Apropriação Indébita

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas597-618

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18.1. Apropriação indébita: características típicas

Objetividade jurídica. A apropriação indébita, delito consagrado no art. 168 do CP, viola patrimônio alheio, bem jurídico penalmente tutelado com a incriminação.

Como o crime descortina índole patrimonial, segue-se que a apropriação de coisa desprovida de qualquer valor econômico ou que apresenta singelo valor sentimental é atípica, pois aperfeiçoa o denominado delito de bagatela, oriundo do princípio da insignificância (v. n. 1.9). Se o bem enverga pequeno valor ocorre apropriação indébita privilegiada (art. 170, CP - v. n. 13.10).

Núcleo do tipo e distinção de outras figuras típicas afins. Apropriar-se, núcleo do tipo, transmite a ideia de tomar algo como propriedade, de modo que exprime noção de conduta por meio da qual alguém faz sua uma coisa alheia. Até aí, a conduta incriminada poderia perfeitamente servir como moldura para um furto, roubo ou estelionato, com os quais estaria a identificar-se, porque nesses crimes o agente igualmente toma para si algo que não lhe pertence, variando, apenas, a forma ou a maneira de execução. Todavia, a apropriação indébita exibe componentes especiais que demarcam nitidamente sua periferia típica e a fazem diferir dos citados delitos.

O crime em comento apresenta a tônica, regra geral, da quebra de confiança de parte do sujeito ativo em relação à vítima. Isso se deve ao fato de a posse do bem pelo agente, e do qual ele se apropria, decorrer da tradição livre, consciente e isenta de erro, que a vítima, por relação jurídica ou fática, lhe fez, sem transferência do domínio, para um uso determinado. Esse aspecto (livre tradição do bem sem a nódoa do erro) é o verdadeiro divisor típico da apropriação indébita de outras figuras de crimes patrimoniais.

Tal como no furto, roubo ou estelionato, também a apropriação indébita denota conotação patrimonial pelo assenhoreamento ilícito de coisa alheia efetivado pelo sujeito ativo. A apropriação indébita se diversifica destas outras entidades criminosas, fundamentalmente, por questões puramente temporais no que tange ao momento e modo mediante os quais o agente obtém a posse do bem alheio e manifesta o propósito de apoderar-se dele.

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De feito.

No furto, roubo ou estelionato a posse da coisa alheia é obtida com a própria conduta, pela subtração nos dois primeiros crimes e pela consciente entrega do bem, contudo iludida e ludibriada a vítima, na última figura criminosa. Desse modo, é claramente perceptível que nos referidos crimes o dolo do agente, voltado para a obtenção do proveito ilícito, precede ou é concomitante à prática da conduta, pois o sujeito ativo, ao realizá-la, se encontra pleno de resolução criminosa para adquirir o poder físico sobre a coisa. Na apropriação indébita, ao reverso, o agente, quando da deliberação criminosa, já está na posse ou na detenção direta e desvigiada da res, obtida de forma lícita, sem vícios ou máculas, pela livre e desenganada tradição do bem anteriormente efetuada pelo lesado, e simplesmente converte, em momento posterior, subjetivamente, o título pelo qual possui ou detém a coisa. Vale dizer: na apropriação indébita há dolo superveniente, posto já tivesse o agente a coisa legitimamente sob seu poder, e o crime se perfaz justamente pela conversão subjetiva que ele opera ao resolver fazer o bem integrar o próprio patrimônio, deixando de ter a coisa em nome alheio (alieno nomine) para tê-la como sua (ut dominus,), de modo a exercer posse pro suo.

A propósito, professa Nélson Hungria:

"O que caracteriza a apropriação indébita, distinguindo-a do furto, do roubo e do estelionato, é que não representa uma violação da posse material do dominus: a coisa não é subtraída ou ardilosamente captada a este, pois já estava no legítimo e desvigiado poder de disponibilidade física do agente. Enquanto no furto, no roubo e no estelionato o poder de fato sobre a coisa é obtido com o próprio crime, na apropriação indébita, ao contrário, esse poder precede ao crime, forrado o agente ao esforço de granjeá-lo (...). Diversamente daqueles crimes, na apropriação indébita não há um dolus ab initio, mas um dolus subsequens: a malícia do agente sobrevém à posse ou detenção lícita da res"1945.

Nessa conjuntura, comete apropriação indébita quem, numa locadora, tendo alugado filmes em DVD, posteriormente resolve não proceder à devolução para ficar com os filmes, inexistindo cláusula de ressarcimento no contrato. Se o sujeito ativo, porém, pleno de resolução criminosa, abre cadastro com nome e endereço fictícios, visando, ardilosamente, desde o início, a locar os filmes em DVD para, iludindo a vítima mediante este artifício, obter a posse dos filmes para deles assenhorear-se, o crime que se desenha é o estelionato. Se o agente simula interesse na locação e passa a examinar os filmes nas gôndolas ou prateleiras de exposição para, sub-repticiamente, apoderar-se de alguns deles e levá-los consigo ocultos em suas vestes, o crime perpetrado é furto. Se houver violência ou grave ameaça para o apoderamento, configura-se o roubo.

Na maioria das vezes, destaca Quintano Ripollés, o comportamento é omissivo, pois o agente deixa de devolver a coisa alheia para utilizá-la em proveito próprio, com

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animus domini1946. Via de regra, uma conduta comissiva (expor ou oferecer o bem à venda, consumar a transação etc.) apenas exterioriza a inversão do título da posse realizada subjetivamente pelo sujeito ativo.

A ratio da incriminação da apropriação indébita, destarte, reside na necessidade de proteger a propriedade contra os abusos do possuidor que tenha a intenção de dispor de uma coisa como se fosse o dono1947.

Sempre é indeclinável que a preexistente posse do bem pelo sujeito ativo seja exercida desarmada de eventual vigilância vitimária. Assim sendo, comete furto o vendedor de uma loja ao assenhorear-se do numerário do empregador, pois sobre o dinheiro que recebe no balcão não exerce detenção desvigiada, porque está sob constante vigilância do patrão proprietário. Apropriação indébita, porém, perpetra o representante comercial que se assenhoreia das importâncias recebidas, pois se encontra fora da esfera de vigilância do lesado1948. Comete furto, e não apropriação indébita, o carregador que vem a apossar-se da mala da qual tem a detenção durante o transporte1949. Da mesma forma, a posse do continente não importa posse ou detenção do conteúdo, quando aquele se encontra fechado de modo a revelar a vedação do acesso a aquilo que contém. Exemplifica Hungria: se alguém é incumbido de transportar um cofre-forte fechado contendo valores e, no caminho, arromba o cofre para apropriarse desses valores, comete furto qualificado pelo rompimento de obstáculo, e não apropriação indébita, uma vez que, se tinha a livre disponibilidade de fato do cofre, não a tinha em relação aos valores, cuja apprehensio teve de conquistar mediante violência contra a coisa1950. O mesmo se diga das caixas de segurança que os bancos costumam alugar aos clientes (ou de armários de vestiários em clubes ou empresas, cofres em quartos de hotel etc.). O banco (ou clube, empresa, hotel), que é proprietário do cofre (ou armário), não tem a posse do conteúdo. Se um funcionário do estabelecimento abrir o cofre (ou armário) para subtrair valores nele contidos, estará praticando o crime de furto1951. Não basta, portanto, o mero e fugaz contato material do agente com a coisa. Vejam-se as hipóteses de furto qualificado pelo emprego de fraude (v. n. 13.13).

Sujeitos do delito. O crime é próprio ou especial: sujeito ativo somente pode ser quem se encontrava na posse ou detenção legítima, direta e desvigiada do bem. O condômino, co-herdeiro ou sócio que se apodera da coisa comum que se acha sob sua posse também pode ser sujeito ativo, exceto - por analogia in bonam partem do art. 156, § 2º, do CP - se a coisa é fungível e seu valor não exceder a cota a que tem direito. Se a apropriação é procedida por funcionário público pode tonalizar-se o crime de peculato se o bem estava sob a guarda ou custódia da administração (art. 312, CP).

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Sujeito passivo é aquele (pessoa física ou jurídica) que sofre a perda do bem.

Objeto material. Somente coisas alheias móveis ou que possam ser mobilizadas

(v. n. 13.3) podem constituir objeto material da apropriação indébita. Os bens imóveis não se prestam à adequação típica do crime porque insuscetíveis de apreensão, mas a hipótese pode configurar uma das modalidades de usurpação (Cap. 16).

Pouco importa se o bem é fungível, exceto em operação de mútuo, porque pode ser substituído pelo equivalente (reposição do tantumdem). Não há coisa mais fungível que o dinheiro. E, no entanto, quando ele não é objeto de simples empréstimo (mútuo) e se destina a um terceiro, tem sido o mais constante, frequente e preferido alvo da apropriação indébita. A posse ou a detenção, inclusive, pode ser efêmera. Bem por isso é que configura apropriação indébita o sujeito ativo desviar dinheiro e cheques que recebeu em confiança para efetuar depósito1952, assim como comete o crime quem, como caixeiro-viajante ou cobrador, assenhoreia-se de dinheiro que lhe havia sido confiado para entregar a um terceiro1953. Igual: o agente que vende a res que lhe foi entregue sob a condição de aliená-la e repassar a importância apurada na venda, mas não o faz, pratica apropriação indébita1954.

De outra banda, a origem do bem colocado sob a posse do agente deve ser lícita, assim como a própria posse deve apresentar-se coberta pela legitimidade. Do contrário, a apropriação superveniente configurará crime a outro título, mas não apropriação indébita. Quem...

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