As Significações do Trabalho em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector

AutorAngela Rubel Maria Fanini - Carla Silveira Lima Prado
CargoProfa. do Programa Intedisciplinar de pós-graduação em Tecnologia da UTFPR. - Graduanda do Curso de Letras da UTFPR e bolsista do CNPq de Iniciação Científica da UTFPR.
Páginas148-166

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O foco deste artigo é o mapeamento e análise da representação literária do universo do trabalho na obra A Hora da Estrela3, de Clarice Lispector, publicada em 1977, objetivando discutir e observar como a atividade laboral é concebida na formalização da vida, do sentido e do destino das personagens.

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Este estudo vinculase à Linha de Pesquisa Tecnologia, Trabalho e Cultura, em um Programa Interdisciplinar, no qual se investiga como o texto literário representa o universo dos trabalhadores. Nos registros escritos, em diferentes épocas, culturas e grupos sociais, o ofício do trabalho tem sido concebido de maneiras distintas e isso contribui para formar, cristalizar e constituir identidades para o trabalho e trabalhador (a) nessas diferentes situações. No caso da Literatura Brasileira, a análise que considera a representação do universo do trabalho no âmbito ficcional é ainda escassa, visto haver poucas investigações com esse foco. A análise dessa representação discursiva é ainda bastante incipiente na área de Letras, justificandose, assim, a pesquisa. O universo do trabalho tem recebido, sobretudo, a partir do século XIX, muitos estudos e interpretações. Karl Marx, Max Weber e Émile Durkeim despontam nesse período como grandes teóricos do trabalho. O texto literário, a partir de uma perspectiva materialista, articulase à realidade e em assim sendo, também contribui para a construção de um certo olhar para a dimensão laboral.É sobre esse olhar, ou olhares, que objetivamos viabilizar esta proposta. O escritor é “homem de seu tempo e país4” e, dependendo de sua visão de mundo, de sua atitude política e de seu comprometimento social, faz migrar para o interior do texto literário o trabalhador e a trabalhadora, narrando suas trajetórias, seus desejos, dramas e destinos. A Sociologia, a Economia, a História e a Filosofia tem se debruçado sobre essa dimensão e assim também ocorre com a Literatura Nacional. Estudála a partir desse foco é uma postura política que visa contribuir para uma discussão menos formalista e menos avessa ao contexto. Assim, pensase chegar a uma interpretação que alie Literatura e História real dos homens e mulheres que trabalham, disponibilizandose uma análise contextualizada em que os docentes e discentes possam reconhecer na Literatura as pontes com a realidade.

Para alguns autores como Karl Marx (1986), Friedrich Engels (1990), Georg Lukács (1980) e Ricardo Antunes (2002, 2005), o ofício do trabalho é uma atividade vital e existencial para a constituição do ser social. Sem o trabalho, a subsistência, o desenvolvimento da sociedade e/ou do próprio homem, não seriam possíveis, ou

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seja, a atividade laboral é formadora; é elemento ontológico. A obra de Marx, majoritariamente, é destinada às interpretações das contradições entre capital e trabalho, destacando neste os reais sujeitos das mudanças políticas e econômicas para a construção de outro desenho social, demonstrando ser o trabalho coletivo (e significativo e não alienado e estranhado) a condição de emancipação dos sujeitos trabalhadores. Engels, parceiro intelectual de Marx, também defende a tese de que o trabalho é a condição básica de toda a vida humana. Para Engels (1990), todo o processo evolutivo humano tanto físico como social deveuse ao trabalho. O homem somente deixa o reino da necessidade e sua condição de animal por intermédio do trabalho que modifica tanto o entorno natural quanto constitui o próprio homem, instituindoo como ser social. Já para Lukács (1980), o trabalho é visto como elemento fundante do ser social e atividade imanente da própria existência humana, sendo elemento impulsionador para a dinâmica da vida em sociedade. O trabalho é a própria “práxis social” que dá sentido à vida em sociedade. A partir do trabalho causalidade e teleologia, subjetividade e liberdade, necessidade e emancipação se articulam, constituindo–se em uma ontologia do ser social. Antunes (2002, 2005), seguindo e atualizando essa linha de pensamento, enfatiza a necessidade de terse uma vida plena de sentido no trabalho. Essa plenitude do universo laboral se espraia para a vida fora do trabalho, imprimindolhe um novo sentido. Pensase em termos de totalidade em que a articulação positiva entre vida e trabalho traz satisfação ao ser humano, minimizando os problemas da falta de interação, como a fragmentação e a alienação. Esses autores advogam a centralidade do trabalho como condição de emancipação do sujeito e como elemento fundante do ser social. A sociabilidade está vinculada diretamente ao universo laboral. Na contemporaneidade, há já muitos autores, dentro do marco marxiano, que destacam a descentralidade do trabalho em virtude das mudanças econômicas, políticas e culturais. Neste estudo, não incorporamos essa discussão visto que a análise em tela nos propõe um embasamento teórico em que se enfatiza a centralidade.

