Aplicação das leis sistêmicas (constelações familiares) e mediação na pacificação de conflitos decorrentes dos laços de família

AutorShirlei Silmara de Freitas Mello
Páginas155-215

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Ver Nota1

1. Considerações iniciais: laços de família, campos morfogenéticos e leis sistêmicas

Considerando que a família é exportadora de caracteres para a sociedade, olhar para a família significa cuidar do presente e do futuro das aglomerações locais, regionais e nacionais e, via de consequência, das relações internacionais. A paz no mundo começa com cada indivíduo. Se não conseguimos dialogar entre quatro paredes, no ambiente familiar ou organizacional, como vislumbrar a harmonia das nações?

Segundo Hellinger2,

Paz significa que aquilo que estava em oposição se reencontra; que aquilo que antes se excluía, se reconhece mutuamente; que aquilo que antes se combatia, se feria, ou até mesmo se queria destruir, faz luto em conjunto pelas vítimas de ambos os lados e pelo sofrimento que causaram um ao outro.

Nas constelações familiares, o trabalho de reconciliação começa na alma de cada indivíduo e na família. Se a reconciliação tiver êxito nesse âmbito, ela também se expandirá para grupos maiores.

Cada indivíduo tem uma história e, onde quer que atue pessoal ou profissionalmente, carrega consigo memória celular de acontecimentos que frequentemente não passam por sua percepção racional. Agir com consciência permite escolhas melhores. Honrar a família, de um jeito saudável, significa realizar os próprios projetos de vida. Quando caminhamos pelo amor que vê, distinto do amor cego, estamos livres para realizar coisas boas para nós e para a coletividade.

O termo família se reveste de infinito e profundo significado, como se depreende do texto da lavra de Conceição Mousnier3:A família é o meio natural

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onde o projeto humano se desenvolve”. Apesar das mudanças operadas por fatores intrínsecos e extrínsecos, no que tange à sua essência, de “conjunto visível e invisível de exigências funcionais, materiais e espirituais que organiza o tecido social e fomenta a semeadura de todo o futuro, a família continua a mesma”. A magistrada prossegue, reconhecendo que a Constituição de 1988 “abriga dois artigos, de leitura aparentemente inocente, que operaram devastadoras consequências no ordenamento jurídico brasileiro. Trata-se dos artigos 226 e 227, logrando ampliar o conceito de família, redimensionar a ideia de filiação e preconizar a igualdade de direitos” entre os consortes.

Anton “Suitbert” Hellinger, o “pai” das constelações familiares, nasceu na Alemanha em 1925, estudou Filosofia, Teologia e Pedagogia. Como sacerdote católico, viveu e trabalhou por 16 anos entre os Zulus, na África do Sul, dirigindo várias escolas de nível superior.4

“Constelações familiares” – Familienstellen (‘O lugar da família/do familiar’, traduzido para Constelações Familiares, no Brasil) é a denominação atribuída à abordagem fenomenológica terapêutica fundamentada nas descobertas do alemão Bert Hellinger. Esse método/técnica se baseia na designação de sujeitos (pessoas) neutros para representar membros do sistema (familiar, organizacional ou institucional) em questão, a fim de trabalhar um tema específico trazido por um integrante daquele sistema.5De acordo com a teoria dos campos mórficos, de Rupert Sheldrake, as informações de um sistema se propagam entre seus membros no tempo e no espaço, de forma não-verbal, de célula a célula, de modo que padrões de comportamento se repetem inconscientemente por meio das ações dos integrantes de um sistema. Desse modo, “as mentes de todos os indivíduos de uma espécie”, incluindo a espécie humana, se encontram unidas e formam um “campo mental planetário”, denominado por Sheldrake de campo morfogenético. Tal campo “afeta as mentes

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dos indivíduos” do mesmo modo que é afetado por essas mentes6. Nesse raciocínio, Simone Carvalho7conclui que “a ressonância mórfica, o princípio de memória coletiva, pode ser aplicada ao estudo da arvore genealógica. Cada família tem sua própria memória coletiva a que todos os membros estão conectados e têm acesso”.

