As convenções processuais e a vulnerabilidade no processo do trabalho: uma questão de princípio e de diálogo das fontes

AutorLorena de Mello Rezende Colnago/Ben-Hur Silveira Claus
Páginas115-128

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I Introdução: uma breve reflexão sobre o momento atual brasileiro na lógica do direito processual

O Brasil vive um momento ímpar, de grande transição e amadurecimento dos instrumentos legais colocados à disposição da sociedade para o exercício do pleno direito de ação, calcado nas garantias constitucionais do devido processo legal e do acesso à justiça.

A revisão dos standarts que pautaram as tradicionais “ondas” do neoconstitucionalismo processual2 busca uma maior interlocução entre os atores processuais e a observância da nova ordem social vigente, em todos os seus avanços e revezes. O Código Processual vigente é clara expressão de tal tendência, ao trazer à baila diversos dispositivos normativos que deslocam o núcleo essencial do processo para os destinatários da prestação jurisdicional.

Nesse contexto, a previsão expressa da possibili-dade da convenção processual, como meio de condução e imputação de resultado mais satisfatório (e, portanto, mais eficaz) ao processo pelas partes vem justamente a sinalizar a relevância do momento jurídico que se apresenta. Rediscutem-se, com isso, os limites da atuação das partes, do Juiz, e do próprio Estado dentro de tal movimento, dissociando-se o último da figura do Magistrado e da tradicional acepção do Estado – Juiz3.

Não há que se olvidar, contudo, que o poder de condução do processo atribuído ao Juiz sempre foi, ao mesmo tempo, uma garantia da proteção do princípio da isonomia no processo, e um indício de grande intervenção do Estado nas relações sociais. Traços da trajetória histórica e política de diversos países indicam uma mesma evolução processual com tal viés, como sói observar, por exemplo, nos países da América Latina, nos quais as similitudes culturais, identidade histórica e exploração análoga sob as mesmas origens colonizadoras acabaram por originar sistemas processuais de intensa intervenção e protecionismo como meio de minorar suas intensas desigualdades4.

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Não há como se ignorar a importância do incremento do poder do Juiz no guarnecimento da função social do processo e da denominada “paridade de armas”5, como corolário da igualdade material aplicada ao direito processual, e identificada com o princípio do contraditório, também enaltecido pela Lei
n. 13.105/20156.

Tais princípios, contudo, não podem ser vistos de maneira isolada, ou mesmo somente sob a ótica de um caráter instrumental do processo. A importância da realocação da relação processual para o âmbito social se mostra cada vez mais premente, e espelhada em diversos dispositivos do Código em vigor. A interdependência entre os ditos comandos principiológicos, bem como sua correlação direta com o aspecto social do processo ficam evidentes já a partir da sistemática da Parte Geral do Código de Processo Civil, elevando a status de garantias processuais fundamentais, de observância obrigatória e conjunta, as normas previstas nos sequenciais arts. , , e 10º do CPC7.

Como consequência dessa visão contemporânea do processo, exsurge o papel participativo e colaborativo de todos os agentes que dele fazem parte. As normas processuais buscam, sob tal prisma, propiciar “condições para que o indivíduo possa participar de um discurso de fundamentação racional acerca de direitos legais, para que estes possam ser legítimos”8. É a chamada conduta “contra-fática”, consubstanciada em teoria normativa da comparticipação baseada na cooperação dos agentes sociais, dentro do processo judicial democrático9.

Nesse diapasão, a teoria das convenções processuais chega para fomentar a discussão acerca da simbiose já descrita alhures, e do redimensionamento do

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papel dos sujeitos do processo. Tal discussão se mostra tão e mais acurada quando se discute a aplicação de tais convenções no âmbito das relações que envolvem algum tipo de vulnerabilidade.

No direito processual do trabalho, no qual a tensão entre os sujeitos que compõem a relação material que o origina lhe é intrínseca, fica mais visível a inter-dependência conflitiva entre os direitos fundamentais que a informam e a ordem econômica10. Na medida em que se auto complementam, os diferentes caracteres do sistema econômico e social pressupõem a observância de medidas que impõem ao Estado um papel ativo.

Como identificar, destarte, o instituto da convenção processual dentro das mudanças intensas que permeiam o sistema processual vigente? Como coadunar os princípios informadores do processo contemporâneo com a aplicação e o reconhecimento da convenção processual, principalmente quando em jogo a vulnerabilidade de algum dos sujeitos processuais? E, por fim, como mensurar tal ponderação dentro da lógica do processo do trabalho em seu viés finalístico? Essas e outras relevantes perguntas que o tema impõe serão objeto do estudo transcrito nas linhas que se seguem.

