Apontamentos e controvérsias acerca do exame toxicológico na Lei n. 13.103/2015

AutorDenise Vieira de Castro/Renan Gustavo Lourenço do Prado
Páginas286-293

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“Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio.”

Bertolt Brecht

1. Introdução

O presente estudo versa sobre a exigência do exame toxicológico para os motoristas das categorias “C”, “D” e “E”, nos termos da Lei n. 13.103/2015 e atos normativos posteriores, apontando parte dos questionamentos da comunidade científica nacional e entidades especializadas na área a respeito do exame toxicológico estabelecido pela citada lei.

A partir de apontamentos desenvolvidos por várias entidades nacionais na área de Medicina e Segurança do Trabalho, busca-se demonstrar a inviabilidade do uso do exame toxicológico para aferir/ atestar a dependência e/ou comprometimento da capacidade de dirigir por motorista profissional. Desse modo, tal exame, conforme será demonstrado, é imprestável para alcançar a finalidade para a qual foi normatizado.

O tema é de amplo interesse, seja social, humanitário ou político, especialmente pelo risco de falhas na cadeia de custódia1 e/ou de resultados falsos positivos. Com efeito, o referido exame é capaz de lesar direitos fundamentais de motoristas, o que certamente poderá comprometer a subsistência de inúmeros trabalhadores rodoviários, bem como seus familiares e dependentes.

Apontar-se-ão os princípios constitucionais potencialmente violados pela normação advinda da Lei n. 13.103/2015, com demonstração da contradição entre o referido exame e os valores inseridos na Constituição da República.

2. Regulamentação do exame toxicológico de larga janela de detecção - Lei n 13.103/2015

O tema objeto deste estudo é baseado em Resoluções do Conselho Nacional de Trânsito, em Deliberações do Conselho Nacional de Trânsito e Portarias do Departamento Nacional de Trânsito.

Nesse sentido, o exame toxicológico de larga janela de detecção para consumo de substâncias psicoativas foi inicialmente regulamentado pelo CONTRAN, por sua Resolução n. 460, de 12 de

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novembro de 2013. A Resolução n. 517/2015 revogou a Resolução n. 460/2013 e acrescentou a alínea “g” ao inciso III do art. 4º, bem como o Capítulo VII (DO EXAME TOXICOLÓGICO DE LARGA JANELA DE DETECÇÃO) ao texto da Resolução CONTRAN n. 425/2012.

Posteriormente, dentre outras questionáveis disposições legais,2 a Lei n. 13.103/2015 incorporou a obrigatoriedade de realização de exame toxicológico de larga janela de detecção para os motoristas das categorias “C”, “D” e “E”.

O referido texto legal, em seu art. 5º, alterou a redação dos §§ 6º e 7º do art. 168 da CLT. Já o seu art. 6º alterou o art. 235-B da CLT (em especial seu inciso VII). Por sua vez, o art. 8º da Lei n. 13.103/2015 modificou o art. 148-A da Lei n. 9.503/97 (CTB), dispondo sobre a necessidade do mesmo exame toxicológico quando da habilitação e/ou renovação da Carteira Nacional de Habilitação.

Da leitura sistemática de tais dispositivos, verifica-se que apenas aos motoristas das categorias “C”, “D” e “E”, foi imposta esta exacerbada condição de repetição de exames toxicológicos, especificamente com a janela de detecção, de, no mínimo, 90 dias pretéritos. Coube ao CONTRAN regulamentar o exame toxicológico de larga janela de detecção, nas hipóteses de habilitação e renovação da CNH nas categorias indicadas.

O mesmo procedimento, quando da admissão e a demissão de motoristas profissionais, ficou a cargo do Ministério do Trabalho e Previdência Social — MTPS, que no dia 13.11.2015 editou a Portaria n. 116.

Na sequência, o CONTRAN publicou a Deliberação n. 145, de 30 de dezembro de 2015, e instituiu os principais trâmites operacionais do exame toxicológico de larga janela de detecção, nos mesmos moldes da Portaria MTPS n. 116/15. Neste ato normativo é pertinente destacar que o Departamento Nacional de Trânsito — DENATRAN ficou responsável por credenciar laboratórios para a realização do exame toxicológico, com a validade de 2 (dois) anos, podendo ser revogado a qualquer tempo ou renovado por igual período, sem limite de renovações, desde que atendidos os requisitos estabelecidos na resolução.

