Aplicação do princípio das mãos limpas para o exame da legalidade

AutorAna Rachel Freitas da Silva
Páginas197-364
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Capítulo 3
APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DAS MÃOS LIMPAS
PARA O EXAME DA LEGALIDADE
Assentados os fundamentos legais da arguição de ilegalidade a partir
do princípio das mãos limpas, passamos a tratar dos aspectos práticos do uso
dessa abordagem alternativa. O modelo será construído em duas etapas.
Inicialmente, detalharemos os conceitos (elementos) que serão utilizados no
modelo para, ato contínuo, enunciarmos os resultados das várias combinações
dessses elementos.
Na primeira parte do capítulo, após examinar as decisões arbitrais com
seus respectivos resultados, buscamos identificar elementos comuns na
argumentação jurídica, que chamaremos de critérios. Como observamos nos
capítulos anteriores, os casos incluem condutas variadas que os Estados tentam
enquadrar na lega lity defense. Para obter uma amostra quantitativa
significativa, ações muito diferentes, bem como argumentações distintas, foram
reunidas. Foram retirados e categorizados critérios em função da norma jurídica
violada, comportamento e motivação das partes envolvidas, momento em que
os ilícitos foram cometidos, bem como os termos do tratado e a relação entre as
condutas ilícitas das partes envolvidas. A identificação desses elementos tem
por base as decisões arbitrais, muitas vezes baseadas em uma cláusula de
conformidade, mas podem ser aplicadas em uma arguição de ilegalidade a partir
das mãos limpas.
Na segunda parte do capítulo, tendo em conta os critérios reconhecidos,
são propostas diferentes abordagens para o tratamento das ilegalidades:
inadmissibilidade da demanda, rejeição da ação, redução do montante
compensatório e desconsideração da conduta ilícita. Condutas contrárias à OPT
são examinadas como preliminares de admissibilidade, enquanto o julgamento
das condutas que não se enquadram no conceito de OPT tem seu lugar na
apreciação do mérito.
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3.1. Os critérios interpretativos
Os critérios aqui apresentados foram retirados da jurisprudência.
Representam uma tentativa de generalização e sistematização por esta autora.
Cinco categorias principais foram identificadas: a) critério material ou objetivo,
b) critérios pessoais ou subjetivos, c) critério temporal, d) critério linguístico e
e) critério relacional. A combinação desses critérios é determinante para indicar
as consequências do ato ilegal para a decisão arbitral. Por terem sido
explorados no decorrer do presente trabalho, agruparemos os critérios temporal,
linguístico e relacional sob o título “outros critérios”.
A classificação, chamada de critério material, busca identificar a
natureza da violação, com ênfase na norma infringida. As subdivisões desse
critério incluem: a) corrupção, b) fraude, c) abuso do processo, d) violação de
direitos humanos e e) violação às leis internas do Estado anfitrião. As violações
às normas internas stricto sensu são classificadas de acordo com a gravidade:
em um polo encontramos violações aos princípios fundamentais enquanto no
outro polo encontramos violações menores ou formais. Entre esses polos
podemos incluir, de forma residual, violações às leis locais que não sejam
consideradas fundamentais, tampouco meramente formais.
Os critérios subjetivos referem-se às ações e omissões do Estado e do
investidor e suas motivações. Essa categoria pretende abranger argumentos
como “estoppel”, responsabilidade do investidor estrangeiro por atos de
terceiros, dolo, transparência das decisões estatais, dentre outros. Os critérios
temporal e linguístico são incluídos no capítulo por estarem presentes nas
decisões arbitrais que utilizam, em sua maioria, o requerimento de legalidade.
Em uma abordagem construída a partir do princípio das mãos limpas, seu papel
é relativizado. No lugar desses critérios, sugerimos a adoção de um critério
relacional (reciprocidade de condutas).
3.1.1. Critério material: o ato ilegal
O primeiro critério busca responder a pergunta o que”. Tal critério
identifica o ato considerado ilegal e, sobretudo, sua relação com a ordem
jurídica. Chamamos de critério material ou objetivo. A caracterização de um
ato como violação pura das normas domésticas ou violação da ordem pública
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transnacional652 ou violação de ambas ordens jurídicas é essencial para inferir
que consequências podem surgir se essa conduta for trazida à arbitragem.
A leitura dos casos nos permitiu identificar alguns critérios utilizados
pelos árbitros para justificar as consequências atribuídas às condutas
desconformes de investidores. Duas decisões chamam a atenção por fazerem
uma classificação dos atos ilegais por seus aspectos materiais: Metaltech v
Uzbequistão653 e Hamester v Gana654.
A decisão do caso Metaltech v Uzbequistão revisitou a jurisprudência
do ICSID e identificou os assuntos cobertos pelo requerimento de legalidade, a
saber: (i) violações não triviais da ordem legal do Estado anfitrião, (ii) violações
do regime de investimentos estrangeiros do Estado anfitrião, e (iii) fraude para
garantir a realização do investimento ou o recebimento de lucros655. O Tribunal
entendeu que corrupção poderia ser enquadrada em mais de uma dessas
categorias, declinando da competência em razão da violação das leis nacionais
pelo investidor.
A classificação, adotada pelo Tribunal, utiliza as leis domésticas como
parâmetro para duas das três categorias e parece incluir na terceira as
ilegalidades que não estão diretamente relacionadas ao direito interno, sob a
rubrica de fraude. As violações às leis nacionais seriam enquadradas em uma
das duas categorias: violações não triviais e violações do regime de
investimentos estrangeiros. As três categorias trazem exemplos extraídos da
jurisprudência.
Inicialmente, cabe considerar que a classificação se refere apenas à
interpretação do requerimento de legalidade e, portanto, englobaria apenas
ilegalidades que afetariam diretamente a jurisdição do tribunal. O fato de adotar
uma abordagem fundamentada no princípio das mãos limpas e que não se dirige
à jurisdição, não significa que não podemos utilizar classificações adotadas de
acordo com aquela abordagem. É importante ressaltar, ainda, que estamos
trabalhando com as consequências das ilegalidades nas diferentes fases
652 Sobre a ordem pública transnacional ver capítulo 2.2.1.1.
653 Metaltech LTD v The Republic of Uzbekistan, Op. Cit.
654 Gustav F W Hamester GmbH & Co KG v. Republic of Ghana, ICSID Case No. ARB/07/24.
Award de 18 de junho de 2010. Disponível em: http://www.italaw.com/sites/default/files/case-
documents/ita0396.pdf>. Acesso em 12 de janeiro de 2017.
655 “In general, on the basis of existing case law, it considers that the subject-matter scope of the
legality requirement covers: (i) non-trivial violations of the host State's legal order (Tokios
Tokelés, LESI and Desert Line), (ii) violations of the host State's foreign investment regime (Saba
Fakes), and (iii) fraud for instance, to secure the investment (Inceysa, Plama, Hamester) or to
secure profits”. (Metaltech LTD v The Republic of Uzbekistan, Op. Cit., par. 165)

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