II A convenção processual: um elemento inovador na nova “onda” das garantias processuais

Dentro das maiores inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 pode-se destacar um instituto que há muito já era discutido pela doutrina11 e abarcado em leis ordinárias12. Trata-se do negócio jurídico processual, conceito que permite às partes a disposição sobre normas processuais abstratas, mais precisamente sob a especificidade da convenção processual, ora objeto do presente estudo.

Positivadas por diversos artigos do diploma processualista civil em vigor (com destaque aos arts. 19013, 191 e 357 do CPC), as convenções processuais trazem à tona o reflexo de uma sociedade que já vinha demonstrando que a jurisdição, embora seja a fórmula primeira para a composição dos litígios, por vezes não se mostra capaz de dar solução adequada a certos tipos de conflito14.

Por certo que a tendência atual do caráter mini-malista do processo adveio como resposta a uma série de indagações-problema que vem sendo colocadas pela comunidade jurídica, sem uma resolução satisfatória. Segue a partir da lógica da máxima utilidade possível com o mínimo de utilização do aparato Estatal necessário, como tendência mundial15, e seguindo princípios afetos a outros ramos do direito, como por exemplo no direito penal, o princípio da proteção de bens jurídicos relevantes, o princípio da insignificância, o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade e adequação16, tudo voltado a se assumir a danosidade social17 de determinada conduta como centro e mote do que a o conflito levado ao jugo do Poder Judiciário visa a coibir.

Não há dúvidas de que o intenso aumento da taxa de litigiosidade (bem como da taxa de recorribilidade), acompanhado de uma cultura de non-compliance e de demanda ao Poder Judiciário como primeira saída (nem sempre célere e eficaz) para controvérsias cujo interesse de agir em sua acepção da necessidade é miti-

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gado18 indicam um descompasso entre o que se espera do processo e aquilo que seria seu escopo real.

Quanto ao primeiro fator citado, conclui-se que o aumento vertente da taxa de litigiosidade no Brasil bem reflete a disparidade entre as expectativas sociais do justo e da eficiência/celeridade da atividade judicante e as condutas coletivas que não representam a observância dos standarts regratórios mínimos19. A atividade jurisdicional também deve atentar para a garantia de que sua estrutura possa comportar o número de demandas e recursos submetidos ao seu crivo, para o que a repercussão das decisões proferidas e consequente formação da jurisprudência dominante têm como grande responsabilidade.

O aumento da taxa de recorribilidade, por sua vez, não representa somente um descompasso entre os anseios da sociedade e o conteúdo das decisões proferidas, mas também acabam por gerar a ineficácia da prestação jurisdicional, que se afasta da sua justiça tão e quanto mais se delonga o processo em sua decisão final.

Com efeito, o tradicional sistema processual, sob o viés das quatro “ondas” referentes à democratização do processo, coletivização das tutelas, ampliação do acesso justiça20 e busca da efetividade do processo21, como vetores do devido processo legal, não consegue dar vazão a todos os avanços e alterações sociais que se apresentam em acompanhamento à velocidade, volatilidade e complexidade das novas relações levadas ao jugo do poder Judiciário22.

A decorrente preocupação com a efetividade dos direitos representou, ao mesmo tempo, a ruptura de uma visão restrita ou individualista do processo, o que denominamos coletivização ou socialização da estrutura processual. A preocupação com a positivação das garantias processuais passou a disputar lugar, em igualdade de condições, com a busca da efetiva aplicação de tais garantias e a sua repercussão social. A flexibilização de procedimentos, a preocupação com a estrutura adequada dos órgãos julgadores e a criação de meios alternativos de resolução de conflitos são claras demonstrações e consequência de tal momento doutrinário.

O devido processo legal deixa de representar um direito genérico ao processo, assentado em direitos estanques, e consiste em assegurar, a partir de conceitos de equanimidade e de justiça, não apenas a suficiência quantitativa mínima dos ‘meios processuais’, mas também um ‘resultado’ qualitativamente diferenciado, assumindo um conteúdo modal qualificado (‘direito ao processo justo’), a par de sua visão puramente formal ou abstrata (‘processo’ tout court)23.

A nova conceituação dos sujeitos do processo24 e a forma como se...

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