Sobre as causas da mudanca de fundamentacao das normas sociais: de normas religiosas a normas juridicas/On the causes that social norms have their grounds changed: from religious norms to legal norms.

AutorCorreio, Josue Mastrodi

Introducao

O presente artigo tem por objetivo identificar as causas sociais legitimadoras da substituicao das normas de carater religioso e moral por normas juridicas de carater laico e amoral no Ocidente, no periodo de transicao da Idade Media para a Idade Moderna.

Tal pesquisa mostra-se importante na medida em que este movimento de substituicao de normas morais por juridicas tem relacao direta com a instituicao do Estado moderno e com a caracterizacao do sistema juridico tal como o conhecemos. O conteudo das normas sociais possuia um comando legitimado predominantemente pela tradicao moral ou religiosa, legitimacao esta que foi substituida por um novo fundamento que, aparentemente, se apresenta sem qualquer vinculo com valores morais e sem qualquer relacao com valores religiosos.

As normas juridicas e a estrutura estatal passam a ser entendidas como racionais e logicas. Por exemplo, o direito a moradia, que decorria da simples posse da terra, ainda que esta nao fosse de propriedade do morador, era legitimado pelas relacoes sociais que organizavam o sistema feudal. Com a racionalizacao das normas, essas relacoes sociais sao substituidas por novas, que legitimam a moradia somente a partir de um abstrato direito de propriedade: apenas o proprietario teria o direito -exclusivo e excludente- de usar e gozar de sua propriedade, sem qualquer espaco para o uso comunal, como costumeiramente acontecia ate entao.

Para compreender essa transformacao das razoes legitimadoras do Estado e do Direito, serao analisadas as estruturas sociais existentes na Inglaterra, no periodo de transicao do modo de producao feudal para o capitalista. Esta analise sera feita de modo pontual, indutivamente a partir de circunstancias ocorridas neste pais em momentos-chave da transicao de um modo de producao para outro.

Trataremos do poder social e politico da Igreja e da nobreza feudal; do poder de Estado dos reis; e tambem do poder economico da burguesia ascendente. Discorreremos sobre a conjuncao destas forcas--poder social, politico e economico--como reguladores normativos, isto e, impositores e fiscalizadores de regras. Num primeiro momento, regras religiosas e morais que posteriormente serao substituidas por regras laicas, racionais e, supostamente, desprovidas de conteudo moral, dissociadas de valores estatais ou classistas e que visariam a atingir a todos de forma igualitaria.

Na Inglaterra, essas circunstancias serao consideradas a partir dos processos de cercamentos--enclosures--e melhoramentos--improvements--, bem como da analise especifica do caso da Lei Negra, decretada no ano de 1723, e muito bem descrita no livro "Senhores e Cacadores", do historiador Edward Palmer Thompson. Tal situacao parece se repetir, seja como farsa, seja como tragedia, 118 anos depois, no Estado da Renania, regiao atualmente pertencente a Alemanha, onde foi, aprovada, em 1841, a Lei do Furto da Madeira, objeto de critica de Karl Marx, publicada na Gazeta Renana.

Procuramos, assim, identificar algumas semelhancas nos processos historicos apresentados, havidos com distancia temporal de um seculo entre a Lei Negra inglesa e a Lei sobre Furto de Madeira alema, sendo a principal delas a nova definicao de propriedade privada, definicao essa que possibilitou a positivacao das leis acima mencionadas, viabilizando a manutencao do dominio dos proprietarios de uma nova forma em que se autorizou excluir os nao-proprietarios ate mesmo do uso tradicional das terras para coleta de madeira, necessaria, como lenha, para preparo de alimento e calefacao.

Pretende-se mostrar, com a presente pesquisa, que o atual modo de producao, qual seja, o sistema capitalista, ao determinar novas relacoes economicas, impoe novos sentidos as relacoes sociais e precisa, para a manutencao de tais relacoes, da aplicacao de normas de conduta que devem ser respeitadas, ainda que seu conteudo seja considerado injusto se comparado com o conteudo das normas tradicionais. As normas de conduta havidas no capitalismo nao podem se fundamentar em moral ou religiao simplesmente porque estas impediriam a eficiencia desse sistema produtivo. Para que haja racionalidade entre o estagio das forcas produtivas e as relacoes sociais de producao, as normas de conduta devem fomentar a producao em sua maxima medida, algo impraticavel em um ambiente regido por normas religiosas ou morais, seja porque estas mantem a estrutura de poder das classes sociais nao-produtivas, seja porque impedem o desenvolvimento dos interesses da nova forca economica ascendente, representada pela burguesia.

  1. A origem e o desenvolvimento do capitalismo

    O embate das forcas sociais e economicas na Europa ocidental, a partir da baixa Idade Media, forma a chave do processo historico pelo qual se deu o surgimento do capitalismo, compreendido como novo modo de producao em relacao ao modo anterior, que determinou mudancas tanto na exploracao da atividade economica quanto na organizacao--juridica e estatal--da sociedade civil.

