Artesania da Educação em Direitos Humanos: práxis da reconciliação entre Direito, Educação e Arte

AutorAssis da Costa Oliveira
CargoGraduando em Direito pela UFPA (9º semestre).
1. Introdução

A artesania da educação em direitos humanos é um emaranhado teórico de intercalação prática entre Direito, Educação e Arte.

Tomamos de empréstimo o termo “artesania” desenvolvido por João Batista Herkenhoff no contexto de sua artesania democrática. Para ele, a democracia é uma construção artesanal da sociedade, no sentido de ser feita pelas mãos e para o bem do povo, do qual o jurista tem um papel estratégico, também como artesão, no seu desenvolvimento, colocando seu saber a serviço das causas populares.1

O sentido empregado por Herkenhoff de artesania é o mesmo que assume o dicionário Aurélio Buarque de Hollanda para artesanato, o de produto do trabalho do artesão. A artesania da educação em direitos humanos emprega esse significado lingüístico, sendo, portanto, o produto democrático do trabalho de seus artesões em determinadas prática educacional, mas o emprega num viés político-pedagógico, de reconstrução desse produto pela incorporação do segundo sentido de artesania: a artística.

Por isso, ao lado da perspectiva lato sensu de artesão – a de indivíduo que exerce uma arte ou ofício, portanto um artífice, inventor, autor ou criador, inserido na primeira designação que se pode dar a palavra arte, exposta por Arcângelo R. Buzzi como “a maneira de fazer bem, de ocupar-se bem, de entreter-se bem”2 – há toda uma outra percepção mais subjetiva do termo, impregnada nas implicações emocionais e estéticas que ela fomenta nos seres humanos, e de suas conseqüências práticas dentro de uma educação em direitos humanos direcionada para a construção de um mundo mais humano.

A artesania da educação em direitos humanos faz-se pela conjunção de uma prática educacional voltada para os direitos humanos que utilize a arte como linguagem comunicante e estimulante dos participantes desse processo. Mas não só isso. Dignifica a educação, inserindo-a numa proposta pedagógica que seja, em si, a afirmação dos direitos humanos, do direito à educação de qualidade e do comprometimento ético com a vida, com o desenvolvimento intersubjetivo dela.

A construção teórica da artesania da educação em direitos humanos se deu em parte devido a experiência adquirida na condução do projeto de extensão universitária do curso de Direito da Universidade Federal do Pará (UFPA) denominado “Juventude Cidadã: conquistando direitos, sensibilizando deveres”, pertencente ao Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular “Aldeia Kayapó” (NAJUPAK), voltado para um trabalho de educação em direitos humanos junto a estudantes infanto-juvenis da Escola Estadual José Alves Maia, em Belém/PA, no decorrer de 2007. Também, embasa-se nas formulações teóricas de intelectuais que possuem trabalhos de proposição crítica na linha articulada. Por fim, possui aspectos de uma elaboração utópica, síntese reflexiva das duas outras parcelas contribuintes, que visa definir os desafios dessa proposta.

2. Onde tudo (não) começou: ciência moderna e o gargalo do sujeito

A passagem da Idade Média para a Idade Moderna ocorreu através da atuação de forças políticas e ideológicas que almejavam a ruptura com o pensamento dominante medieval, centrado no absolutismo da convergência das explicações dos fenômenos sociais e naturais na existência e conivência teológica. Tais forças, a principal sendo a burguesia, realizaram um esforço paradigmático de sobressaltar a razão pelo racionalismo científico para lograr não somente a superação de um estágio da humanidade, mas, como bem mostrou Marx, um novo modo de dominação. A sociedade iluminista alijou a razão da emoção; o pensar do sentir na constituição do sujeito ideal e universal burguês.

Não que tenha sido um pensamento original, pelo contrário. Buscou subsídios na tradição do pensamento greco-romano da antigüidade. O cientista iluminista é alguém que através de seus pensamentos iria retirar os seres humanos da caverna obscura da emoção irracional (leia-se: teológica). Da mesma forma como o mito da caverna de Platão demonstrava como deveria ser a atividade do filosofo na polis grega: superação das sombras das aparências pela contemplação da verdade das coisas via reflexão filosófica sobre o ideal.3

Daí a idéia de Augusto Comte – fundador da sociologia e da epistemologia positivista – de criar a hierarquia dos conhecimentos humanos, partindo da superstição religiosa à metafísica e à teologia até chegar a ciência positiva, cujo deslocamento ascendente, único realmente benéfico na sua visão, se daria pela ideal de progresso, “de modo que o desenvolvimento social se faria por aumento do conhecimento científico e do controle científico da sociedade.”4 De igual porte são as teses do evolucionismo social, corrente antropológica que traçava percurso histórico das sociedades que iniciavam por vivências primitivas e paulatinamente iam logrando a ascensão a status civilizados – cuja capacidade etnocêntrica5 dos antropólogos ocidentais de (pré)julgar as culturas analisadas era tanto maior quanto menores fossem as semelhanças dessas culturas com as ditas culturas avançadas ou civilizadas.

