Aporética e Dialética da Fundamentação dos Direitos Humanos

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas297-348

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39. Aporética da fundamentação

A elaboração de uma teoria crítica dos direitos humanos não prescinde do repensar das soluções metaéticas cujas expressões mais eloquentes foram analisadas, o que deve subsidiá-la na condição de fonte para a indicação de novos rumos que superem as controvérsias.

A observação inicial nesse sentido é que, justamente em função da prevalência dos paradigmas epistêmicos positivistas subjacentes às doutrinas consideradas, surgem críticas de pelo menos quatro ordens.

A primeira delas é de natureza lógica e epistemológica, sendo especialmente dirigida ao apriorismo em geral, quando voltado para a fundamentação dos direitos humanos, pois o rechaço das metodologias que não sigam os modelos baseados na observância rigorosa dos pressupostos da lógica formal tem se revelado prejudicial. Não que devam estar ausentes, mas deve ser evitado tal exclusivismo na busca de caminhos para a metaética dos direitos humanos. Essa atitude traduz uma aporia, um beco sem saída. É a primeira das críticas que se faz às posições examinadas, evidenciando a impossibilidade lógica de uma argumentação nos moldes positivistas.

Uma segunda crítica é dirigida prevalentemente para as concepções aposterioristas, embora dela não estejam imunes as aprioristas. Ela decorre da análise dos postulados ideológicos que, nessas doutrinas, mal disfarçam os verdadeiros objetivos de seus defensores, que, embora de modo

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inconsciente e até mesmo ingênuo, influenciados pelos instrumentos políticos, sociais e jurídicos de manipulação ideológica, põem seu esforço intelectual a serviço de redes econômicas e políticas que, tendo se tornado hegemônicas em suas próprias nações, almejam estender essa hegemonia sobre toda a humanidade.

Esse aspecto leva a uma terceira crítica, que é a consciência da inutilidade dessa procura, na medida em que o pensamento filosófico deixa-se dominar pelos fatores que circunstanciam a época atual, porquanto foram moldados com suporte numa ideologia que privilegia a riqueza material maximamente concentrada e não atende à exigência ética mínima da justiça social, a igualdade de todos não somente perante a lei, mas sobretudo na distribuição dos benefícios da riqueza produzida pela socie-dade. Refiro-me à globalização, ao domínio da informática e à ideologia do “fim da história”, fatores que caracterizam especialmente os tempos atuais, que em outra obra denominei transmodernidade.259Finalmente, uma quarta crítica decorre do repensar da ideologia que se oculta sob as noções aprioristas e aposterioristas, o que vai indicar os caminhos para a superação das controvérsias emergentes de ambas as posições.

O conjunto dessas críticas forma uma aporética, que é a aglutinação de aporias setoriais num mesmo contexto discursivo.

A aporia inicial enfatiza que a busca de soluções racionais ao problema da fundamentação dos direitos humanos é tolhida pelas limitações derivadas da própria colocação do problema. Racionalizar as respostas às controvérsias sem recair em irracionalismos faz a metaética dos direitos humanos mergulhar num tipo de fundamentalismo que pode ser rotulado de ético.

Na linguagem ordinária, fundamento é a causa, motivo ou origem de alguma coisa. O senso comum internalizou também a acepção lógica, referindo-se à gênese racional de um juízo ou enunciado. Como a racionalidade voltada para o conhecimento exige um critério de verdade para subsidiá-lo, no campo da lógica formal a palavra adquire o alcance consequente ao princípio da razão suficiente, premissa de um raciocínio analítico. E se for entendido que os próprios parâmetros de certeza requerem

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igualmente um embasamento, é de se indagar acerca de um fundamento último que convalide toda a cadeia analítico-dedutiva dos raciocínios.

Se se tiver em conta que o núcleo da investigação científica e filosófica é o descortino da verdade, esta acaba sendo a razão de ser de todos os princípios particulares do ser, do conhecer, do fazer e do comunicar.260Ora, a procura de um fundamento último para a confirmação de um conjunto de enunciados leva forçosamente a um regresso ao infinito, uma clássica aporia, uma vez que o último invocado será sempre o penúltimo, num círculo lógico infindável. É que a certeza de uma proposição qualquer exigirá sempre sua própria fundamentação, descartando-se a teoria da simples evidência. E mesmo os pressupostos constituídos pelos princípios de identidade e de não contradição necessitam de embasamento racional, ao menos para responder aos questionamentos introduzidos pelos sistemas lógicos paraconsistentes261 e pelo pensamento dialético, o que se denomina “trilema de Münchhausen”, lembrando o personagem que se safou de afogar-se num charco puxando os próprios cabelos.262 É um impasse diante de três alternativas: regressão ao infinito, escolha arbitrária e petição de princípio, nenhuma válida para demonstrar a verdade científica ou o fundamento de uma teoria.

