Aplicabilidade das Normas Constitucionais
Autor | Ari Ferreira de Queiroz |
Ocupação do Autor | Doutor em Direito Constitucional |
Páginas | 151-168 |
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O problema da aplicabilidade das normas constitucionais tem ocupado boa parte dos juristas e não é pacífico, pelo menos na classificação que lhe em dada. Na verdade, a discussão consiste em saber se todas as normas de uma constituição – todos os dispositivos constitucionais – contêm conteúdo normativo e se sobrepõem aos demais, inclusive quanto aos emitidos por outros poderes constituídos, ou se para serem aplicados dependem de atividade regulamentadora a ser desenvolvida justamente por esses poderes.
Sabe-se que em geral as constituições não são analíticas, como as leis, limitandose a estabelecer princípios que carecem de melhor detalhamento por parte do legislador ordinário para serem aplicados aos casos aos quais se destinam. Se o legislador não der a devida regulamentação ao princípio constitucional, seria ele letra morta? Essas normas teriam eficácia jurídica? Os titulares dos direitos por elas ventilados poderiam exigir que fossem respeitados? Antes de responder a questionamentos como estes, é necessário compreender o significado de eficácia, vigência e validade da norma constitucional.
A eficácia da norma jurídica tem um duplo sentido: pode significar simples possibilidade ou capacidade para produzir os efeitos que dela são esperados, ou pode significar efetiva produção desses efeitos. O primeiro sentido é o que se denomina de eficácia jurídica, enquanto o segundo, eficácia social180, que também pode ser tratado como efetividade, aliás, como o faz Luís Roberto Barroso181.
Interessa neste ponto a eficácia jurídica, porquanto se liga à problemática da aplicabilidade das normas constitucionais aos casos ou situações para as quais se destinam. Em várias passagens da Constituição Federal – e certamente das constituições estaduais – o poder constituinte não foi capaz ou não quis descer a detalhes sobre a forma de exercício dos direitos nela previstos, ou de exigir cumprimento das obrigações nela plasmadas, preferindo remeter expressa ou implicitamente ao legislador ordinário a tarefa regulamentadora.
Tome-se como exemplo o direito de greve do servidor público, que só pode ser exercido nos termos e limites previstos em lei específica (art. 37, VII), a qual pode não ser elaborada ou demorar muito para ser elaborada; outro exemplo é a proporcionalidade do aviso-prévio quanto ao tempo de serviço do empregado, cuja proporção deve ser definida por lei (art. 7º, XXI), que também poderá não ser elaborada ou demorar muito para que o seja.
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A simples inclusão da norma no texto constitucional não é bastante para permitir ao servidor público – no primeiro caso – e aos empregados – no segundo caso – exigir o direito de fazer greve sem ser molestados, ou que o empregador conceda prazo maior de aviso-prévio para empregado com maior tempo de serviço. Para ambas as hipóteses são necessárias leis definindo, respectivamente, os termos e os limites da greve e os parâmetros da proporcionalidade. Em outras palavras, pode-se dizer que essas duas normas constitucionais não são juridicamente eficazes, por dependerem de complementação ou regulamentação legislativa.
Enquanto a eficácia jurídica de uma norma está relacionada com sua aptidão para produzir efeitos, a vigência diz respeito à sua entrada em vigor e manutenção de vigência. Por outros termos, dizer que a norma é vigente é o mesmo que dizer que está em vigor182. No plano formal, é impossível a vigência começar antes da publicação da norma no órgão oficial, mas pode ocorrer em data posterior. Ao contrário da entrada em vigor, que marca o começo da vigência da norma, a revogação representa a sua morte no plano da existência. A norma nasce com a entrada em vigor e morre com a revogação183, que pode ser expressa ou tácita.
