As complexas relações entre pobreza e meio ambiente urbano no Brasil

AutorVladimir Passos de Freitas
Páginas699-713

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1. Introdução

No início da preocupação ambientalista no Brasil o foco era restrito aos recursos naturais. Assim, nos anos 1930 diversas iniciativas foram tomadas. Em 1934, com o apoio do governo federal, foi criada no Rio de Janeiro a Sociedade Amigos das Árvores, na qual a natureza era valorizada como recurso econômico a ser usufruído racionalmente, além de ser objeto de culto e fruição estética2. Na mesma época, foi criada a Sociedade Amigos de Alberto Torres, que pregava o uso racional dos recursos naturais e direcionava seus estudos para os efeitos do desmatamento. É também de 1934 a criação do primeiro código florestal brasileiro, através do Decreto 24.646.

A segunda grande mudança deu-se nos anos 1960, com a adoção do chamado ambientalismo geográfico e a edição de normas legais protetoras da fauna e da flora. É desse tempo o Código Florestal que permaneceu em vigor até 2012 (Lei 4.771, de 18.09.1965), a Lei de Proteção à Fauna (Lei 5.197, de 03.01.1967), ainda em vigor, e o Código de Pesca (Decreto-lei 221, de 28.02.1967), parcialmente revogado pela Lei 11.959, de 2009.

Nos anos 1970 têm início as primeiras preocupações efetivas, resultado da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em 1972, em Estocolmo, Suécia, com a participação de 113 países. Surgem grupos ecológicos de pequeno impacto, cria-se em 1973 a Secretaria Especial do Meio Ambiente – Sema, vinculada à Presidência da República, publica-se o primeiro estudo jurídico sobre a matéria3, a primeira sentença proibindo o lançamento de esgoto não tratado nas águas do mar4 e edita-se o Decreto 1.413, de 14 de agosto de 1975, o primeiro a combater a poluição industrial.

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Nos anos 1980 agrava-se a situação urbana brasileira, fruto da migração campo-cidade e do crescimento demográfico. As cidades começam a ter prolongamentos urbanos, zonas periféricas, regra geral ocupadas por populações carentes que se veem obrigadas a abandonar a vida campesina em razão da mecanização da agricultura.

Não só a migração interna é fator de inchaço das cidades. As grandes barragens hidrelétricas contribuíram e continuam contribuindo para este estado de coisas. Sandra Cureau em estudo sobre a matéria comenta o impacto da mudança forçada nas populações tradicionais, que com o deslocamento perdem “relações construídas ao longo de muitos anos, as trocas e o apoio mútuo, o uso de locais de convivência, até o uso coletivo e a apropriação do espaço e dos recursos naturais, que não serão reproduzidos nos novos locais de assentamento”5. Boa parte dessas pessoas termina na periferia das cidades médias e grandes. O fenômeno não é brasileiro, mas sim mundial. Ronaldo Coutinho observa:

Nas próximas décadas, o Terceiro Mundo projeta-se como a área geradora de megalópoles: a indiana Mumbai saltou do 14º lugar no ranking mundial em 1975 para o 4º em 2007; Karachi, no Paquistão, passou a ocupar o 12º lugar, com 12 milhões de habitantes; e o mesmo quadro, em suas linhas essenciais, abrange Istambul (Turquia), Lagos (Nigéria) e Guangdong (China). Por outro lado, o grupo das megacidades do Primeiro Mundo tende à estabilização: em 1975, Paris era a 7ª mancha urbana do mundo, com 8,5 milhões de habitantes e em 2005 já ocupava a 21ª posição. Londres, megacidade do século XIX, deixou o grupo, porque cresceu muito menos do que as outras.6Simultaneamente, as preocupações com o meio ambiente foram objeto de grande avanço legislativo; todavia, em termos de proteção genérica e não de meio ambiente urbano. Assim, a Lei 6.938, de 30 de agosto de 1981, disciplinou a Política Nacional do Meio Ambiente, introduzindo conceitos modernos como a responsabilidade civil objetiva pelo dano ambiental, a obrigatoriedade da educação ambiental e o Sistema Nacional do Meio Ambiente – Sisnama, destinado a uniformizar a ação de órgãos ambientais pertencentes às diferentes esferas de poder. Posteriormente, a Lei 7.437, de 20 de dezembro de 1985, introduziu a ação civil pública para disciplinar os conflitos ambientais de interesses coletivos e difusos, dando legitimidade ativa às associações cujos estatutos tenham esta finalidade. Ainda naquela década, a

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Constituição de 1988 dedicou ao assunto diversos artigos de natureza protetora, em especial o 225, que se divide em parágrafos e incisos.

