As autonomias das pessoas com deficiências intelectuais e cognitivas graves
Autor | Ana Paula Barbosa-Fohrmann e Luana Adriano Araújo |
Ocupação do Autor | Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ)/Doutoranda em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ |
Páginas | 79-104 |
AS AUTONOMIAS DAS PESSOAS
COM DEFICIÊNCIAS INTELECTUAIS
E COGNITIVAS GRAVES
Ana Paula Barbosa-Fohrmann
Professora Adjunta da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (FND/UFRJ). Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Direito da UFRJ. Pós-Doutora e Doutora pela Ruprecht-Karls Universität Heidelberg.
E-mail: anapbarbosa@direito.ufrj.br.
Luana Adriano Araújo
Doutoranda em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRJ. Mestre
em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará E-mail: luana.adria-
no88@gmail.com.
“Por meu campo perceptivo, com seus horizontes espaciais, estou presente à
minha circunvizinhança, coexisto com todas as outras paisagens que se estendem
para além dela, e todas essas perspectivas formam em conjunto uma única vaga
temporal, um instante do mundo; por meu campo perceptivo com seus horizontes
temporais, estou presente ao meu presente, a todo o passado que o precedeu e a um
futuro.” – Maurice Merleau-Ponty
“Fique você com a mente positiva/Que eu quero é a voz ativa (ela é que é uma
boa!)/Pois sou uma pessoa/Esta é minha canoa/Eu nela embarco/Eu sou pessoa!/A
palavra pessoa hoje não soa bem/Pouco me importa!” – Belchior
Sumário: 1. Introdução. 2. Quem são as pessoas com deciências intelectuais e cognitivas
graves? 2.1 Um lugar “entre” os modelos de deciência. 2.2 Repensar a pessoalidade para
reinterpretar as autonomias no fenômeno da deciência. 3. Igualdade na dependência: a ética
do cuidado de Eva Kittay. 3.1 Crítica feminista: a autonomia relacional e interdependente na
justiça igualitária. 3.2 Ética do cuidado: reinterpretar ou desqualicar a autonomia? 4. Revisão
do paternalismo e reestruturação da autonomia liberal em Thomas Gutmann. 4.1 Reanálise e
alternativas para se manter o conceito kantiano de autonomia. 4.2 Repensando o paternalismo
fraco sob o viés da ação autodeterminada. 5. O conceito limiar de autonomia em Michael
Quante e a proposta da contrafactualidade. 5.1 Autonomia: uma capacidade complexa, mas
binária. 5.2 Autonomia contrafactual: com Quante, contra Quante. 6. A bidimensionalidade
da autonomia em Ana Paula Barbosa-Fohrmann: prolongando a memória para reconhecer
a pessoa. 6.1 Análise em dois níveis: reformulação e ampliação de dignidade e autonomia
em Kant. 6.2 A aplicação das concepções de “autonomia” e “dignidade” aos sujeitos com
Alzheimer. 7. Conclusão. 8. Referências.
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ANA PAULA BARBOSA-FOHRMANN E LUANA ADRIANO ARAÚJO
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1. INTRODUÇÃO
Em virtude da concepção Kantiana de autonomia – segundo a qual o conceito se
constitui como o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda a natureza
racional –, torna-se objeto de reflexão o porquê de pessoas com deficiências intelectuais
e cognitivas1 graves não se qualificarem como autônomas devido à ausência de atributos
ou caracteres específicos. Em virtude dessa avaliação acerca da definição da autonomia,
citados sujeitos têm provocado desafios analíticos e jurídicos aos campos da Filosofia
Moral, da Filosofia do Direito e do Direito Civil, consubstanciados em questionamentos
diversos, tais como: Deve-se respeitar a vontade de pessoas com mencionadas deficiên-
cias, assim como se respeita a daquelas sem deficiências? Como se delimita a capacidade
desses indivíduos em exercer direitos e contrair obrigações na esfera privada? Afinal,
seriam esses sujeitos qualificados como pessoas no sentido normativo e descritivo? Se
sim, que compreensões de “pessoa” garantem o reconhecimento desses sujeitos como
moralmente iguais aos demais?
Considerando tais indagações, busca-se, a partir desta investigação, como objetivo
geral, realizar uma revisão de literatura acerca da estruturação conceitual da autonomia
para autores da Filosofia do Direito e da Bioética – mais especificamente Michael Quante,
Eva Feder Kittay, Thomas Gutmann e Ana Paula Barbosa-Fohrmann – cujas obras se
voltam para a temática das deficiências intelectuais e cognitivas graves. Em específico, a
investigação possui um rol de metas, cujo intento de logro se fez em duas partes.
Na primeira, busca-se caracterizar o sujeito com deficiência intelectual ou cog-
nitiva graves na classificação de modelos de deficiência, para arvorar-se na percepção
que fixa seu status moral de pessoa. Na segunda, almeja-se: expor o conceito de auto-
nomia em Quante enquanto uma definição de limiar, associada às capacidades para a
autodeterminação; compreender a crítica da dependência à igualdade, de Eva Kittay,
como pano de fundo de estruturação de sua perspectiva de autonomia; elucidar a
crítica erigida por Gutmann à concepção perfeccionista de autonomia, de natureza
filosófica, e seu impacto na formatação da autonomia jurídica, principalmente no que
1. Não se definirá “deficiência intelectual ou cognitiva” a partir de critérios diagnósticos, tais como os constan-
tes no Manual de Diagnóstico e Estatística e na Classificação Internacional de Doenças. Por outro lado, não se
considerará que aqueles que apresentam manifestações de ordem intelectual, cognitiva ou neurológica diversas
do quadro considerado neurotípico (Cf. BARNBAUM, 2013) possuam uma “deficiência mental”, “psíquica” ou
“psicológica”, pois, em primeiro lugar, não versam tais condições sobre o funcionamento mental, psíquico ou
psicológico desacoplado ou desnaturado de um corpo físico – o que levaria a um rejeitado dualismo cartesiano
– e, em segundo lugar, evita-se, desse modo, relações com os chamados “transtornos”, “doenças”, “distúrbios”
ou “sofrimentos” psíquicos. Seguindo Kittay e Carlson, propõe-se que a expressão “deficiência cognitiva” é mais
ampla que “deficiência intelectual”, albergando autismo, Alzheimer, demência e retardamento mental (2009),
acrescendo, ademais, esta última em virtude da tendência de sua utilização (SASSAKI, 2005). Reconhecem-se,
de início, as dificuldades de se costurar uma condição existencial de pessoa a partir de uma classificação que pre-
cede sua existência, categorizando um corpo antes que ele possa ser no mundo. As classificações de deficiências
tratam os corpos como “soma de objetos determinados” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 136), ignorando que cada
corpo é, antes, a atualidade de uma existência. Para repensar referida perspectiva classificatória, sem, contudo,
com ela romper abruptamente, as deficiências cognitivas e intelectuais serão abordadas sob uma tessitura aberta,
destacando mais seu contraste com o racionalismo do que sua materialidade essencial. Dessa forma, está-se em
conformidade com Wasserman et al (2017), que consideram a caracterização da deficiência intelectual e cognitiva
como “estipulativa”, sem se presumir que qualquer ser humano específico se encaixe nessa categoria.
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