A entrada em vigor de norma infraconstitucional é problema que se resolve nela própria, fixando a data, podendo ser imediatamente ou em outro momento posterior. Mas, não dispondo a norma infraconstitucional sobre a entrada em vigor, aplica-se a regra geral constante do art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que concede quarenta e cinco dias de prazo para vigência no Brasil, e três meses, no exterior, contados da data da publicação. O período de tempo que medeia entre a data de publicação da lei e sua entrada em vigor é o que se denomina de vacatio legis.
Em termos de norma constitucional a solução não pode ser a mesma, por não se permitir interpretar a constituição conforme as leis, mas sim as leis conforme ela, de modo que não se pode invocar a regra do art. 1º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro para decidir em que data a constituição começa a vigorar. Com isso, em princípio não há vacatio constitutionis ou vacatio legis constitutionalis, entrando a constituição em vigor na data de sua publicação184.
Mas, é possível ela própria conter disposição expressa em sentido contrário, como o art. 34 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 ou o art. 189 da Constituição Federal de 24 de janeiro de 1967.
A primeira dessas normas diferiu a entrada em vigor do novo sistema tributário constitucional para o dia 1º de março de 1989, enquanto a Constituição Federal como
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um todo entrou em vigor em 5 de outubro de 1988, data da promulgação e publicação, marcando, assim, o que se pode denominar de vacatio constitutionis parcial; a segunda norma determinou a entrada em vigor da Constituição por inteiro em 15 de março do mesmo ano, marcando, assim, a vacatio constitutionis total185.
A validade de uma norma decorre da observância do processo legislativo adequado, ou da incidência sobre matérias que possam ser objeto de lei. Em síntese, validade é constitucionalidade. As leis ou atos normativos podem ser constitucionais ou inconstitucionais conforme estejam de acordo ou contrários à constituição. Em sede de norma constitucional, há de se distinguir entre a constituição originária e a constituição objeto de reforma constitucional, por isso dito secundária. Toda constituição originária é válida por não existir normas constitucionais inconstitucionais, ao contrário de normas oriundas de emendas constitucionais que excederem os limites explícitos ou implícitos impostos ao poder constituinte derivado.
Uma norma pode ser eficaz sem estar em vigor, e pode estar em vigor e não ser eficaz. A entrada em vigor marca o início da vigência da norma, que termina com sua revogação. Uma norma em vigor pode não ser eficaz, por se sujeitar a determinada condição que impeça a produção de efeitos. É o que ocorre com lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal em sede de controle incidental da constitucionalidade, cuja decisão é comunicada ao Senado Federal para que suspenda a sua execução. A lei, cuja execução seja suspensa pelo Senado Federal, não deixará de estar em vigor, isto é, não será revogada, só tendo a eficácia suspensa, o que implica dizer que será uma lei vigente, mas ineficaz. Para Marcelo Neves, neste caso ocorre “um critério negativo de pertinência das normas ao sistema jurídico”186.
Fenômeno idêntico ocorre nos casos em que, no campo da competência concorrente previsto no art. 24 da Constituição Federal, a União deixa de legislar sobre normas gerais, abrindo espaço para os Estados exercerem a competência legislativa plena: sobrevindo lei federal sobre normas gerais, a lei estadual elaborada no exercício da competência plena não será revogada, mas terá sua eficácia suspensa nos pontos em que com ela colidir. Por outro lado, é possível uma lei não estar mais em vigor, mas continuar eficaz, como a lei penal mais benéfica ao réu que, mesmo revogada, continuará aplicável aos crimes ocorridos na sua vigência.
Em linha de exemplo, tome-se o crime de estupro, cuja pena foi duramente elevada a partir da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, que o definiu como crime hediondo. Cometido o crime na vigência da lei anterior, o fato de sua revogação pela nova lei não impede que a lei revogada continue aplicável ao caso por ser mais benéfica. A redação anterior da lei penal foi revogada pela nova lei, perdendo, com isso, a vigência, sem implicar automática perda de
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eficácia. Enfim, a questão de vigência está relacionada com a vida, isto é, com o período de tempo entre a entrada em vigor e a revogação, enquanto a eficácia jurídica está relacionada com...
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