Nos anos que se sucederam o tema meio ambiente cresceu em relevância e, além de novos textos legislativos (v.g., a Lei 9.605, de 12.02.1998, que trata dos crimes ambientais), os tribunais assumiram um papel fundamental ao decidirem milhares de ações ambientais que lhes eram distribuídas. Apenas à guisa de exemplo, cita-se a decisão pioneira do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que no ano de 2003 julgou apelação criminal na qual confirmou a condenação de uma pessoa jurídica7. A tese da responsabilidade penal da pessoa jurídica, ao início polêmica, posteriormente pacificou-se através de decisões de outros tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal8.

Nos anos subsequentes o que se viu foi que, no Brasil e no mundo, em especial na América Latina, o direito ambiental adquiriu importância cada vez maior e em grande parte dos países deixou de ser uma atribuição apenas dos órgãos da administração ambiental para ser uma questão submetida constantemente ao exame do Poder Judiciário.

Além disso, o tema passou a ser examinado cada vez mais sob a ótica dos reflexos sociais e econômicos. Tal preocupação levou alguns países a criarem tribunais especializados com foco nestes aspectos. Por exemplo, na Bolívia foi criado o Tribunal Agroambiental, que, nas palavras de Liana Amim Lima da Silva, tem como função especializada as matérias agrária, pecuária, florestal, ambiental, águas e biodiversidade, que não seja de competência das autoridades administrativas. Se rege pelos princípios de função social, integralidade, imediação, sustentabilidade, interculturalidade, precaução, responsabilidade ambiental, equidade e justiça social, imprescritibilidade e defesa dos direitos da Madre Tierra e se exerce através do TAA como máximo tribunal com jurisdição nacional e pelos juizados agroambientais iguais em hieraquia.9No Brasil, além de quatorze varas ambientais de primeira instância e duas câmaras especializadas em matéria ambiental no Tribunal de Justiça de São Paulo e uma semiespecializada no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, há que se registrar o protagonismo do Superior Tribunal de Justiça, que por suas turmas de direito público vem fixando precedentes de grande mérito na área, com influência nos julgamentos de todo o país.

Como se vê, a complexidade dos problemas atuais relacionados com a proteção do meio ambiente tornaram-se objeto de iniciativas na área da ad-

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ministração da Justiça e de maior protagonismo dos tribunais. Por tal motivo, a decisão judicial nas ações ambientais deixa de ser somente jurídica para tornar-se também política, pois, como observa José Luis Serrano, “los problemas del ambiente y su tutela inciden cada vez más sobre el consenso social”10.

2. A complexa situação da pobreza e da proteção do meio ambiente urbano

A existência de crescente número de pobres nas grandes cidades e, por vezes, também nas de porte médio convive com uma nova consciência ambiental e tentativas da sociedade de proteger o meio ambiente. Como bem observa José Roberto Marques, “são matérias que devem necessariamente ser abordadas concomitantemente, a pobreza e o meio ambiente urbano. Uma influencia a outra. A economia situa-se entre esses dois campos, podendo contribuir para o aumento da pobreza e para a degradação ambiental. Ou, em sentido contrário, para a superação dessas duas situações, revelando sustentabilidade.”11Com objetividade, Édis Milaré traça as linhas a serem seguidas na busca do ideal urbano:

O ideal-ideal de uma cidade na dimensão das aspirações humanas é a utopia das utopias, para lembrar o ideal de cidade acalentado por Tomás Morus. A esmagadora maioria das concentrações urbanas arrasta-se com problemas insolúveis. O que se tenta é minorá-los ou contorná-los. Para isso é indispensável aperfeiçoar o ordenamento jurídico das cidades, tanto para sanar o que é sanável, quanto para prevenir o que é insanável. Na contrapartida, impõe-se a conscientização e a participação das comunidades urbanas na busca da melhor qualidade de vida urbana possível.12Para Túlio Chiarini, “a degradação ambiental pode infligir sérios danos aos pobres já que suas vidas dependem do uso de recursos naturais e suas condições de vida oferecem pouca proteção contra poluição do ar, água e solo”13.

Muito embora seja difícil a definição de responsabilidades por classe social, o fato é que o primeiro passo para evitar-se a poluição em áreas urbanas é a ordenação do território por um adequado plano diretor, como prevê a Constituição Federal no art. 182, § 1º. Com razão observa Victor Carvalho

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Pinto que “o ordenamento territorial é tão ou mais importante que os estudos de impacto ambiental. Enquanto os EIAs analisam os custos ambientais de projetos isolados e cuja localização já está determinada, o plano territorial indica a melhor localização para cada tipo de atividade.”14No entanto, há casos em que se chega a extremos, ou seja, casos de grandes levas populacionais migratórias e consequente descontrole da situação, inclusive através da prática de invasão de áreas de proteção ambiental. As maiores migrações internas podem ser fruto da mecanização da agricultura, das condições climáticas, em especial a seca, e da construção de grandes empreendimentos que acabam atraindo trabalhadores que, com suas famílias, ocupam áreas menos valorizadas e próximas do local de trabalho.

Em tais situações os municípios...

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