Em todos esses casos, a racionalidade se legitimava pelas certezas científicas, por seu poder de supressão do alternativo e submissão da emoção à razão.

Enrique Dussel, a esse sentido, bem adverte que mais do que a importação de um conteúdo do pensamento greco-romano, o que se importou dele foi uma forma de produzir verdades válidas, um método de pensar, ou melhor, de legitimar determinados pensamentos (os científicos europeus) e depreciar tantos outros (os das culturas não européias, como as latino-americanas, africanas e asiáticas). Por isso escreve Dussel que “não se deve confundir o conteúdo da eticidade cultural com a formalidade propriamente filosófica no tocante ao método que se originou na Grécia”.6

A expressão “penso, logo existo”, de René Descartes, talvez seja a melhor síntese da construção histórica da ideologia moderna. Somente o pensamento (razão) me dá garantia de que existo, pois é a única coisa que está acima das dúvidas existenciais que estabeleço. A verdade, para Descarte, é o concebido de forma maneira nítida e distinta pela razão; pelo sujeito da (cons)ciência.7

A postulação cartesiana se tornou hegemônica e atravessou séculos, mares e continentes. Nossas escolas e universidades aprenderam com ela a estabelecer separações estruturais e culturais entre arte e ciência: as disciplinas naturais e sociais para um lado (o utilitário); as disciplinas artísticas para outro (o prazeroso). Se pelo ensino fundamental e médio ainda se lecionam algumas artes, como as plásticas, na educação superior esse processo foi há muito separado.

A base da pedagogia utilizada por essa ideologia hegemônica cartesiana é a punitiva e disciplinadora. Punitiva no sentido de que toda sua estrutura está baseada numa coerção direta ao indivíduo para que aprenda racionalmente algo. As notas e avaliações são os estágios mais visíveis dessa coerção, calcada, como afirma Wladimir Luz, “no binômio recompensa e castigo”.8 E disciplinadora porque, como bem adverte Michel Foucault9, visa a disciplina ou economia dos corpos pelos processos de padronização/normalização dos sujeitos.

Sua base é o fomento à meritocracia individual e a inserção de conteúdos abstratos descontextualizados com a realidade sócio-cultural do educando, personificada numa visão globalizadora e instrumental da educação, resultando numa assimilação acrítica do conhecimento. O valor de troca acima do valor de uso.

Ao racionalismo catersiano, assentado num sujeito senhor de si porque cientificamente racional, várias contraposições foram formuladas no século XX, de retorno a subjetividade emotiva, por um lado, e de revalorização dos processos de conhecimento alternativos ao pensamento ocidental universalizado, por outro. Citamos, por exemplo, o “desejo, logo existo” do pensamento psicanalítico freudiano;10 o “sinto, logo existo” proposto por Leonardo Boff;11 e, ainda, o “danço, logo existo” do filósofo africano Ebuissi Boulaga, síntese explicativa da trajetória filosófica africana excluída do leque de racionalidades válidas para o ocidente, mas que sai da invisibilidade ou desigualdade epistemológica para reforçar que na África é o ritmo, e não a razão, a força vital do ser-humano-africano:

“O tempo passa e volta, a força que se expande e recomeça manifesta a eternidade do Poder sem cessar emanante e expansivo da origem... A periodicidade é o tempo substancial das coisas... Tudo é alternância, ritmo... O ritmo é vital... O ritmo produz o êxtase, a saída de si que identifica a força vital... Não seria exagero dizer que o ritmo é a arquitetônica do ser, que, para o ser humano da civilização cuja filosofia expomos, a experiência fundamental, que escapa a todos os ardis do gênio maligno de Descartes, e que permanece fora de toda a dúvida, é: Je danse, donc je vis (Eu danço, portanto vivo).”12

Essas novas construções epistemológicas trazem a advertência que o filósofo Roland Barthes sintetizou na metáfora do saber/sabor, palavras que possuem a mesma raiz etimológica, no latim. Fazendo um paralelo entre a culinária e as escrituras, Barthes aduz que “na ordem do saber, para que as coisas se tornem o que são, o que foram, é necessário esse ingrediente, o sal das palavras. É esse gosto das...

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