophie, p. 67 et sqq.; GRISEZ,
Germain. El aborto: Mitos, realidades y argumentos, p. 185 et sqq.
9. RÈMOND-GOUILLOUD, Martine. Du droit de détruire: essai sur le droit
de l’environnement; BAUDOUIN, Jean-Louis e BLONDEAU, Danielle.
Éthique de la mort et droit à la mort; ISRAËL, Lucien. Les dangers de
l’euthanasie.
10. Cf. VV.AA., Bioéthique et droit (coordenação de Raphaël DRAÏ e Michèle
HARICHAUX).
11. Para a amplitude de fazer (ou agir) a própria vida, cf. DEL VECCHIO,
Giorgio. Derecho y vida.
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O DIREITO E A FAMÍLIA
A inviolabilidade da vida – seu caráter de bem não nego-
ciável − foi também proclamada pelo Papa Bento XVI em
discurso, proferido no dia 30 de março de 2006, em audiência
receptiva de participantes de um congresso patrocinado pelo
Partido Popular Europeu:
Per quanto riguarda la Chiesa cattolica, l’interesse principa-
le dei suoi interventi nell’arena pubblica è la tutela e la pro-
mozione della dignità della persona e quindi essa richiama
consapevolmente una particolare attenzione su principi che
non sono negoziabili. No que concerne à Igreja Católica, o
que principalmente colima em suas intervenções na esfera
pública é a tutela e promoção da dignidade da pessoa e, por
isso, dá, conscientemente, particular atenção a seus princí-
pios que não são negociáveis.
Entre esses princípios não negociáveis, com efeito, indi-
cou o Pontífice, à partida, a “tutela della vita in tutte le sue fasi,
dal primo momento del concepimento fino alla morte naturale”
− tutela da vida em todas suas fases, desde o primeiro momen-
to da concepção até à morte natural.
Tais princípios − embora possam ancorar-se em dados
da Revelação − não são verdades da Fé, mas, disse o Papa,
“sono iscritti nella natura umana stessa e quindi sono comuni a
tutta l’umanità” − estão inscritos na própria natureza humana
e, pois, são comuns a toda a humanidade.
A não negociabilidade da vida − in tutte le sue fasi − só pode
ser um dado objetivo, no entanto, se estiver radicada em uma
fonte que transcenda as instituições humanas, que têm apenas
caráter determinativo (e não constituinte). De não ser assim, a
imanência fontal da tutela da vida traduziria, sem dúvida, uma
evidente relatividade, sua possível (e tão conhecida) tergiversação
histórica, sua abdicação perante pactos circunstanciais.
Dizer que o direito à vida é um direito humano12 ou um
12. Cf. BLÁZQUEZ, Niceto. Los derechos del hombre, p. 109 et sqq.
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