As Antinomias em Direitos Humanos

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas193-230

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22. Antinomias principiológicas e ideológicas

Um dos problemas nucleares na teoria do direito é o choque de princípios, tema pelo qual ela se conecta com o direito constitucional na questão dos assim chamados casos difíceis (hard cases) do direito americano. Embora a expressão envolva situações que extravasam a aplicação das normas constitucionais, abrangendo quaisquer questões jurídicas que versem sobre casos complexos e polêmicos, pode-se restringir o seu significado aos conflitos que, levados à apreciação e julgamento do judiciário, admitem, ao menos aparentemente, mais de uma solução, seja em virtude da vagueza ou obscuridade da norma aplicável, seja em face da existência de duas ou mais igualmente válidas, seja ainda em face de lacunas da legislação.177Quando as alternativas propostas estão em oposição, sendo todas elas fulcradas em pressupostos igualmente válidos, geram-se situações de impasse designadas como antinomias. Antinomias propriamente jurídicas são as fundamentadas na legislação, ou seja, verificam-se quando mais de uma lei é cabível ao problema a equacionar. São as divergências que envolvem a hierarquia das leis e sua vigência no espaço e no tempo, cujo desenlace está normalmente ao alcance dos juristas, com base na constituição, na legislação ordinária e na jurisprudência.

Também as regras da lógica formal socorrem o jurista quanto às dissonâncias verificadas na relação entre normas gerais e especiais, admi-

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tindo-se que a especial prevalece sobre a geral. Pode-se assim falar em antinomias formais em contraposição às reais, que acontecem quando nenhum dos critérios formais é aplicável, ficando ao arbítrio do julgador o fecho da controvérsia.178A possibilidade de colisão entre normas, que contradiz o princípio da plenitude do ordenamento jurídico, é analisada por Barroso em três tipos: a) entre princípios constitucionais, b) entre direitos fundamentais e c) entre direitos fundamentais e outros valores e interesses constitucionais.179As antinomias reais geralmente envolvem dispositivos da constituição, havendo a oposição tanto de princípios gerais, expressos ou não, quanto de pressupostos ideológicos. Em tais situações, já não se fala em conflitos de leis, mas em antinomias propriamente, que podem ser de dois tipos: principiológicas e ideológicas.

As antinomias principiológicas ocorrem no nível dos princípios gerais de direito declarados na carta magna ou a ela subjacentes. As ideológicas se verificam entre os comandos mais gerais do ordenamento e constituem antecedentes dos próprios princípios. Esta divisão é meramente didática, pois todos os valores e crenças refletidos na constituição e nas leis são redutíveis a princípios. A ideologia do direito envolve princípios de natureza religiosa, ética e política e mesmo científica, como é o caso dos requisitos do ordenamento considerados racionais.180Ademais, a mesma expressão normativa pode ostentar um princípio geral e um conteúdo ideológico, pelo que a separação entre dois tipos de antinomias é problema hermenêutico, a ser solucionado com base nas regras gerais de interpretação jurídica e nas específicas da hermenêutica constitucional, inclusive os princípios in dubio e da proporcionalidade. A rigor, quaisquer que sejam as antinomias, elas apresentam um viés normativo e outro valorativo.

Igualmente, deve-se considerar que em direito não existem casos fáceis, pois tudo é discutível e se sujeita ao caráter essencialmente contencioso da experiência judicial. Uma caracterização de casos difíceis, envolvendo uma polêmica presente em autores como Hart, Dworkin, Carrió e Guirardi,181 está fadada ao insucesso. Por isso, é preferível que nos atenhamos às antinomias constitucionais, envolvendo questões de ordem prática

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que se apresentam perante o julgador e que o levam a decidir sobre a prevalência de determinado princípio sobre outros igualmente acolhidos na ordem constitucional. E tal problema impregna as discussões a respeito da fundamentação dos direitos humanos.

Não se pode esgotar a enumeração de tais imbróglios, mas alguns podem ser pinçados como emblemáticos, gerando antinomias propriamente principiológicas, que se revestem de singular relevância no que diz respeito à repercussão dos direitos humanos na experiência jurídica.

A primeira é a oposição entre o princípio da segurança jurídica e a tese algo modernista da relativização da coisa julgada. A outra é a aflição da guerra justa, quando se questiona o princípio da autodeterminação dos povos em face da violação sistemática dos direitos humanos pelos respectivos governos. E, finalmente, uma terceira questão, bem mais atual, decorre dos avanços da ciência e da medicina na reprodução humana assistida, na bioengenharia e na possibilidade da clonagem humana, quando se questiona o direito à vida de um embrião.

