Artisanal Fishing: contemporary expropriations and the reproduction of the archaic by capital/Pesca Artesanal: expropriacoes contemporaneas e reproducao do arcaico pelo capital.

AutorEscurra, Maria Fernanda
CargoTexto en portugu

Introducao

Em 1825, os 15000 aborigenes gaelicos estavam substituidos por 131.000 ovelhas. Os que foram lancados na orla maritima procuraram viver da pesca. Transformaram-se em anfibios e, na expressao de um escritor ingles, viviam uma meia vida constituida de duas partes, uma na agua e outra em terra.

Mas a brava gente gaelica devia pagar ainda mais caro pela idolatria que seu romantismo serrano votava aos 'grandes homens' do cla. O cheiro de peixe chegou ao nariz dos grandes homens. Farejaram algo lucrativo atras dele e arrendaram a orla maritima aos grandes mercadores de peixe de Londres. Os gaelicos foram enxotados pela segunda vez. (Karl Marx)

Os pescadores artesanais, segundo Diegues (1983), se identificam como um grupo possuidor de uma profissao, entendida como o dominio de conhecimentos e tecnicas que permitem ao produtor subsistir e se reproduzir enquanto pescador. O fato de possuir a carteira de pescador profissional concretiza o sentido de pertencimento. A liberdade no trabalho para esses trabalhadores esta relacionada ao conhecimento adquirido ao longo de anos de experiencia e de saberes passados atraves de geracoes. O autor distingue o "saber-fazer" de "sabedoria", que nao diz respeito ao manuseio de um apetrecho de pesca, mas quando e onde utiliza-lo.

A atividade e realizada com embarcacoes de pequeno porte, ou ainda sem embarcacao, no caso da captura de moluscos. Sua area de atuacao e diversificada e depende do tipo de manancial onde o trabalho e realizado, como por exemplo, proximidades da costa, rios, lagos, baias e mangues. Os equipamentos utilizados para pescar variam segundo as especies a serem capturadas (anzol, espinhei, tarrafa, armadilha, rede, etc.)--aspectos que interferem, tambem, na propria jornada e no processo de trabalho. Uma parte importante dos pescadores artesanais vive em comunidades litoraneas rurais, mas alguns vivem em bairros urbanos ou periurbanos (DIEGUES; ARRUDA, 2001).

O aumento da producao pesqueira capitalista das ultimas decadas traz como resultado o grande desenvolvimento das forcas produtivas, mas reproduz a existencia dos pescadores artesanais inseridos na pequena producao mercantil, que dependem do capital comercial para a venda da sua producao a precos baixos. Inclusive, "o capital se utiliza da pequena producao mercantil para sua propria expansao, que e realizada a baixo custo, uma vez que a reproducao da forca de trabalho continua a cargo dos pequenos produtores e suas familias" (DIEGUES, 1983, p. 272). Resumidamente, pode-se dizer que a pesca artesanal se caracteriza pela forca de trabalho familiar. Para esses trabalhadores as relacoes de familia representam suas relacoes sociais imediatas, embora a dependencia invisivel com o capital seja fundante de sua existencia como pessoa e consciencia. (MARTINS, 2002).

O impacto da producao pesqueira capitalista na pesca artesanal pode ser problematizada recorrendo a analise desenvolvida por Fontes (2010), no primeiro capitulo de O Brasil e o capital-imperialismo, onde a autora examina os novos e profundos processos de expropriacao impulsionados e promovidos pelo capital portador de juros e sua importancia para compreender as consequencias da dinamica capitalista da concentracao de capitais em esferas especificas. Ela se refere ao processo de expropriacao intensa e acelerada, que traz novas e poderosas contradicoes, e a necessidade de levar em conta a particularidade e complexidade de cada caso, compreendendo cada singularidade e sua conexao com a totalidade do processo. Nesse sentido,

qualquer analise que desconsidere a magnitude das expropriacoes e sua correlacao direta com a concentracao de capitais tende a velar enorme ampliacao de relacoes sociais capitalistas atraves do mundo, um dos elementos mais fundamentais da atualidade, e tornar-se impotente diante das gigantescas e complexas contradicoes que elas envolvem (FONTES, 2010, p. 53).

