AS DIMENSÕES DE GÊNERO NA PRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS

AutorRaquel Baptista Spaziani
Páginas265-284
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GÊNERO | Niterói | v. 21 | n. 1 | p. 265-284 | 2. sem 2020
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AS DIMENSÕES DE GÊNERO NA PRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA
SEXUAL CONTRA CRIANÇAS
Raquel Baptista Spaziani1
Resumo: Este estudo tem como objetivo analisar a violência sexual contra crianças
por meio dos estudos feministas e de gênero, discorrendo sobre as simplificações
das análises individualizantes a respeito do tema. Isso porque considera-se que essa
forma de violência é toda atravessada por questões de gênero, tanto pela construção
de determinados modos de se exercer as masculinidades e as feminilidades como
pelas relações desiguais de poder que esses investimentos sociais acarretam.
Palavras-chave: Violência sexual contra crianças; Gênero; Patologização.
Abstract: This study utilized Feminist and Gender Studies to analyze sexual violence
against children, discussing the simplifications of the individualizing analyses on
the subject. This form of violence is considered to be aected by gender issues
both in developing specific modes to perform varying forms of masculinity and
femininity and in the unequal power relations that these social investments entail.
Keywords: Sexual violence against children; Gender; Pathologization.
Introdução
A violência sexual contra crianças2 pode ser compreendida como toda
situação na qual a vítima é coagida a participar de uma prática sexual, com
contato físico ou não3, sendo tratada como objeto sexual a fim de aten-
der aos desejos do/a agressor/a. Por envolver relações desiguais de poder,
a criança não pode consentir de maneira autônoma com tais situações,
1 Doutora em Educação, Universidade Federal de São Carlos, Brasil. E-mail: raquelspaziani@outlook.com.
Orcid: 0000-0002-5048-0861
2 Utilizo “violência sexual contra crianças” na medida em que o conceito “abuso sexual” pode sugerir uma ate-
nuação na maneira como o tema é retratado, abrindo espaço para a suposição de que o uso do corpo da criança
seja permitido de alguma maneira, contanto que não seja excessivo, abusivo. Já o conceito “violência sexual contra
crianças” enfatiza a violência sempre presente nesses atos sexuais, até mesmo quando não há contato físico.
3 São formas de violência sexual contra crianças os atos: sem contato físico – assédio, verbalização de conte-
údos obscenos, exibicionismo, voyeurismo e exposição à pornografia; assim como os atos com contato físico–
carícias; tentativas de relações sexuais; masturbação; sexo oral; penetração vaginal e anal.
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muitas vezes a criança tem dificuldade em relatar o ocorrido. Desse modo,
não são raros os casos em que a violência é recorrente.
A literatura nos mostra diferentes formas de analisar esse fenômeno.
Há estudos que utilizam a perspectiva de gênero e/ou do adultocentrismo
para a compreensão da violência sexual contra crianças; assim como outros
que não se debruçam nas relações de poder, concentrando-se unicamente
no desenvolvimento cognitivo imaturo da criança, que a impossibilita de
consentir, ou, até mesmo, traçar um perfil do/a autor/a dessa violência.
Em uma pesquisa que analisou a categoria de gênero em dissertações
e teses sobre a violência sexual contra crianças, produzidas entre os anos
1987-2015 (SPAZIANI, 2017), pude perceber que, apesar de diversos
estudos mencionarem que essa violência decorre de um padrão social falo-
crático, machista, patriarcal e/ou heteronormativo, poucos discorreram
sobre o que isso significa para a produção da violência. Não explicitaram
o que entendiam sobre o conceito de gênero, já que este não é autoevi-
dente– pelo contrário, é polissêmico – ou sobre como as relações desiguais
de gênero promovem e legitimam a violência sexual contra crianças.
Entendo que as questões de gênero estão presentes em todos os
aspectos da violência sexual contra crianças. Como na compreensão de
que homens não conseguem conter os seus impulsos sexuais; na erotiza-
ção infantil e na construção do desejo sexual adulto por esses corpos; na
representação das feminilidades como sempre cuidadoras e protetivas.
Manifestam-se também nas situações de violência quando as vítimas são
meninas e estas devem se silenciar, já que meninas devem ser boazinhas;
ou nos casos em que os meninos são vitimizados e esses também devem se
silenciar, mas porque meninos são fortes e corajosos.
Nesse último caso, se a autora da violência for uma mulher, não será
encarado como um problema tão grande, pois o menino estará antecipando
a sua vida sexual e já dá sinais de “macho”; porém se o autor for homem, não
se romperá o segredo, pois o menino será representado como homossexual,
e isso é considerado um demérito em uma sociedade homofóbica. As famí-
lias ensinam as crianças a não conversarem com estranhos, porém não se
aborda que a maior parte dos casos de violência sexual ocorre dentro desse
espaço considerado “sagrado”. Quando a violência é revelada, o olhar se
volta para a mãe, a mulher enciumada que não conseguiu proteger seu/sua
filho/a; bem como quem cometeu a violência é encarado/a como monstro,

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