A exposição a seguir indica os contornos essenciais dessas controvérsias que repercutem nas legislações e nas lides judiciais, mas as bases teóricas para a sua disciplina somente poderão fluir das teses sobre a fundamentação dos direitos humanos, a serem examinadas no capítulo seguinte.

Inobstante essa limitação na escolha desses casos de difícil solução, impõe-se enfatizar que as mais expressivas antinomias atinentes aos direitos humanos não ocorrem no campo jurídico, não se restringem aos hard cases, mas têm caráter prevalentemente político e cultural, dificultando sua implementação. Estas é que são as propriamente ideológicas, pois envolvem discussões e argumentos de caráter tendencioso, que espelham certa visão da sociedade e do mundo que repercute na resposta dada à interpretação e aplicação das normas constitucionais.

A primeira dessas antinomias ideológicas contraria o princípio da universalidade apriorística, ao afirmar o caráter empírico e histórico dos direitos humanos. A perspectiva universal é fruto da ideologia jusnaturalista, compreendendo os direitos básicos da pessoa como espécie de ordem jurídica metafísica, enquanto a segunda perspectiva não vê outra realidade jurídica que não o elenco de prerrogativas básicas reconhecidas aos homens em função de seu desenvolvimento histórico e racional.

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Outra antinomia ideológica é a distância entre a concepção doutrinária dos direitos humanos e sua definição normativa na legislação. Existe a contradição entre a igualdade formal das pessoas com relação aos seus direitos básicos e as consideráveis desigualdades sociais e econômicas que as separam.

A disseminação da cultura cristã, uma das bases da civilização europeia, enfrenta o relativismo dos direitos encontrados na tradição de diferentes nações. É uma antinomia de caráter axiológico e religioso bem presente na realidade atual. A esta pode-se acoplar a questão do multiculturalismo, quando em confronto com o princípio da universalidade apriorística.

E uma quarta antinomia, que questiona o princípio da supranacionalidade da ordem jurídica protetora dos direitos humanos, basilar em direito internacional, refere-se ao fato de que, estando consolidados como universais e supremos, normalmente entram em conflito com as normas internas e mesmo as internacionais que reconhecem a soberania legal dos Estados. Também é uma antinomia bem atual, que incide sobre os atos governamentais, que, passado o despotismo, preocupam-se com a verdade histórica no sentido de elucidar o passado.

O julgamento de Nurembeg já rejeitara a alegação de que os responsáveis pelas atrocidades praticadas contra a população civil tinham agido na conformidade da lei e obedecido a ordens emanadas dos escalões superiores, elas mesmas legitimadas pelo ordenamento então vigente. Ao revés, os réus foram condenados com fulcro na tese jusnaturalista da existência de princípios racionais e éticos superiores, cuja inobservância tornava os atos praticados absolutamente indefensáveis.

No direito moderno, o argumento jusnaturalista é substituído pelo recurso ao direito internacional e, especialmente, ao princípio da universalidade, que atribui eficácia plena e imediata aos tratados e convenções inter-nacionais quando se trata de apreciar os delitos de lesa-humanidade. Além disso, desde o julgamento de Nuremberg, pode-se estabelecer a progressiva conscientização do preceito hermenêutico in dubio pro humanitate.

Esta quarta antinomia tem repercussão no direito interno, quando, no exame de situações individuais,182 opõe-se o princípio da defesa da cidadania contra a intervenção estrangeira nos negócios internos de um país.

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A cidadania é o último privilégio pessoal, o derradeiro remanescente pré-moderno da diferença de estatuto jurídico, o que contrasta com o entendimento praticamente generalizado da universalidade dos direitos humanos. E a antinomia fica então caracterizada, pois o reconhecimento da soberania legal dos Estados vem em socorro de seus cidadãos, mesmo aqueles enquadrados como autores de delitos contra os direitos humanos.

É compreensível, portanto, que a soberania articulada com a cidadania atue como obstáculo à universalidade, em virtude das condições sociais, econômicas e políticas, bem como das tradições religiosas que individualizam os povos e seus Estados. Esses fatores, muitas vezes engendrando ideologias nacionalistas e doutrinas fundamentalistas, impedem a aceitação de princípios propostos desde fora. Para que tenham eficácia, torna-se necessário certo grau de internalização, fazendo com que o povo, seus representantes e governantes amadureçam a convicção de que as normas internacionais correspondem a seu próprio caráter. É um problema político-ideológico interno e também responsabilidade das autoridades internacionais, que podem e devem reconhecer a natureza apriorística dos direitos humanos. Tal apriorismo, contudo, não é...

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