Logo depois, a Resolução CONTRAN n. 583/2016 referendou os termos da Deliberação n. 145/2015, ratificando as alterações promovidas na Resolução CONTRAN n. 425/2015, acerca do exame toxicológico.

Estando supostamente ‘sanadas’ as divergências técnicas e normativas e credenciados os laboratórios,3 o mencionado exame tornou-se obrigatório a partir de 2 de março de 2016, para habilitação, renovação ou mudança para outras categorias, nos termos do art. 5º daquela Resolução.

Desta forma, passou-se a exigir o exame toxicológico de larga janela de detecção relativamente aos motoristas profissionais das categorias “C”, “D” e “E”.

3. Das manifestações técnicas e controvérsias sobre o tema

Num primeiro momento, poder-se-ia entender que os comandos previstos na Lei n. 13.103/2015, acerca do multicitado exame, vieram no legítimo anseio de atender às urgências da política pública de combate ao uso de drogas no trânsito e na manutenção da saúde dos profissionais do trânsito, e, por conseguinte, da segurança do trânsito e da própria população.

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Em princípio, esse entendimento seria até mesmo inevitável, não fossem várias opiniões técnicas em contrário, inclusive de órgãos governamentais, seja porque o referido exame não atende à suposta “finalidade precípua” para a qual foi criado, seja por sua impropriedade como meio hábil para aferir a aptidão dos motoristas das categorias “C”, “D” e “E” para o ato de dirigir.

Nesta perspectiva, ainda na tramitação do PL n. 182/2007, a Câmara Temática de Saúde e Meio Ambiente (CTSMA) do CONTRAN expediu sua Nota Técnica n° 02/2007, em que o corpo técnico, após diversas ilações, expõe de forma clara que, não obstante os grandes avanços tecnológicos, os referidos testes se mantêm ainda passíveis de erros, mesmo aquele de queratina,4 então mencionado como de maior abrangência temporal.

Aliás, a Nota Técnica n. 02/2007 do CONTRAN apontou que todos os testes são passíveis de falha, em maior ou menor grau, por não suprirem todas as demandas e/ou não responderem a questionamentos potenciais sem gerar controvérsias.

A referida Nota também alertou que variáveis, como raça, estado nutricional, utilização concomitante de outras drogas, doenças de consumo, sexo, idade, localização do cabelo, cosméticos (desodorante, xampu, tintura, sabonete), perfil de uso da droga (intermitente, diário, próximo a diário) e tratamentos (lavagem excessiva, alisamento, permanente, alvejamento) podem ocasionar interferências no teste de queratina, conforme apontam alguns estudos.

Na mesma perspectiva, o Ministério da Saúde, por seu Departamento de Atenção Especializada e Temática, emitiu nota técnica que instrui os autos do processo administrativo n. 80000.025615/2012/20, concluindo pela inadequação da escolha do exame de larga janela de detecção para a finalidade de reduzir as lesões e mortes no trânsito. Há de se restringir a detecção de eventual uso de drogas no período médio de 6 horas, caracterizando o uso e o risco imediato do condutor na via.

Nesse sentido, entendeu-se que a melhor alternativa para as intervenções de prevenção, fiscalização e controle associadas ao risco imediato de dirigir sob o efeito de substâncias psicoativas seria a fiscalização nas vias públicas, por meio da observação, pelo agente público dos órgãos de fiscalização, de indícios de incapacidade momentânea para dirigir.

Segundo o Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas — OBID, a matriz biológica “cabelo” permite tempo de detecção de um a seis meses do consumo, e tem alta possibilidade de contaminação pelo ambiente, gerando falsos positivos.

Nesse sentido, são destacadas, a seguir, sob uma perspectiva crítica, algumas das manifestações técnicas sobre o exame toxicológico de larga janela de detecção.

a) Associação Brasileira de Medicina de Tráfego — ABRAMET: esta entidade manifestou-se, em parecer, pela ineficácia do exame toxicológico de larga janela de detecção, especialmente para a...

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