Este estudo, portanto, propõese a perceber como ocorre a representação do trabalho no romance referido. A representação, no entanto, não está sendo vista como documento fiel dos fatores extraliterários, mas resultante da articulação recriadora do real operada a partir do universo literário. Pretendese, então, em A

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Hora da Estrela destacar e interpretar a representação do trabalhador nas diversas esferas funcionais e sociais, ressaltandose a representação do escritor, da datilógrafa, da estenógrafa, do metalúrgico, das balconistas, do empresário, do médico e da cartomante.

Para isso, investigase nesta obra, como o escritor concebeu e formalizou, por intermédio da literatura, parte do contexto sóciolaboral de sua época. Segundo Cândido (1976), crítico literário e sociólogo, o aspecto da realidade que uma obra exprime (ou seja, os fatores extraliterários), não podem ser dissociados das operações formais postas em jogo, isto é, dos aspectos internos que garantem a autonomia da obra literária. É na dialética entre os componentes externos e os internos que se articula o discurso literário:

[...] só a podemos entender (a obra literária) fundindo texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornandose portanto interno. (CANDIDO, 1976, p. 5-6)

Seguindose essa abordagem, pretendese verificar como ocorrem as contradições e interações entre o externo e o interno, constituindose o texto literário não como espelho, mas em diálogo permanente com seu entorno. Também, seguese uma perspectiva materialista da linguagem em que se advoga que o signo lingüístico reflete e refrata5 a realidade. Há uma articulação entre as palavras e as coisas, porém mediada por muitas variáveis, a saber, a visão de mundo do autor e os discursos que constituem a fala do autor que estão conectados tanto a uma temporalidade imediata quanto a outra bem mais extensa que faz parte de um conjunto discursivo historicamente constituído e de longa duração.

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A fábula de A Hora da Estrela, entre outras situações, narra parte da vida de Macabéa, retirante nordestina, na cidade do Rio de Janeiro. Macabéa tipifica o pobre, o solitário e o desprovido de certos atributos da cultura burguesa. Sua existência desliza entre o simplório e o complexo, causando estranhamento. Entre a mesmice de um dia e outro, conhece Olímpico de Jesus, jovem nordestino, pobre, audacioso e operário de uma metalúrgica. Este, porém, muito ambicioso, não vê em Macabéa atrativos físicos e possibilidade de ascensão social. Encontra esses elementos em Glória, colega de trabalho de Macabéa, carioca, oriunda de estratos médios da população, cujo pai era açougueiro, atributos que a tornam distinta na perspectiva de Olímpico. Sentindo constantes dores, Macabéa vai ao médico e descobrese com tuberculose. Glória, compadecida da colega, aconselhaa a ir a uma cartomante. Madame Carlota profetiza felicidade e um grande amor na vida de Macabéa. Essa, ao sair da cartomante, é atropelada por um veículo luxuoso e morre.

Macabéa, oriunda do sertão do Alagoas, perde os pais quando criança, sendo criada pela tia, cursando o primário até o terceiro ano. Sabe cerzir e bater à máquina. No Rio de Janeiro empregase em uma firma de representação de roldanas. Apesar de ganhar menos de um salário mínimo, orgulhavase de sua profissão de datilógrafa. Na época da fábula, década de setenta do século XX, a datilografia era um dos requisitos principais para a inserção no mundo de trabalho em escritórios e os cursos de datilografia eram disputados pelos aspirantes a uma vaga de emprego, dada a importância dessa função.

No entanto, embora o exercício da datilografia implique mecanização, o trabalho de Macabéa não é mecânico, mas suscita, em parte, interferência, bemestar e modificação. Embora a máquina de escrever no ambiente de trabalho imponha seu uso6, Macabéa resiste à padronização da escrita, pois reflete sobre as contradições entre linguagem escrita e falada. Apesar da ausência de educação formal média, Macabéa questiona o sistema ortográfico vigente da Língua Portuguesa. Resiste em escrever duas consoantes juntas, pois se angustia pelo fato de que não há homologia entre fala e escrita. Essa resistência demonstra que a

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personagem tenta exercer forças centrífugas em relação às forças centrípetas dominantes na ortografia escrita padrão culta. A personagem, aparentemente simplória e passiva, mesmo se utilizando de uma máquina de escrever, que exerce um papel de padronização na escrita, emerge como sujeito de volição a partir de seu...

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