As alterações do código de processo civil em matéria de execução e suas repercussões na nova lei de falências

AutorMaria Celeste Morais Guimarães
Páginas127-136

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I - Considerações iniciais

O escopo do processo de falência, como se sabe, reside no interesse coletivo. O instituto é marcadamente de ordem pública, muito embora vise resolver em conjunto questões de interesses essencialmente privados. Para Jaeger apud Requião (1986: 23): "Mais do que a realização da par conditio creditorum ou o saneamento do meio empresarial, o que dita a especialidade do processo concursal falimentar são os supremos interesses da economia nacional".1

A esses princípios, acresça-se um outro de igual importância, que constitui um dos objetivos do instituto falimentar: a garantia geral do crédito, que deve ser promovida e assegurada pelo Estado, através da lei. A segurança do crédito é, assim, elemento essencial para a estabilidade económica e, nos países em desenvolvimento, como no caso do Brasil, instrumento básico para o seu progresso.

Em boa hora, portanto, o país intentou ampla reforma na sua legislação fali-mentar de modo a dotar o nosso ordenamento jurídico de uma lei moderna e consentânea com a permanente aspiração de crescimento económico e redução das desigualdades sociais. Não se obtém tal crescimento sem que haja o fortalecimento das empresas, o estímulo ao empreendedorismo e a liberdade de iniciativa.

Seguindo a tradição das leis falimen-tares no Brasil, a Lei n. 11.101/2005 permeia regras de direito material ao lado de normas de direito processual.

Por isso, as recentes alterações introduzidas no CPC, por meio das Leis n. 11.232, de 22 de dezembro de 2005 e 11.382, de 6 de dezembro de 2006, repercutiram no processo de falência, nota-damente no tocante a causa de pedir com fundamento no art. 94, inciso II, da Lei n. 11.101/2005, que trata da presunção de insolvência do empresário.

A primeira alteração - Lei n. 11.232/ 2006, transformou a execução por título judicial em simples cumprimento da sentença, e a segunda - Lei n. 11.382/2006, alterou a execução por títulos extrajudiciais. Porque tais alterações refletem no processo falimentar? Exatamente porque o credor

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pode requerer a falência do devedor, quando este, executado, por qualquer quantia líquida, não paga, não deposita e não nomeia à penhora bens suficientes dentro do prazo legal.

O requerimento de falência, nesta hipótese, deve ser instruído com a certidão expedida pelo juízo em que se processa a execução, conforme prevê o art. 94, § 4°, da Lei n. 11.101/2005.

As recentes reformas do CPC alteraram profundamente a sistemática dos procedimentos judiciais relativos à execução por títulos judiciais e extrajudiciais, exigindo uma nova interpretação da lei de falência quanto ao pedido do art. 94, II, o que será objeto de nosso exame neste artigo.

II -A configuração do estado de falência

Para se ter uma noção exata do instituto da falência, é indispensável encará-lo à luz dos dois aspectos sob os quais ele se nos apresenta, isto é, como liquidação geral do acervo do devedor para a partilha entre os credores, quer dizer, como forma de execução coletiva, e como remédio conservatório de direitos, para evitar a dissipação do património do falido, em prejuízo dos seus credores.

Embora, pelo nosso sistema legal atual, a Lei n. 11.101/2005, a falência se caracterize pela impontualidade, como também pelos atos de insolvência praticados pelo devedor, tem aqui inteiro cabimento as palavras de Cesare Vi vante (1937:415):2 "Enquanto o ativo de um património excede o passivo, pode o legislador deixar que qualquer credor exerça separadamente o seu direito. Desde, porém, que o património não basta para todos, a liberdade de execução individual constitui um prémio aos credores mais diligentes, mais próximos, ou mesmo menos escrupulosos, em detrimento dos mais benévolos, ou mais afastados".

Nessa conjuntura, um dever de justiça social impõe ao legislador a obrigação de constituir um acervo de todos os bens do devedor, para que sejam repartidos proporcionalmente entre todos os seus credores, de modo que estes sejam companheiros nos prejuízos como o foram na confiança depositada no devedor comum. E isso se consegue pelo processo da falência.

"A falência é, pois, uma forma de execução coletiva que tem cabida quando o empresário, pela impontualidade, ou por outro meio previsto em lei, manifesta a impossibilidade em que se encontra de satisfazer a todos os seus credores" (Prates, 1954: 19).3

Nesse caso, faz-se, pela falência, a liquidação de todo o património realizável do devedor, para distribuí-lo em pagamento aos seus credores.

O credor que a requer pretende, pela liquidação de todo o património do devedor, obter, se não o pagamento integral do que lhe é devido, pelo menos o maior pagamento que lhe for possível conseguir.