Sheldrake8sintetiza assim a teoria dos campos mórficos9:

  1. São totalidades (entidades, unidades, todos) auto-organizativas.
    2. Apresentam um aspecto tanto espacial quanto temporal, e organizam padrões espaço-temporais de atividade vibratória ou rítmica.
    3. Atraem os sistemas sob a sua influência para a adoção de formas características e padrões de atividade, cujo vir-a-ser eles organizam e cuja integridade eles mantêm. Os fins ou metas para as quais os campos mórficos atraem os sistemas sob sua influência são chamados atratores. As vias pelas quais os sistemas normalmente alcançam esses atratores são chamadas chreodes.
    4. Os campos mórficos se inter-relacionam e coordenam as unidades mórficas ou hólons que se encontram dentro deles, que por sua vez são totalidades organizadas pelos campos mórficos. Os campos mórficos contêm outros campos mórficos em uma hierarquia aninhada ou holarquia.
    5. Eles são estruturas de probabilidade, e sua atividade organizativa é probabilística.
    6. Eles contêm uma memória embutida (intrínseca) dada pela auto-ressonância com o próprio passado de uma unidade mórfica e por ressonância mórfica com

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todos os sistemas similares anteriores. Esta memória é cumulativa. Quanto mais vezes determinados padrões de atividade são repetidos, mais habituais eles tendem a se tornar. (g.n.)

Considerando que “tudo que existe está entrelaçado em um relacionamento sistêmico”, é razoável afirmar que “dentro de um sistema, cada parte influencia o todo e o todo influencia cada parte”10, existindo, portanto, uma economia do conjunto que, toda vez que violada, provoca movimentos de recomposição de seu equilíbrio. Exemplo disso é a assunção de atitudes que honram determinado membro da família por um membro mais jovem que, inconscientemente, passa a apresentar comportamentos cunhados por algum ancestral de quem nem tem conhecimento. Alguns acontecimentos no seio familiar, tanto generosos e altruístas quanto desonestos e ilegais, irradiam seus reflexos por gerações e gerações, criando dinâmicas que transcendem limites temporais e geográficos, operando atitudes de compensação em havendo desequilíbrio no sistema, caso tais processos psicoafetivos não sejam reconhecidos e trabalhados.

Nesse sentido, o conteúdo externado no Manual de Mediação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2016: um conflito revela “um escopo muito mais amplo do que simplesmente as questões juridicamente tuteladas” sobre as quais as partes estão discutindo em juízo. “Distingue-se, portanto, aquilo que é trazido pelas partes ao conhecimento do Poder Judiciário daquilo que efetivamente é interesse das partes.” Desse entendimento surgem os conceitos de lide processual, que se resume na descrição do conflito nos termos postos na petição inicial e na contestação apresentadas em Juízo, e lide sociológica, cujos contornos se definem por todos os elementos inerentes ao conflito, que abrangem aspectos transpessoais e transgeracionais. “Somente a resolução integral do conflito (lide sociológica) conduz à pacificação social; não basta resolver a lide processual – (...) – se os verdadeiros interesses que motivaram as partes a litigar não forem identificados e resolvidos”.11 Neste tocante atua a aplicação das leis sistêmicas, por meio das constelações familiares, tendo em vista que as lealdades invisíveis, os segredos de

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família e as palavras não-ditas geram emaranhamentos e padrões de repetição que se manifestam de maneira inconsciente.

Nesse tocante, Jodorowski12constata que Anne Ancelin Schützenberger13estudou o assunto a fundo: “os duelos não realizados, as lágrimas não derramadas, as identificações inconscientes e as lealdades familiares invisíveis” se transmitem para os filhos e seus descendentes. O que não é enxergado, reconhecido e integrado se manifesta na forma de sofrimento. Quando os olhos não choram, o corpo chora. Dor acumulada se expressa em doença e conflitos, incluídos neste rol os conflitos judiciais e administrativos.

Isso posto, quando as informações do campo de ressonância mórfica14trazem à tona alguns emaranhamentos, quem trouxe a questão posta inicialmente pode enxergar as dinâmicas existentes naquele sistema e posicionar-se de modo diferente nas relações, a fim de...

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