As transformações no mundo do trabalho

AutorSandra Regina Pavani Foglia
Ocupação do AutorAdvogada
Páginas51-60

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Analisada a evolução histórica que construiu os direitos fundamentais de maneira global, considerações sobre as transformações no mundo do trabalho, inclusive sobre a regulação do tempo livre como contraposto ao trabalho, são necessárias para caminhar ao encontro da compreensão sobre o surgimento dos direitos sociais, onde se encontra inserido o direito ao lazer.

A palavra trabalho sofreu algumas alterações de significado ao longo da história. Da acepção relacionada a dor e sofrimento tida até o início do século XV, passou a significar esforço do homem para obter um resultado. Também pode-se afirmar que a palavra trabalho demonstra a transição da cultura da caça e da pesca para a agrária, modernamente para a industrial, e, em seguida, para a pós-industrial.120

Alguns autores entendem que a palavra trabalho nasce do latim tripallium, que era um instrumento elaborado com três paus aguçados destinado pelos agricultores a bater o trigo, o linho, ou as espigas de milho.121 Outros afirmam que esse instrumento possuía a finalidade de prender bois ou cavalos difíceis de ferrar.122 mas, a maioria coloca o instrumento tripallium como objeto utilizado em sessões de torturas para empalar escravos rebeldes.123 No entanto, pode-se afirmar que justamente a relação desse instrumento traz a acepção de dor e sofrimento que significou trabalho até o século XV.

No entanto, “as transformações nas relações sociais que historicamente modificaram a forma de conceber o trabalho”124, como se verificará a seguir, alterou o

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conteúdo semântico relacionado à dor e sofrimento para se esforçar, laborar, obrar e trabalhar. Isso porque para algumas pessoas, além de meio de sobrevivência, é também meio de realização pessoal, mecanismo para o relacionamento social e equilíbrio psicológico.

Nesse contexto, emergiu a necessidade de se construir uma legislação trabalhista, regulando, dentre outros aspectos, a jornada de trabalho na sociedade, dado o caráter positivo da nova concepção de trabalho.

2.1. O trabalho da antiguidade grega à modernidade

O final do século VIII e começo do século VII a.C. foi para os gregos um período de transição do regime patriarcal para o oligárquico, bem como da transferência de uma sociedade baseada no coletivo para uma sociedade individualista com base na propriedade privada, ápice da crise agrícola, social e religiosa, quando a posse de terras era a maior fonte de riquezas.125

Em meio a essa transformação social, surge o trabalho como uma necessidade para sobrevivência do cidadão grego, alterando a concepção do homem vigoroso e exímio soldado cantado por Homero na Ilíada e na Odisseia, para o camponês frente as suas limitações, produzindo, na vida dura do campo, como fruto de seu trabalho, o alimento para sua sobrevivência. mas, para Hesíodo, mesmo sendo o trabalho um castigo imposto por zeus aos homens, é uma luta possível e necessária para o empoderamento do novo homem grego, pois o considera a grande arte transformadora da atividade humana, gerando o direito sobre o que dele advém, oportunizando a ascensão do homem ao nível de herói, e meio para a conquista da justiça e dignidade. Esse pensamento de Hesíodo foi imortalizado em poema escrito para seu irmão Perses.126

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Sobre o tema trabalho, os filósofos gregos não se debruçaram muito, haja vista que não era parte de suas maiores preocupações, como a ética e a política, por exemplo. Eram conscientes que seu bem-estar e de sua família primavam sobre atividades de ordem material, mas não acreditavam que esses trabalhos fossem a engrenagem para tanto. mudanças nos costumes ocorreram após a Guerra do Peloponeso, que tomou o período de 432 a 404 a.C., influenciando as obras dos filósofos que tomaram posições de ruptura com a realidade.127

No século V, Heródoto menosprezava o trabalho artesanal, pensamento seguido por Platão. Léopold migeotte trata o assunto em transcrição de palavras de Xenofonte atribuída a Sócrates:

