As cores das/os cortes: uma leitura do RE 494601 a partir do racismo religioso/The colour of c(o)u(r)ts: an interpretation of the Extraordinary Appeal (RE) 494601 from the perspective of religious racism.

AutorHoshino, Thiago de Azevedo Pinheiro

As cores das/os cortes: uma leitura do RE 494601 a partir do racismo religioso

Nao matamos o animal, damos a ele um novo nascimento. (Stella de Azevedo Santos, Mae Stella de Oxossi, 2012) Nenhum conjunto de instituicoes juridicas ou normas existe em separado das narracoes que o situam e lhe proporcionam significado. Para cada constituicao existe um epico, todo decalogo possui uma escritura. (Robert Cover, (1983) 2018) A cor das Cortes (1): normatividade, branquitude e racializacao (2)

A representacao do poder judiciario ou da justica e normalmente feita por uma mulher, branca, segurando uma balanca em uma das maos e na outra uma espada. Em algumas representacoes ela esta vendada, em outras nao. Quase todas as cortes de justica convivem--em quadros, estatuas, mosaicos e tapecarias--com essa representacao (Cf. Resnik; Curtis, 2011). Nada mais ambiguo do que essa imagem, em que tudo leva a crer que a justica e os seus espacos ou, dito de outra maneira, as Cortes de justica, sao aquelas em que nao se ve e por isso mesmo se garante imparcialidade. Mas essa venda sobre os olhos da mulher e moderna. A imagem dos antigos era de uma mulher que via e por que via empunhava a espada e a balanca para dizer da justica (divina) e do direito. Pois bem, esse artigo nao e sobre a representacao da justica e esse incipit e apenas uma chamada de atencao para o fato de que, nao de hoje, genero, raca, e a capacidade ou nao de enxerga-los (sua gender e colourblindness) participam de modo definidor das imagens e dos imaginarios da justica e suas Cortes, ora de olhos bem abertos--por vezes mesmo panopticos, como nos alerta Stolleis (2014)--ora de olhos vendados. Uma mitologia de raizes greco-romanas que, desde entao, nos impoe seu nomos, sua tabulacao, sua cor e que, no Brasil, costuma vir associada aos simbolos cristaos em reparticoes publicas e plenarios de tribunais, impondo tambem sua religiosidade e cosmologias particulares. (3) Essas categorias sao centrais no presente trabalho que aborda o abate ritual de animais e o conceito de "racismo religioso" a partir dos debates suscitados pelo julgamento do Recurso Extraordinario 494601/RS no Supremo Tribunal Federal. Tomando como contra-narrativa a justica de Xango--icone cosmopolitico do povo ioruba, em sua terra natal e na diaspora--a imagem de oju oba, os olhos do rei (4), comparece para propiciar outras leituras do caso, leituras quica menos sacrificiais da diferenca.

Pois bem, eis a pergunta que nos co-move, que e motor e motivo de nossa pesquisa: qual a cor das Cortes? Em 2018, o percentual de magistradas(os) negras(os) nao ultrapassou a media de 19% nas Justicas Estadual, Federal e do Trabalho (Brasil/CNJ, 2018: 12). Quase no mesmo periodo, por sua vez, a populacao carceraria brasileira contava com 64% de pessoas autodeclaradas pretas e pardas (5). Os numeros confirmam nao so o que a experiencia insinua, mas o que os movimentos sociais (6) e pesquisadoras(es) (7) denunciam: com a desigualdade de condicoes e oportunidades parelham o genocidio da populacao negra e sua criminalizacao/encarceramento, duas facetas do mesmo racismo estrutural.

Resta 'clara' a cor do sistema de justica. Desta quase clarividente clareza dependem os recortes, categorias e enquadramentos por ele manejados no exercicio da funcao jurisdicional, isto e, aquilo que as Cortes enunciam quando calam. (8) Uma das coisas sobre a qual silenciam e precisamente sua propria branquitude, silencio esse que a torna tao mais eficaz quanto menos tematizada. Afinal, e generalizando o ponto de vista do privilegio estrutural que a normatividade branca funciona como dispositivo de padronizacao do "humano"--leia-se, da naturalizacao do homem/mulher branco/a (9) como o universal:

A normatividade branca opera nao para posicionar as pessoas brancas como as melhores--o ideal--mas como as mais humanas. Ela ameaca o tecido de uma sociedade multicultural nao exatamente por alardear a superioridade branca, mas por utilizar diferencas reais ou imaginadas entre brancos e outros grupos para minar a humanidade destes. (...) A branquitude serve a uma funcao normativa ao definir o leque de atributos e comportamentos humanos esperados ou "neutros". Outras categorias raciais emergem como desvios dessa norma, o que as coloca fora da protecao da lei e da sociedade civil. A funcao normativa da branquitude tem implicacoes importanes, porem subteorizadas, para o tratamento da branquitude enquanto categoria juridica. (Morris, 2016: 950-952, traducao dos autores) Articular branquidade/branquitude (Frankenberg, 2004) com/como normatividade (social e juridica) e pensar "raca" nao como substancia mas como efeito de processos de racializacao em que a diferenca e construida como desvio do referente "normal" entronizado--normal porque branco e branco porque normal, tautologicamente.