Na teoria geral do direito, o sentido da palavra fundamento tem conotação normativa. Ressalvado o significado preciso do substantivo Grund-norm na dogmática kelseniana, pode-se definir norma fundamental como a regra inicial de uma cadeia analítica da qual derivam todas as outras pertencentes à mesma ordem jurídica, formando uma pirâmide normativa.

A aceitar-se que a norma é a expressão de uma vontade, uma decisão fundamental é igualmente a que dá início a uma série decisória. Esta ilação é contestada por certos cultores da lógica deôntica, que negam a possibilidade de inferências normativas, visto que o suporte de qualquer norma será sempre um ato de volição, ainda que fictício.263 Assim, não existem inferências decisionais, pois uma decisão estará sempre baseada na intenção de quem a produziu, independentemente de sua eficácia, e não numa opção logicamente anterior.

A questão dos fundamentos adquiriu notoriedade a partir do uso da palavra fundamentalismo para conotar a intolerância dos seguidores de

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uma crença em relação a seus discordantes. Nesta acepção, a atitude fundamentalista leva à deificação das próprias crenças como dogmas absolutos, sentindo-se o indivíduo no dever de impô-los a outrem, chegando às raias da exteriorização dessa atitude na ação pessoal. Levado às últimas consequências, o fundamentalismo produz a intolerância que leva à revolta, ao terrorismo e à guerra.

“O fim justifica os meios” é o pensamento que constitui a base dessa atividade extremista de cunho ideológico-político.264 Todavia, não abrange somente o desrespeito para com opiniões divergentes, mas sobretudo a pretensão de ser dono da verdade.

Tal conotação tem sido reforçada e impregnou a linguagem ordinária em virtude das atividades terroristas de alguns grupos seguidores do Islamismo; eles, no entanto, não são os únicos, pois fundamentalistas são todas as crenças que se consideram vertente única da verdade, da beleza e do bem.

O termo tem também correlação epistemológica, quando se refere à pressuposição de que todo conhecimento da realidade é baseado num fundamento suficiente e necessário. Esta forma se refugia no princípio lógico da razão suficiente e consiste na axiomatização dos atributos de determinada tese, convertidos em postulados.

Nos dias atuais, o fundamentalismo epistemológico é transformado em tecnocientífico, visão da ciência como única forma de acesso ao real.265

Só que o desprezo pelas outras fontes do saber induz à cegueira para com os efeitos maléficos do domínio do homem sobre a natureza. E essa atitude tem levado à destruição sistemática do meio ambiente natural, pois, após dominar a natureza, o homem a destrói, ameaçando seu próprio futuro. A ideia cartesiana de que o homem tem que dominar a natureza é então levada ao paroxismo.

Concatenada com o fundamentalismo tecnocientífico, viceja outra forma igualmente perniciosa e ameaçadora. É o fundamentalismo economicista, que se alimenta do epistemológico e apresenta o modo capitalista de produção, a economia de mercado e o neoliberalismo como solução única e definitiva para todos os problemas sociais. Excluem-se maniqueistamente todas as graduações de organização social, política e econômica

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que não estejam firmemente calcadas nos modelos econômicos cinzelados por seus teóricos,266 e forjam-se doutrinas metaéticas para justificá-las.

Esta missão tem sido cumprida com eficiência pelos aprioristas e aposterioristas retroanalisados, pois a recombinação do fundamentalismo economicista neoliberal com a questão dos direitos humanos transforma essas correntes tradicionais em espécie de fundamentalismo ético-jurídico. Especialmente entre os empiristas, trata-se da articulação entre a elaboração lógica do problema dos fundamentos com os conteúdos ideológicos das normas com que se pretende positivar os critérios metaéticos criados no contexto de uma justificação não metafísica.

Os propósitos ideológicos positivistas que levaram ao fundamentalismo ético, paradoxalmente, hauriram o que apresentam de conteúdo substancial no pensamento especulativo da tradição iluminista, cujo banimento da investigação científica foi justamente o que o positivismo pretendeu determinar.

Em suas variadas expressões, o positivismo jurídico pareceu sepultar o transcendentalismo jusnaturalista, mas o que de fato ocorreu foi um processo de positivação de princípios calcados no direito natural, os quais foram desligados de sua gênese metafísica para alicerçar-se nos elementos lógicos e epistemológicos construídos pelo positivismo.

Entretanto, para dar maior visibilidade ao aspecto racional desse desvio, seus cultores o fizeram dentro da teoria constitucionalista, ou seja, desenvolveram uma doutrina metafísica sob a aparência de investigação dogmática, mas valeram-se do instrumental da filosofia analítica, que exaltava o positivismo e tratava de modo...

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