Arranjos locais

AutorFábio de Oliveira
Ocupação do AutorProfessor do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Páginas45-74

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Autogestão? Não sei... seria quando não tem uma gestora, quando todo mundo vira essa ponte? Não sei... Será que é isso? Eu nunca ouvi falar de autogestão... Eu penso que seria isso, mas, lá na cooperativa, eu não fiquei sabendo disso não. Eu fiquei sabendo que sempre tem um gestor. Agora, sobre autogestão nunca soube não. Será que autogestão teria a ver mais com essa autonomia qu e... não sei, essa autonomia que o cooperado tem? Às vezes é isso. Não sei. Estou falando besteira?

(Rosemeire, terapeuta ocupacional, cooperativa de mão de obra).

Autogestão é o que a gente faz: estamos gerindo o nosso próprio negócio

(Adilson, almoxarife, cooperativa industrial).

Se podemos considerar as cooperativas como arranjos locais ou redes - nos termos propostos pela teoria do ator-rede -, prossigamos agora analisando suas diferenças no que se refere às relações de trabalho estabelecidas em cooperativas concretas e procurando elencar os principais elementos que se articulam para a produção dos diferentes sentidos, isto é, as matrizes que hoje permitem as variadas nuances do fenômeno.

Levando-se em consideração o exposto acima, a estratégia de pesquisa consistiu principalmente na inserção do pesquisador no campo do cooperativismo e na realização de entrevistas com cooperados pertencentes a diferentes empreendimentos.

Muitas conversas com cooperados ocorreram ao longo da pesquisa e contribuíram sobremaneira para as reflexões aqui propostas, assim como também contribuíram o trabalho de exploração inicial do campo e as visitas às cooperativas e aos locais de trabalho nos quais atuavam nossos depoentes. Conversas com educadores, pesquisadores e estagiários que atuavam em algumas dessas cooperativas também foram importantes. No entanto, apenas algumas das conversas com cooperados foram gravadas em forma de entrevistas semiestruturadas. Essas entrevistas seguiram um roteiro prévio de questões norteadoras. Contaram com o auxílio de um pequena equipe de auxiliares de pesquisa, amparada e treinada pelo pesquisador principal, para o registro e a transcrição das entrevistas.

As entrevistas, 14 no total, foram realizadas seguindo-se os princípios de aproximação sucessiva do campo e de construção de hipóteses durante o processo, os quais orientaram a escolha dos entrevistados de forma gradual (Yin, 2001). Isto é, na sequência das entrevistas, uma nova entrevistas só foi realizada depois da análise prévia das entrevistas anteriores.

Como resultado desse processo, foram entrevistados sócios de nove cooperativas: uma cooperativa de produção industrial do ramo metalúrgico; uma cooperativa de mão de obra de profissionais da saúde que prestava serviços a um hospital; três cooperativas de alimentação, duas cooperativas de costura, uma cooperativa de serviços gerais e uma

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cooperativa de reciclagem. Foram realizadas quatro entrevistas com trabalhadores da cooperativa de mão de obra, três entrevistas com sócios da cooperativa industrial e entrevistas com um cooperado de cada uma das sete cooperativas populares.

Note-se que o pesquisador já havia estabelecido contatos e trabalhado com a maioria dessas cooperativas antes da realização desta pesquisa.

Sobre os procedimentos de entrevistas, deu-se ênfase à memória e buscaram-se relatos da relação do cooperado com sua cooperativa.

Privilegiou-se o diálogo entre formas distintas de expressão do cooperativismo para, através do contraste, reconhecer as categorias chaves que participam de sua montagem e apontar aquilo que concorre para compor os diferentes e sobrepostos sentidos, os fios que servem às várias tramas.

A análise que se segue orientou-se por essa busca e estrutura-se a partir da apresentação das condições de diferenciação, dos indícios das diferenças e da reflexão sobre elas.

1. Sobre as cooperativas e seus sócios

A cooperativa de mão de obra a que tivemos acesso é um dos vários empreendimentos que fornecem trabalhadores da saúde para hospitais privados e que têm abrangência nacional. Não se trata de uma cooperativa de médicos ou de profissionais que se associam para oferecer serviços de saúde, mas de uma cooperativa que faz a colocação de profissionais em hospitais convencionais.

O hospital para o qual trabalham nossos entrevistados optou pela contratação de mão de obra nesses moldes diante da crise do Sistema Único de Saúde, cujos repasses não tiveram reajustes por muitos anos, e da consequente necessidade de redução de gastos. Segundo Priscila, a psicóloga entrevistada:

"Os salários não aumentavam e chegou uma hora em que foi ficando impossível - eu não trabalhava aqui ainda, eu entrei pela cooperativa - ter funcionários CLT e pagar todos aqueles benefícios. Foi aí que se pensou na saída das cooperativas, porque aí quem arca com as despesas seriam os próprios cooperados, eles que têm que pagar os encargos. Na época, para algumas pessoas foi complicado, saíram" (Priscila, psicóloga, cooperativa de mão de obra).

