Aplicação ? interpretação e teoria da decisão

AutorAurora Tomazini de Carvalho
Páginas529-575
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Capítulo XII
APLICAÇÃO – INTERPRETAÇÃO E
TEORIA DA DECISÃO
SUMÁRIO: 1. Interpretação e produção da norma individual
e concreta; 1.1. Interpretação da linguagem do fato; 1.2. Inter-
pretação do direito; 1.2.1. O problema das lacunas; 1.2.1.1. As
lacunas na doutrina; 1.2.1.2. Completude sistêmica; 1.2.1.3. In-
tegração de “lacunas”; 1.2.1.3.1. Analogia; 1.2.1.3.2. Costumes;
1.2.1.3.3. Princípios gerais do direito; 1.2.1.3.3.1. Princípio como
enunciado, proposição ou norma jurídica; 1.2.1.3.3.2. Princípio
como valor e como limite objetivo; 1.2.1.3.3.3. Aplicação: entre
regras e princípios; 1.2.2. O problema das antinomias; 1.2.2.1.
Critério hierárquico; 1.2.2.2. Critério cronológico; 1.2.2.3. Crité-
rio da especialidade; 1.3. Constituição da linguagem competente
e teoria da decisão jurídica.
1. INTERPRETAÇÃO E PRODUÇÃO DA NORMA
INDIVIDUAL E CONCRETA
Como vimos no capítulo anterior, sob o ponto de vista
pragmático, a análise da incidência pode ser dividida em duas
operações: (i) uma de interpretação; (i.a) dos enunciados pro-
batórios que reportam o aplicador à ocorrência de um even-
to; e (i.b) do direito (construção da norma a ser aplicada); e
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AURORA TOMAZINI DE CARVALHO
(ii) outra de produção da linguagem competente, que relata
o fato (constituindo-o como fato jurídico) e instaura o vínculo
relacional (obrigatório, proibido ou permitido) entre sujeitos.
Vejamos detalhadamente cada uma destas etapas:
1.1 Interpretação da linguagem do fato
Aplicar o direito consiste em enquadrar um caso concre-
to à norma jurídica adequada e imputar-lhe os efeitos nela
prescritos. Para fazer incidir uma norma, o aplicador, primei-
ro verifica a ocorrência de um acontecimento, interpretando
os suportes factuais a que tem acesso, para depois indagar-se
a que tipo jurídico este se enquadra, realizando, assim, a sub-
sunção do conceito do fato ao conceito da hipótese normativa.
Como já dissemos em inúmeras passagens deste traba-
lho, a realidade nada mais é do que um sistema articulado de
símbolos num contexto existencial. O conceito do fato jurídico
é construído por meio da interpretação de uma linguagem,
pois o aplicador não tem acesso ao acontecimento que, en-
quanto ocorrência material percebida no mundo da experi-
ência, dissemina-se no tempo e no espaço. Nestes termos, o
único instrumento de que dispõe para constatar a ocorrência
do evento é a linguagem que o relata e a única forma que tem
de conhecê-lo é interpretando-a.
As situações, escolhidas pelo legislador como hipóteses
de normas abstratas perceptíveis por nossos sentidos, assim
que se concretizam já passam a fazer parte do passado e a elas
só é possível fazer referências, por meio de uma linguagem.
Neste sentido, pondera MARIA RITA FERRAGUT que aqui-
lo que realmente sabemos sobre os eventos são suas versões,
concretizadas por meio da linguagem que os descrevem e os
transformam em fatos388. As versões nada mais são do que di-
ferentes descrições que fazem referência ao mesmo
388. Presunções no direito tributário, p. 32.
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CURSO DE TEORIA GERAL DO DIREITO
acontecimento e o fato, enquanto enunciado linguístico, é
apenas uma versão do evento, constituída com base em outras
linguagens (as quais designamos de probatórias).
Vejamos o exemplo de dois veículos que se chocam numa
autoestrada (evento). O acontecimento do mundo fenomêni-
co, ou seja, a ocorrência do choque, perceptível aos sentidos
humanos, esvai-se no tempo e no espaço. Restam, no local
do acidente, destroços dos carros, marcas de pneu no asfalto,
que se consubstanciam numa linguagem indiciária median-
te a qual é possível constituir factualmente a ocorrência do
evento. Testemunhas que presenciaram o acidente também
são capazes de relatar o ocorrido, mas nunca de reconstitui-
-lo, com toda a riqueza de seus detalhes, o que apresentam
é apenas uma versão do acontecimento. Policiais chegam ao
local da batida, medem as distâncias entre os destroços, regis-
tram e fotografam todas as evidências, construindo nada mais
do que outra linguagem sobre o acidente. O perito, diante de
todo o material coletado pelos policiais, emite um laudo téc-
nico, produzindo a sua versão sobre o acidente, e assim se se-
gue. Podemos ter infinitas versões sobre a colisão, versões que
ora se completam, ora se contradizem e ora se afirmam, mas
o evento em si, a sua essência, nunca teremos acesso. Nem
mesmo se uma foto tivesse sido tirada no exato momento do
choque entre os veículos, ou se um vídeo tivesse sido gravado,
as imagens seriam só mais uma linguagem sobre o evento,
uma versão, que goza apenas de maior precisão descritiva.
Há um grande distanciamento entre a sensação empírica
da ocorrência e sua constituição linguística, o que leva-nos a
admitir a possibilidade de depararmo-nos com versões que não
traduzem o acontecimento. Digamos que neste mesmo exem-
plo dado acima, antes dos policiais chegarem ao local do aci-
dente os vestígios tenham sido manipulados, as versões tanto
do boletim de ocorrência, quanto do laudo pericial poderiam
restar prejudicadas, mesmo assim, não deixariam de ser ver-
sões sobre aquele acidente. Nestes termos, incompatibilidade
entre o acontecimento real e suas versões fáticas é inevitável.

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