As condutas criminosas da indústria do amianto

AutorBarry I. Castleman
Páginas21-39

Page 21

*

Barry I. Castleman **

A graduação maior ou menor dos pecadores em razão da maldade de seu caráter indica sempre que o pior homem é o mais perigoso. Isto seria verdade se os homens fossem igualados no que diz respeito às oportunidades para praticar o mal... Mas o fato é que o infrator padrão se encontra confinado às camadas subterrâneas da sociedade... Ele pode assaltar ou molestar, de fato, mas ele não pode trair. Ninguém depende dele para nada, de modo que ele não pode praticar a quebra de confiança, este pecado típico de nossos dias. Ele não conserva em suas mãos a segurança e o bem-estar do público. Ele é o cimento frio e não o carvão flamejante; o verme e não a ave de rapina. Atualmente o vilão a ser combatido é um personagem respeitável, exemplar, confiável que se coloca estrategicamente no foco de uma teia de relações fiduciárias, que lhe permite pilhar milhões de bolsos, envenenar milhares de indivíduos, corromper milhares de mentes ou colocar em perigo milhares de vidas a partir de seu escritório.

Edward Ross, Sin and Society, 1907, p. 29-30.

Introdução

O primeiro estudo epidemiológico a respeito da asbestose na indústria foi publicado no início da década de 1930 pelo Dr. E.R.A Merewether. Ele descobriu que a maior parcela dos trabalhadores empregados na manufatura de produtos à base de amianto poderia vir a desenvolver aquela doença potencialmente fatal caracterizada pelo enrijecimento dos pulmões e alertou sobre os perigos a que estavam submetidos os trabalhadores dos estaleiros a manusearem material de isolamento à base de amianto. O Dr. Merewether — que estava pessoalmente envolvido na elaboração da primeira legislação britânica a respeito do uso industrial do amianto — relatou, à ocasião, que a faixa etária média em que se encontravam os trabalhadores a terem a asbestose como causa do óbito gravitava em torno dos quarenta e um

Page 22

anos.1 Ele concluiu em seu relatório que os perigos advindos do amianto seriam tão severos que a utilização industrial deste último deveria ser banida:

Se a menor exposição à poeira resulta, em última análise, na morte, então o escopo das medidas preventivas que se fazem necessárias pode ser resumido em uma única palavra: proibição. Isso ocorre porque, em termos práticos, é impossível prevenir tal exposição.2

Os primeiros relatos científicos de câncer dentre os trabalhadores expostos ao amianto foram publicados nos anos subsequentes ao relatório elaborado por Merewethwer em 1933, a apontar para o banimento como a solução adequada para lidar com o caráter mortífero daquele mineral. Nesse sentido, o caráter carcinogênico do amianto foi oficialmente reconhecido pelas autoridades previdenciárias alemãs por volta de 1939 e até mesmo pela literatura popular daquele país até meados da década de 1940. Os alemães atestaram que mesmo os casos menos graves de asbestose poderiam evoluir, no futuro, para neoplasias pulmonares letais.3 Nos regulamentos teutônicos destinados à fixação das indenizações por doenças ocupacionais a reparação por asbestose somente era devida quando a moléstia se apresentava em grau severo, ao passo que o câncer de pulmão acompanhado de asbestose seria passível de compensação em qualquer grau.4

A convicção exposta por Merewether acerca da necessidade em torno da proibição do amianto era reforçada pelo conhecimento em torno do caráter cancerígeno do amianto.

Na região de East London, onde a empresa Cape Asbestos possuía uma fábrica, o funcionário do Escritório de Saúde Pública do distrito de Barking, C. Leonard Williams, notou e registrou o aumento incessante das taxas de morte ocorridas a partir da década de 1920. Por volta de 1945, ele concluiu que as medidas preventivas até então empregadas eram inadequadas e que o amianto deveria ser banido em todas aquelas situações nas quais seu emprego não fosse essencial, se é que tal imprescindibilidade pudesse ser cogitada efetivamente:

Eu mantenho minha firme opinião no sentido de que o amianto é uma matéria-prima perigosa e mortal e que — salvo se aqueles que detêm a responsabilidade de assegurar a saúde e a segurança das pessoas nas indústrias puderem oferecer garantias concretas de que eles conseguiram remover todo o perigo em potencial — o processamento do amianto, exceto naqueles produtos estritamente essenciais para nossa economia nacional, deveria ser impedido.5