    No aspecto juridico, um dado importante foi o estabelecimento do conceito de propriedade privada a partir da caracteristica de sua exclusividade, pela qual se passou a impedir o uso ou o gozo de quaisquer bens--em especial a terra, a epoca bem de producao por excelencia--por outros que nao seu proprietario, algo que se estabeleceu em clara confrontacao ao costumeiro uso comunal ou comunitario dos bens medievais, em especial do uso comunal das terras por todos os moradores do feudo, uso este que era condicao de sobrevivencia dos servos da gleba. Esse costume, ou esse direito costumeiro ao uso comunitario da terra, e imemorial. O fundamento de sua validade, na civilizacao ocidental, remonta a tradicoes antiquissimas e a determinacoes de carater nitidamente religioso. De toda sorte, tal fundamento sempre atribuiu carga positiva, isto e, conferia legitimidade ao uso da terra pelos nao-proprietarios: era justo que assim procedessem. De igual modo, era injusto o proprietario que nao concedesse o uso da terra aos nao-proprietarios.

    A transformacao da propriedade privada em propriedade exclusiva e excludente, que proibe seu uso pelos nao-proprietarios, so ocorreu apos uma grande mudanca estrutural na sociedade, pela qual houve a modificacao do fundamento de validade das normas sociais, antes de base religiosa ou moral, para normas juridicas pretensamente racionais e sem vinculo com quaisquer tradicoes. E o caso tanto da Lei Negra, de 1723, na Inglaterra, quanto da Lei sobre Furto de Madeira, na Renania de 1841.

    O acesso a terra e aos frutos da terra pelos nao-proprietarios, sejam estes moradores da regiao ou mesmo estrangeiros, era garantido por ordenancas contidas em passagens da Biblia Sagrada, como no Livro de Deuteronomio, capitulo 23, versos 25 e 26, ordenanca confirmada no Novo Testamento, no Evangelho segundo Lucas, capitulo 6, verso 1: a qualquer um era licito comer frutos e espigas ao atravessar uma plantacao, embora fosse proibido ceifar ou colher para levar.

    A nocao de uso comunal dos bens e, em especial dos bens de producao, decorre da ideia de que todos devem possuir um minimo para sua sobrevivencia. Retornando ao Antigo Testamento, este permitia que viuvas e orfaos nao so colhessem, mas tambem levassem consigo os frutos e espigas caidos no chao. (1) Os produtores da terra nao tinham o direito de recolher os frutos caidos, pois estes eram considerados fonte de subsistencia dos orfaos e das viuvas. Tal norma consta do Livro do Levitico, capitulo 23, versiculo 22, algo confirmado no Livro de Ruth, capitulo 2, versiculo 3.

    O direito de propriedade era visto como um direito natural de toda a coletividade por Rousseau, grande filosofo do seculo XVIII que, em seu "Discurso sobre a Desigualdade", declarou ser a propriedade privada a causa do rompimento da igualdade ate entao, segundo ele, presente na sociedade civil. Em suas palavras,

    O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto e meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acredita-lo. Quantos crimes, guerras, assassinios, miserias e horrores nao pouparia ao genero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: "Defendei-vos de ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos sao de todos e que a terra nao pertence a ninguem!" (ROUSSEAU, 1973: 265). Toda essa transformacao da cessacao do direito natural e costumes, do surgimento da sociedade civil e do Estado Moderno, pode ser compreendida a partir do contexto historico em que tais situacoes estao inseridas.

    Durante os seculos X a XII, a sociedade europeia ocidental era feudal e estratificada, isto e, organizada em estamentos fixos, a saber, o eclesiastico, conhecido como primeiro estado; a nobreza, segundo estado, formada pelos proprietarios ou detentores, por titulo de suserania, de enormes glebas de terra; e, por fim, como ultima camada, o terceiro estado, os tipicos camponeses, servos responsaveis por toda a producao agricola, principal atividade da epoca. A maioria das terras da Europa ocidental era dividida em feudos, e cada um deles dominado por um unico senhor, seja este o rei, um barao ou mesmo a propria igreja, que poderia outorgar parte dessas terras a outros senhores por pacto de suserania. Os pastos e demais terrenos cobertos por plantas e/ou isolados eram usados em comum; no entanto, a terra aravel era dividida em duas partes, uma cujos frutos pertenceriam exclusivamente ao senhor e a outra, menos extensa, destinada ao consumo dos servos, que utilizavam ambas as partes para o plantio de alimentos e o fabrico de bebida, valendo-se da tecnica de cultura em faixas, isto e, plantacoes alternadas, de modo a sempre privilegiar a propriedade do senhor (HUBERMAN, 1986: 4-7).

    Na verdade, observa-se que havia uma serie de sucessivas relacoes de suserania e vassalagem em que a terra do rei -por exemplo- era concedida ao duque, que por sua vez concedia parte ao...

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