O conceito de racismo estrutural (De Almeida, 2018), do qual o racismo institucional e uma faceta, poe em evidencia os padroes esteticos (no plano da corporalidade) e eticos (no plano da aceitabilidade) assumidos como neutros pelos orgaos do Estado. Aplicados aos casos concretos, esses pressupostos reforcam a branquitude, sem necessariamente proferir juizos racialmente explicitos:

A normatividade branca funciona, em grande parte, estabelecendo a perspectiva a partir da qual a aceitabilidade e julgada. Se julgarmos nossas instituicoes da perspectiva dos grupos minoritarios, ao contrario, poderemos concluir que elas sao fundamentalmente ilegitimas. (...) Legisladores que propoem um diploma normativamente branco por exemplo, provavelmente o conceberao, ou ao menos o descreverao, em termos racionalmente neutros. Nao obstante, a legislacao discriminara minorias raciais se tao somente experiencias e comportamentos brancos informarem os pressupostos de seus autores sobre o que e comportamento "tipicamente" ou "ordinariamente" americano. Em vez de proclamar juizos raciais, a normatividade branca se esconde por detras de uma tela de objetividade e colorblindness. Frequentemente os participantes num sistema de normatividade branca negam que a raca tenha qualquer papel em suas acoes e decisoes. (Morris, 2016: 955-956, traducao dos autores) A problematizacao seletiva dos ritos sacrificais--que teve no batuque e nas demais tradicoes da diaspora negra seus alvos preferenciais--participa dessa especie de discriminacao racial velada. Velada porque, embora nenhum dispositivo legal ou ato juridico faca mencao direta ao espectro racial da questao, sao as praticas de matriz africana--mesmo quando realizadas por pessoas nao-negras--aquelas objeto de criminalizacao. E dizer: o que se racializa e se repudia no abate religioso de animais e, antes de mais nada, a sua africanidade, a sua negritude de origem, assim como nas oferendas em espacos publicos, amiude consideradas como "poluicao ambiental", e nas cerimonias e toques com atabaques, acusadas de "poluicao sonora". (10) Assim, defendemos que as acoes e decisoes institucionais que levaram, inicialmente, a proibicao legislativa dessas praticas tradicionais no Rio Grande do Sul (com posterior excepcionalizacao da regra para as religioes afro-brasileiras) e, em seguida, a judicializacao desta excecao pelo Ministerio Publico (chegando ao Supremo Tribunal Federal via Recurso Extraordinario 494601 (11)) podem ser lidas como performances e enforcement da branquitude. O racismo e, destarte, a chave de interpretacao da questao.

Nosso ponto de vista fica mais perceptivel quando, por detras do argumento autoproclamado "racialmente neutro" da defesa dos animais (que motiva o projeto de lei do Codigo de Protecao aos animais) ou da tese dita "juridicamente imparcial" da inconstitucionalidade da protecao especial aos(as) afro-religiosos(as) se vislumbram compromissos ontologicos (pressupostos compartilhados sobre o que realmente existe) e axiologicos (pressupostos compartilhados sobre o que realmente merece existir) marcadamente "brancos". Ou seja, nosso ponto de vista fica mais perceptivel quando, por detras da venda da mulher branca com uma balanca na mao e na outra a espada, estao olhos bem abertos a capturar as cores do mundo. Por "brancos" quer-se enfatizar que tais compromissos legitimam determinados modos de existencia (nomeadamente aqueles que se aproximam de uma matriz eurocentrica) e deslegitimam outros (aqueles que se reivindicam como de matriz africana) fazendo emprego de cortes entre "humano" e "desumano" (frequentemente entendido tanto como "primitivo" quanto como "cruel") na relacao entre "humanos" e "nao-humanos" (sejam eles, no caso, os animais sacralizados, sejam eles as divindades africanas, como os orixas). Sujeitos, crencas e praticas sao, por meio dessa operacao, dispostos e classificados num continuum cromatico (12) que, lembrando premissas evolucionistas do seculo XIX (e, amiude, invocando-as expressamente, ao propor que as religioes de matriz africana deveriam "evoluir" (13)), aloca em cada extremo oposto "natureza" e "cultura, "barbarie" e "civilizacao". Nao por acaso, cultura e civilizacao pertencem, nessas representacoes, ao polo branco-europeu. Assim, pode-se dizer que nao apenas as Cortes tem, fenotipicamente, uma cor, mas que tambem a tem o direito mesmo, se o entendermos, na esteira de Geertz (2013), como um modo especifico de imaginar o mundo.

  1. A cor dos cortes: necropolitica e racismo religioso

    Num imaginario juridico dominado por representacoes de branquitude, o corpo negro e o corpo matavel-aprisionavel nos mesmos contornos em que o corpus negro--as epistemes afrocentradas do candomble, do batuque e das demais tradicoes do complexo rizomatico do "Atlantico Negro" (Cf. GILROY, 2001) sao demonizaveis-descartaveis. Noutras palavras, o epistemicidio do saber negro e dimensao simbolica, conexa ao genocidio da populacao negra, num projeto colonial de exterminio-subjugacao. E por esse motivo que as nocoes liberais de "(in)tolerancia" e "diversidade" estao longe de dar conta de um conflito que e, em principio, de ordem...

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