Na falência, há a arrecadação de todo o património disponível do devedor e a convocação de todos os seus credores, para a defesa dos respectivos direitos. Feita a verificação e a classificação dos créditos, são os bens vendidos em hasta pública e distribuído o produto proporcionalmente aos credores, respeitadas as preferências legítimas.

Se não há bens a serem arrecadados, cessa a falência por falta de objeto; se os bens do falido e dos sócios solidários não forem suficientes para o integral pagamento dos credores, encerrada a falência, estes terão o direito de executar o devedor pelo saldo de seus créditos.

Convém, por fim, observar que há diferença entre o concurso resultante da falência e o que é regulado pelo Código de

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Processo Civil, aplicável ao devedor insolvente e que se instaura nos casos previstos pelo art. 750 do CPC.

Salvatore Satta (1932: 5),4 salienta a respeito que: "A diferença entre o procedimento concursal e o singular é que este se desenvolve a partir de um único credor para satisfação de seu crédito mediante a execução de um ou mais bens determinados do devedor. Mas este procedimento pode dar lugar a um certo ponto a um concurso de credores. Assim, não é a pluralidade de credores que caracteriza o procedimento concursal, mas a possibilidade de todos participarem na divisão do património do devedor".

Até o Código de Processo Civil de 1973, os institutos eram, de fato, comple-tamente diversos, pois ao devedor insolvente só cabia o concurso de credores como um simples incidente da execução singular, sem que se pudesse formar a massa de seus bens sob gestão judicial, nem tampouco se lograva a extinção das dívidas após a excussão de todo o património do insolvente.

O atual Código, todavia, dando satisfação a velhos reclamos da consciência jurídica nacional, a quem repugnava o tratamento discriminatório dispensado ao devedor insolvente, em tema de insucesso na atividade económica, deu novo tratamento à matéria, criando o instituto da insolvência civil, que se assemelha ao instituto fali-mentar, como registra a Exposição de Motivos ao Código de Processo Civil.5

Contudo, a falência não é simplesmente uma forma de execução coletiva, em que os interesses dos credores se rodeiam das melhores garantias, mas constitui, também, meio preventivo de prejuízos, do qual podem lançar mão os credores, em luta contra a fraude e a insolvência do devedor comum.

Esse caráter se acha acentuado no art. 94, incisos II e III, da Lei n. 11.101/2005, que imprime nitidamente ao instituto o feitio de remédio conservatório de direitos, provendo aos credores o meio de evitarem que o devedor em dia com os seus pagamentos, mas em graves dificuldades financeiras ou alimentando propósitos fraudulentos, venha a causar-lhes prejuízos.

Além da impontualidade prevista no art. 94, inciso I, a atual Lei repete a reda-ção do então inciso I, do art. 2-, do Decre-to-lei n. 7.661/1945, indicando, como, causa de pedir da falência, a hipótese do art. 94, inciso II.

Em face das alterações introduzidas pelas Leis n. 11.232, de 22.12.2005 e 11.382, de 6.12.2006, no Código de Processo Civil, o processo de execução foi inteiramente modificado, seja quanto aos títulos judiciais, como aos extrajudiciais, influindo, enormemente, no processo de falência com fundamento na hipótese, que denominaremos de "execução frustrada".

III - Sistemas de caracterização de falência

Como o instituto da falência pode ser focalizado por um duplo aspecto jurídico -o de direito substancial ou material e o de direito processual -, é natural que os autores, ao definirem-no, sigam uma ou outra orientação sob o aspecto peculiar a que aderem.6

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Como não nos deteremos nessa controvérsia, iremos analisar o instituto focalizando os pressupostos que o caracterizam.

Octavio Mendes (1930: 18)7 definia falência, ainda ao tempo do Decreto-lei n. 7.661/1945, como a "liquidação judicial da situação jurídica do devedor comerciante impontual".

Tal definição, acrescenta o citado autor, parece compreender todos os característicos da falência: é uma liquidação judicial, que só cabe contra o devedor comerciante, que a ela fica sujeito pela sua im-pontualidade, isto é, pela falta de pagamento, no vencimento, de uma dívida líquida e certa.

Parece-nos, porém, insuficiente a definição do saudoso professor, porque só abrange a falência como execução coleti-va, e não como meio conservatório de direitos, que ela também é, nos termos dos incisos lie III do art. 94, da Lei n. 11.101/ 2005, que correspondem ao art. 2° do Decreto-lei n. 7.661/1945, ora revogado.

Não é só da impontualidade que decorre a falência. Outros fatos a caracterizam, independentemente daquela condição. Parece-nos, pois, que no sistema legal brasileiro pode-se defini-la cornos liquidação judicial coletiva da situação jurídica do empresário impontual, ou que tenha praticado os atos enumerados pela lei no art. 94, incisos II e III da Lei n. 11.101/2005.

Como se...

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