Dessa cooperativa foram entrevistados quatro trabalhadores. Dois auxiliares de enfermagem, uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional.

As depoentes de formação universitária chegaram à cooperativa de modo indireto: souberam da existência da vaga no hospital, submeteram-se a um processo seletivo e só depois foram informadas de que deveriam associar-se à cooperativa para assumirem seus cargos. Os auxiliares de enfermagem entrevistados seguiram um caminho diferente: ficaram sócios da cooperativa e, em seguida, foram informados do concurso nesse hospital.

Caio, o auxiliar de enfermagem, trabalhava também em outro hospital, no qual era contratado sob a CLT.

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Quanto à cooperativa de produção industrial, ela é uma das várias empresas recuperadas existentes no Brasil. Depois de ser anunciado seu fechamento, a empresa passou para o comando dos trabalhadores, que receberam parte do patrimônio como pagamento de dívidas trabalhistas.

O processo de negociação de uma alternativa ao fechamento da fábrica foi longo e mediado pelo sindicato dos trabalhadores metalúrgicos da região. A proposta de formação da cooperativa contou com o apoio de instituições ligadas ao cooperativismo.

Tornarem-se cooperados não foi propriamente uma escolha desses trabalhadores. A situação que se configurou durante a crise gerada pela antiga direção ao anunciar o fechamento da empresa foi a opção entre ficar desempregados ou constituir a cooperativa. Muitos funcionários saíram da empresa nessa época, especialmente aqueles mais qualificados.

As retiradas da cooperativa estão em média acima do piso salarial da categoria para cada profissão. Isso ocorre especialmente em relação às profissões que têm remunerações menores no mercado. Embora mantenham diferenças de rendimentos mensais em razão das diferentes profissões (o que não deixa de ser um vestígio da divisão de saberes inaugurada pelo taylorismo-fordismo), a proporção da maior para a menor retirada mensal caiu consideravelmente. Hoje, o maior valor corresponde a nove vezes o menor, enquanto antes correspondia a quinze vezes. Quanto às sobras ao final do ano fiscal, elas são divididas igualmente entre todos os sócios sem distinção por profissão.

Trata-se de uma cooperativa em transição. Isso aparece em vários aspectos, como na forma de seu funcionamento e nas falas dos sócios. Assim, a cooperativa ainda guarda marcas da empresa "tradicional" que um dia foi, mas as mudanças fundamentais pelas quais passou faz com que essas mesmas marcas se manifestem de forma peculiar, como veremos adiante.

Para a conveniência da análise e pelas suas semelhanças, as pequenas cooperativas - de alimentação, de costura, de serviços diversos e de reciclagem - às quais pertenciam sete dos entrevistados foram agrupadas sob o rótulo de cooperativas populares ou cooperativas de economia solidária. Embora diferentes entre si, essas cooperativas, em seu conjunto, revelaram maiores contrastes em relação às outras cooperativas estudadas do que entre elas mesmas.

As cooperativas populares cujos sócios tivemos a oportunidade de entrevistar foram todas formadas por incubadoras universitárias e em projetos fomentados pelo poder público. São constituídas por pessoas muito pobres e suas atividades dividiam-se entre a produção artesanal ou a prestação de serviços.

Se a cooperativa de mão de obra e a cooperativa de produção industrial garantiam rendimentos iguais ou acima do mercado em função das profissões de cada cooperado, as cooperativas populares investigadas, por diversas razões, apenas permitiam aos entrevistados obter pequenas retiradas. Essa não é a regra das cooperativas populares em geral, que têm realidades muito distintas, mas no caso das cooperativas aqui estudadas, era essa a principal dificuldade enfrentada pelos cooperados.

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Tanto na cooperativa de produção industrial, quanto nas cooperativas populares, algo que marcou as conversas foram os relatos heroicos das histórias de suas fundações. Esses relatos, quase sempre emocionados, demonstram a dimensão das dificuldades enfrentadas e também a forma como, através da luta, os vínculos entre os cooperados se solidificaram ao longo do processo de constituição de seus empreendimentos.

A partir da exploração do campo e das conversas com trabalhadores das cooperativas descritas acima foi possível elencar um conjunto de temas relevantes para a compreensão das relações de trabalho e dos sentidos do cooperativismo presentes nesses empreendimentos. Cada um desses...

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