Sob tal otica, e tendo como foco diferentes processos que podem ser entendidos como resultado de expropriacoes, essa e a preocupacao central deste trabalho. A estrutura do texto e a seguinte: o primeiro ponto, intitulado Expropriacoes contemporaneas ou espoliacao?, resgata a analise marxiana do processo de expropriacoes e a forma como Fontes (2010) e Harvey (2005), autores marxistas contemporaneos, compreendem as expropriacoes resultantes da acumulacao primitiva, assim como as expropriacoes atuais e seu papel na dinamica capitalista. O segundo ponto, sob o titulo

Externai idades ou subordinacao de todas as formas de existencia ao capital?, expoe, de forma sucinta o debate que Fontes estabelece com Harvey, pois oferece consideracoes importantes para pensar a particularidade da pesca artesanal. No terceiro, Consideracoes sobre a particularidade da pesca artesanal, sao apresentadas reflexoes visando articular a pesca artesanal com as questoes desenvolvidas nos dois primeiros pontos. Por ultimo, nas Consideracoes finais e exposta uma breve sintese de questoes abordadas no artigo.

  1. Expropriacoes contemporaneas ou espoliacao?

    No capitulo XXIV de O Capital, Marx afirma que os metodos da acumulacao primitiva nada tem de idilicos e desenvolve a analise do segredo da acumulacao primitiva contraria a ideia de que ela legitimaria a concentracao da riqueza social em algumas maos. O processo de expropriacao e condicao de existencia de capital, pois "como os meios de producao e os de subsistencia, dinheiro e mercadoria em si mesmos nao sao capital" (MARX, 1994, L. 1, V. 2, p. 829), e preciso que haja uma transformacao precedente que somente em determinadas circunstancias pode se dar. Em suma, essas circunstancias se reduzem ao confronto de duas especies bem diferentes de possuidores de mercadorias: de um lado, o proprietario de dinheiro, de meios de producao e de meios de subsistencia, que, empenhado em aumentar a soma de valores que possui, compra forca de trabalho alheia, e do outro, os trabalhadores livres, vendedores da propria forca de trabalho. Na sua analise, entendem-se trabalhadores livres em dois sentidos, porque nao sao parte direta dos meios de producao (como escravos e servos) e porque nao sao donos dos meios de producao, como o campones ou artesao autonomos. Para a problematizacao que se propoe esse trabalho e para poder avancar na compreensao de processos de expropriacao em escala ampliada, e importante resgatar a seguinte passagem:

    o sistema capitalista pressupoe a dissociacao entre trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais realizam o trabalho. Quando a producao capitalista se torna independente, nao se limita a manter essa dissociacao, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria o sistema capitalista consiste apenas no processo que retira ao trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, um processo que transforma em capital os meios sociais de subsistencia e os de producao e converte em assalariados os produtores diretos. A chamada acumulacao primitiva e apenas o processo historico que dissocia o trabalhador dos meios de producao. E considerada primitiva porque constitui a pre-historia do capital e do modo de producao capitalista. (MARX, 1994: L.I, V.2, p. 830--grifos nossos).

    Na historia da acumulacao primitiva, sao importantes todas as transformacoes que servem de alavanca a classe capitalista em formacao. (1) Ainda em relacao a expropriacao que se processa atraves da acumulacao primitiva do capital, pode-se acrescentar que:

    ela se realiza atraves de uma serie de metodos violentos dos quais examinamos apenas aqueles que marcaram sua epoca como processos de acumulacao primitiva do capital. A expropriacao do produtor direto e levada a cabo com o vandalismo mais implacavel, sob o impulso das paixoes mais infames, mais vis e mais mesquinhamente odiosas. (MARX, 1994, L.I, V.2, 880).

    Segundo Marx (1994), a propriedade privada obtida com o esforco pessoal, (2) resultado da identificacao do trabalhador individual independente e isolado com suas condicoes de trabalho, e suplantada pela proprie dade capitalista (3) atraves da expropriacao. A propriedade capitalista fundamenta-se na exploracao do trabalho alheio, livre apenas formalmente. Cabe lembrar que Marx nesse contexto assinala que tal processo nao e infinito, porque, chegado a certo grau de desenvolvimento, esse modo de producao gera os meios materiais de seu proprio aniquilamento, e pretender eternizalo significaria "decretar a mediocridade universal" (MARX, 1994, L.I, V.2, p. 880, grifos nossos).

    A existencia do trabalhador despossuido de todos os meios de sustento, mero proprietario de sua propria forca de trabalho, o converte em virtualmente "pauper", pobre virtual. Em relacao a nocao de trabalhador livre, Marx nos Grundrisse afirma:

    No conceito de trabalhador livre ja esta implicito que ele e pobre: virtualmente pobre. De acordo com suas condicoes economicas, ele e simples capacidade de trabalho viva, ou seja, dotado...

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