Durante as décadas de 1930 e 1940 dez companhias dedicadas à manufatura do amianto contrataram cientistas do Laboratório Saranac, de Nova York, a fim de que estes conduzissem estudos experimentais a envolverem a inalação de fibras de amianto por animais, sob a condição de que aquelas companhias teriam total controle editorial sobre qualquer publicação referente à pesquisa. As empresas em referência foram avisadas, em 1943, sobre um experimento que obteve evidências “sugestivas” acerca da relação entre o amianto e o câncer de pulmão manifestado em ratos. O diretor do laboratório avisou às companhias que, à luz dos relatos de casos em humanos já publicados à ocasião, “a questão em torno da suscetibilidade ao câncer pareceria mais significativa do que previamente imaginado”. Os altos executivos daquelas dez empresas se reuniram, então, nas dependências da indústria líder do setor — Johns-Manville — em 1948, para deliberar acerca da redação de um comunicado a respeito dos estudos que mencionarem a relação entre amianto e câncer. Decidiu-se, à unanimidade, pela remoção de toda e qualquer referência ao câncer e aos tumores e isto foi feito no informe levado ao conhecimento do público.

Nessa mesma ocasião, o governo dos Estados Unidos investigava algumas das firmas envolvidas no encobrimento do estudo desenvolvido pelo Laboratório Saranac por crimes contra a livre concorrência. Praticamente todas as empresas norte-americanas do setor de freios automobilísticos foram incriminadas por formação de cartel destinado à fixação de preços. As companhias em referência não contestaram as acusações e pagaram multas superiores a quinze mil dólares cada uma, no ano de 1948. Era plenamente possível imaginar que as empresas do ramo que não haviam patrocinado os estudos levados a cabo pelo Laboratório Saranac teriam sido advertidas sobre seus resultados por re-

Page 23

presentantes das demais companhias. Ao fim e ao cabo, a desenvoltura das empresas que estavam conspirando para controlar os preços de seus produtos e para monopolizar o mercado conduziu-as a conspirar, igualmente, para suprimir o conhecimento a respeito do caráter mortífero de suas fábricas e de seus produtos.6

Tal quadro era observado com ansiedade pelo chefe do setor de câncer ambiental do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, Dr. Wilheim C. Hueper. O referido médico havia figurado como autor de vários escritos científicos sobre substâncias causadoras de tumores ocupacionais e ambientais, aí incluído o amianto. Ele advertiu sucessivas vezes às indústrias para implementarem salvaguardas especiais para o uso de tais substâncias. Em uma monografia de 1949 publicada pelo governo norte-americano, Hueper asseverou que:

Os códigos criminais devem ter consciência do fato de que a exposição ocupacional intencional e indevida dos trabalhadores a um agente carcinogênico com vistas à obtenção de proveito próprio equivale, para todos os fins práticos, a um ataque com armas mortais providas de mecanismos de ação retardada.7

Nessa mesma monografia, Hueper constatou que o amianto era carcinogênico e alertou que com o crescimento da indústria nos países em desenvolvimento, “os resultados negativos em termos carcinogênicos que resultaram do rápido desenvolvimento da indústria química em larga escala durante e após a Primeira Guerra Mundial poderiam se repetir.” Hueper mencionou na revista Newsweek em 1950 que a poluição atmosférica ocasionada pelo amianto era um fator responsável pelo aumento das taxas de câncer de pulmão.8

A letalidade inerente ao amianto veio novamente à tona quando epidemiologistas demonstraram, na metade da década de 1960, que o simples fato de residir na casa de um trabalhador exposto àquele material ou de viver nas cercanias de uma fábrica a utilizar o amianto como matéria-prima poderia conduzir ao falecimento por mesotelioma de pleura ou de peritônio.9 Uma vez que os relatos médicos eram desconhecidos por parte dos trabalhadores, o uso industrial do amianto continuava a crescer. O escândalo acerca do uso imprudente do amianto passou a receber atenção por parte da opinião pública no final daquela década com a controvérsia acerca do jateamento de amianto para fins de isolamento das vigas mestras de arranha-céus que, tal como o World Trade Center, estavam sendo construídos naquela quadra por todo o território norte-americano. Apenas alguns anos após a criação de novos organismos governamentais dedicados à proteção dos trabalhadores e do meio ambiente o uso do amianto nos Estados Unidos começou finalmente a decair, por volta de 1973. Com preocupações similares a crescerem na Europa, a utilização mundial do amianto atingiu seu pico de cinco milhões de toneladas em 1975 antes de entrar em declínio.

O indiciamento das grandes companhias amiantíferas por crimes corporativos ambientais Casos exemplificativos
2. 1 WR Grace & Company

A gigante do ramo químico WR Grace & Co. declarou-se culpada na década de 1990 pela conduta de ter mentido deliberadamente à Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA) sobre a contaminação da água potável em razão dos resíduos de solventes produzidos por sua planta no Estado de Massachusetts. Os casos de leucemia...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT