A arbitragem e o mercado de capitais

AutorHaroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Páginas155-164

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1. O campo da arbitragem A arbitrabilidade

O campo em que se pode desenvolver a arbitragem ou, como também se pode designar, a esfera da arbitrabilidade, foi dado pelo art. 1o da Lei 9.307, de 23.9.1996, nos termos abaixo:

Art. 1o. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

O tema está sujeito à aplicação do princípio "kompetenz-kompetenz" (compe-tência-competência), segundo o qual é o próprio Tribunal Arbitral competente para decidir se a matéria a ele submetida preenche ou não o requisito da arbitrabilidade. Nestes termos, o instituto em questão consiste em prerrogativa a ser exercida com a máxima diligência, tendo em vista os efeitos negativos de uma decisão errônea. Mesmo que, no exercício de um verdadeiro poder jurisdicional de que são revestidos, os árbitros não possam ser responsabilizados pelos prejuízos causados por haverem tomado uma decisão inadequada em termos de arbitrabilidade (a qual depois venha a ser derrubada pelo Judiciário), a demora na reparação de tal erro certamente prejudicará ao menos uma das partes na pendência a ser resolvida.

Abram-se parênteses para esclarecer que a questão da responsabilidade civil e penal dos árbitros não será abordada neste trabalho, por fugir ao seu objeto, remetendo-se o leitor, entre outras fontes sobre tal questão a Carlos Alberto Carmona.1

Passando a discutir o campo da arbitrabilidade, verifica-se que direitos patrimoniais são aqueles relativos ao patrimônio das pessoas (naturais ou jurídicas), sabendo-se que o patrimônio é definido como o conjunto das relações jurídicas ativas e passivas suscetíveis de avaliação econômica. Neste sentido, como é notório, o ar atmosférico não corresponde a um bem econômico, enquanto a resposta é afirmativa quanto ao oxigênio líquido usado para fins industriais ou hospitalares.

De sua parte, disponíveis são os direitos em relação aos quais os seus titulares podem efetuar operações econômico/jurídicas, transacionando em relação aos mesmos. De maneira geral, como se sabe, os direitos de propriedade são disponíveis,

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caracterizando uma exceção legal em relação aos direitos relativos à herança de pessoa viva (NCC, art. 426).

Para Carlos Alberto Carmona são disponíveis os bens que podem ser livremente alienados ou negociados, por se encontrarem desembaraçados, uma vez atendido o pressuposto de que o alienante tenha plena capacidade jurídica para tal finalidade. Mais adiante o mesmo autor procura esclarecer ainda mais seu pensamento aduzindo que são arbitráveis as causas que tratem de matérias sobre as quais o Estado não haja criado reserva específica por conta da pro-teção dos interesses fundamentais da cole-tividade, desde que as partes possam livremente dispor do bem sobre o qual existe uma pendência. Neste sentido, são arbitráveis as controvérsias em relação às quais os litigantes possam transigir.2

No mesmo sentido, Selma Lemes afirma que os direitos patrimoniais disponíveis são aqueles em relação aos quais as partes têm livre disposição, com o fim de praticarem atos da vida civil. Acrescenta a autora que "o conceito de disponibilidade está relacionado com o de negocialidade e de bens suscetíveis de valor e livres no mercado".3

2. A arbitragem e as companhias

De outro lado, a Lei 6.404/1976, com a nova redação dada ao art. 109, § 3o pela Lei 10.303/2001, estendeu o campo original da arbitragem dispondo que:

O estatuto da sociedade pode estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionados mediante arbitragem, nos termos em que especificar.

Antes de prosseguirmos no estudo da arbitragem no mercado de capitais é necessário, do ponto de vista metodológico, que verifiquemos as relações (se é que existem) entre os dois dispositivos legais que re-instituíram a arbitragem na história recente do direito brasileiro, ou seja, conforme as hipóteses possíveis: (i) se a Lei 9.307/1996 e a LSA integram-se reciprocamente no campo sob exame, formando um único microssistema; ou (ii) se cada uma destas leis opera isoladamente, dentro de microssistemas independentes.

Aproveite-se para lembrar que o tema da arbitragem no mercado de capitais já foi objeto de alguns trabalhos, mas neles não se focou ao menos de forma mais incisiva a questão da arbitrabilidade, tal como é a intenção direta deste estudo.4

No primeiro caso, embora a LSA não haja feito menção, a matéria passível de arbitragem no campo das companhias também estaria limitada aos direitos patrimoniais disponíveis. Na segunda vertente, o campo da arbitragem em relação às sociedades anônimas teria sido sensivelmente ampliado, não se encontrando mais restrito às fronteiras da Lei 9.307/1996. Esta última parece ser a interpretação dada pela Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM), que funciona sob a órbita da Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa), para a qual seria significativamente amplo o conceito de arbitrabilidade, sendo consideradas controvérsias arbitráveis, nos termos do seu Regulamento:

Todas as controvérsias relacionadas ao mercado de capitais e às questões de cunho societário, decorrentes da aplica-

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ção, por exemplo, das disposições contidas na Lei das Sociedades por Ações, nos Estatutos Sociais das companhias, nos Contratos Sociais de sociedades limitadas, nos regulamentos de Fundos de Investimento, nas normas editadas pelo Conselho Monetário Nacional, pela Comissão de Valores Mobiliários e pelo Banco Central (destaques nossos).

No entanto, segundo nosso entendimento, a posição acima não merece ser acatada, tendo em vista que, tratando-se de instituto de caráter excepcional em relação à competência natural do Judiciário, a arbitragem foi instituída pela Lei 9.307/1996 e nesta deve subsumir-se a regra da LSA, mantendo-se íntegro o instituto dentro de uma concepção sistêmica unitarista que permitirá a construção de uma Teoria Geral da Arbitragem no direito brasileiro. Desta maneira, também em relação às companhias, está presente o limite relacionado aos direitos patrimoniais disponíveis quanto às sociedades anônimas, a ser determinado pelo operador do direito.

Mas a nossa preocupação vai mais além, pois o objeto deste estudo está relacionado com o exercício da arbitragem no mercado de capitais, cujos contornos devem ser, então, aqui demonstrados.

3. Conceito e integrantes do mercado de capitais

Como se sabe, o mercado de captais é regido fundamentalmente pela Lei 6.385, de 7.12.1976, encontrando na LSA normas complementares. Pode-se definir aquele mercado como o conjunto de instituições financeiras, companhias, entidades e operações relacionadas aos valores mobiliários. Os valores mobiliários, por sua vez, estão definidos mediante a adoção pelo direito positivo brasileiro de uma relação fechada, mesmo que de natureza ampla, conforme o disposto no art. 2o da Lei 6.385/1976, tanto do ponto de vista positivo, quanto negativo. Segundo outra possível visão, mais aberta, o mercado de capi-tais poderia ser definido pelo fato da negociação de valores mobiliários, que seria o seu objeto. Quanto às Bolsas de Valores, instituições financeiras, etc., classificar-se-iam como agentes intervenientes. Daí que o conceito de arbitrabilidade no caso seria mais amplo.

Art. 2°. São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:

I - as ações, debêntures e bônus de subscrição;

II - os cupons, direitos, recibos de subscrição e certificados de desdobramento relativos aos valores mobiliários referidos no inciso II;

III - os certificados de depósito de valores mobiliários;

IV - as cédulas de debêntures;

V - as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos;

VI - as notas comerciais;

VII - os contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários;

VIII - outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes; e

IX - quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.

§ 1o. Excluem-se do regime desta Lei:

I - os títulos da dívida pública federal, estadual ou...

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