As profissões (technai) chamadas de artesanais (banausikai) são, de fato, criticadas, e é com razão que são totalmente menosprezadas nas polis. De fato, elas arruínam o corpo dos trabalhadores e daqueles que se ocupam com elas, obrigando-os a permanecerem sentados à sombra; às vezes, até mesmo a passar todo o dia junto ao fogo. Como os corpos ficam assim efeminados, as almas também ficam mais fracas. mais do que tudo, essas profissões chamadas banausikai não deixam nenhum lazer (ascholia) para se ocupar dos amigos e da polis. [...] Também descobrimos que as coisas úteis são todas aquelas das quais sabemos servir. Pareceu-nos, pois, impossível aprender todos os saberes (épistèmai) e, após exame, concordamos com as polis em descartar as profissões ditas artesanais, pois parece que elas arruínam os corpos e aniquilam as almas. E dissemos que a prova mais evidente disso talvez fosse esta: se, durante uma invasão inimiga no campo, após termos dividido os lavradores (géôrgoi) e os artesãos (technitai), pedirmos a cada grupo separadamente se convém defender o campo ou abandonar a terra para defender a cidade, pensamos que aqueles que possuem a terra votariam por defendê-la, mas que os artesãos não gostariam de lutar e, como foram educados para isso, permanecer tranquilos sem dificuldade nem perigo.128

Platão e Aristóteles, apesar de reconhecerem que a evolução natural das sociedades exigia trocas e uso de moeda129, criticavam o pequeno comércio a varejo, entendendo ser uma atividade antinatural e artificial, recriminando o espírito do lucro, desejavam reservar essa profissão aos estrangeiros e isolá-los dos cidadãos para afastar as más influências.

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A agricultura era tida como a atividade primeira, proporcionando bens indispensáveis à vida como ditou Hesíodo130 e Xenofonte, em sua obra Econômica, consagrando os capítulos XII a XXI ao assunto. Também Xenofonte não deixou de tecer, em outro texto, comentários em nome do trabalho bem feito, ao tratar sobre a especialização das tarefas artesanais.131

Constatamos em Hesíodo que o trabalho era considerado um castigo imposto pelos deuses ao homem, surgindo a necessidade de produzir os bens indispensáveis à sobrevivência132. Denominados de pénètes eram as pessoas que trabalhavam para viver, eram pessoas do povo, não pobres ou indigentes no sentido moderno das palavras, mas aqueles que formavam a plebe ou a classe trabalhadora.133

Algumas pessoas, no entanto, possuíam bens materiais suficientes isentando-os do trabalho, dispondo de scholè, origem da palavra escola, lazer para os gregos, pois esses poderiam se dedicar a tarefas mais elevadas como o estudo. Esse lazer era considerado o oposto das atividades produtivas, denominadas, às vezes, de ascholiaou ausência de lazer, exatamente como opunham a paz e a guerra. Para Aristóteles

Toda a vida também se divide em ascholia e scholé e em guerra e paz, e, dentre as ações, algumas dizem respeito ao necessário e ao útil, as outras ao belo. Acerca disso, deve-se fazer a mesma escolha para as partes da alma e seus atos: a guerra com vistas à paz, a ascholia com vistas à scholè, o necessário e o útil com vistas ao belo.134

Ainda, segundo o pensamento de Aristóteles, a melhor constituição seria aquela que assegurasse a felicidade aos seus cidadãos, por meio da virtude plena, e, assim, os cidadãos não poderiam dedicar-se às atividades artesanais ou do comércio, tão pouco dedicar-se à agricultura, pois o lazer — scholè — é fundamental para exercer as atividades políticas.135

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As sociedades gregas eram hierarquizadas, fato entrelaçado às circunstâncias do trabalho, assim, compostas de cidadãos que adquiriam esse privilégio por nascimento; e dentre esses cidadãos havia inferiores ou aqueles com limites em seus direitos; e os escravos, privados de liberdade e servidores de toda sorte de mão de obra. Presentes também nessas sociedades outras formas de servidão, como aquelas populações que viviam em estado de submissão em consequência de guerras ou conquistas.

Aos cidadãos que não eram proprietários de latifúndios, e, portanto, camponeses e agricultores, alugavam seus serviços como operários ou exerciam as atividades de artesanato ou comércio. mas, aqueles que tinham o direito de propriedade possuíam oficinas artesanais e lojas que poderiam alugar para terceiros. Aos estrangeiros cabia a exploração do comércio e do artesanato.

Após a Guerra do Peloponeso, muitos cidadãos se dedicaram aos negócios, a exemplo de compra e venda de terras, exploração de minas de chumbo argentífero do Laurion, aluguel de escravos, obtendo fortuna...

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