As Medidas Socioeducativas Diante do Princípio da Proporcionalidade

AutorMárcia Maria de Barros Corrêa
Páginas374-382

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O Estatuto da Criança e do Adolescente
— ECA — corresponde à Lei Federal n. 8.069, promulgada em julho de 1990 que estabelece o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, assim como dispões sobre as medidas protetivas ou socioeducativas, dentre outras providências.

Nos termos do Estatuto, considera se criança a pessoa de até doze anos incompletos, e adolescentes aquele que tem entre doze e dezoito anos. No entanto, excepcionalmente, a espécie normativa em referência é aplicável às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.

A consequência pela prática de ato infracional somente é verificada para os que já têm doze anos completos no momento da conduta descrita em lei.

Assim como o Código Penal traduz a tipicidade quanto às condutas potencialmente lesivas ao Estado Democrático de Direito, o Estatuto da Criança e do Adolescente traz, por equiva- lência aos crimes nele descritos, os atos infracionais, que se adéquam, por resposta, às medidas socioeducativas.

Estas proporcionam, ao contrário da pena, uma preocupação muito maior quanto à recuperação do adolescente, que se encontra em fase de formação em todos os sentidos, sendo, por isso, traduzida em escalas desde a mera repreensão (remição), advertência, até a internação. Esta como ultima ratio.

O Estatuto da Criança e do Adolescente deixou de dar qualquer tratamento punitivo e ressocializatório para a criança que venha a cometer atos infracionais. As crianças, assim consideradas como as que tenham até 12 anos incompletos, não se sujeitam a nenhuma medida socioeducativa. E nem cometem ato infracional.

E quanto ao adolescente infrator, nem sempre a proporcionalidade e a individualização vêm sendo observadas na aplicação plena do Estatuto, quer por deficiência estatal, quer por erros judiciais.

A Fundação CASA, dentre outras destinações legais, no Estado de São Paulo, é responsável por promover a execução das medidas socioeducativas previstas no art. 112 da Lei n. 8.069/90Estatuto da Criança e do Adolescente —, em especial, a medida de internação (art. 112, inciso VI), legal-mente aplicada por Magistrado a adolescentes e Jovens-Adultos infratores.

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O Interno submetido a reeducação mediante a aplicação da medida socioeducativa de Internação, é compreendido como pessoa em formação, sendo-lhe assegurados todos os direitos inerentes à pessoa não atingidos pela restrição.

Em cada uma das Unidades de Internação designadas “UI”, são mantidos funcionários responsáveis pela lida diária com os internos, na atividade de vigilância e contenção, subordinados ao Diretor de cada internato.

Incumbe-lhes, em todas as suas atividades, a reeducação, além do dever de garantir e preservar a integridade e a saúde fisionômica, mental e corporal dos Internos, em obediência ao contido no art. 125 da Lei n. 8.069/90Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ocorre, porém, que ao longo de anos disseminou-se uma desproporcionalidade entre o ato infracional e a medida correspondente, que deveria ser social e educacional. Em tal aspecto, o Estatuto, gradativamente, vem perdendo sua credibilidade, na medida em que afasta-se de sua função original, que é ressocializatória.

Tal cultura consiste em infundir aos internos submetidos a sua guarda, cuidado e vigilância, ausência de temor mediante a imposição de rotineiros atos de mera repreensão como forma de sanção, que na verdade não é, trazendo um descontentamento social e político.

A questão é que um Estatuto que deveria ser considerado exemplar perde sua eficácia diante da deficiência do Estado e da reprovabilidade social.

Daí a necessidade de se estabelecer a devida proporcionalidade, sempre observando a legalidade, aos atos infracionais.

O Brasil é um dos países que ratificou a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 das Nações Unidas. Dentre os diversos princípios constantes daquele documento internacional, encontra-se o da igualdade e o da humanidade.

Em decorrência do princípio da humanidade, estão proscritas todas as sanções cruéis, inclusive as de morte e as de índole perpétua; as infamantes e as degradantes, a tortura e os maus-tratos. De igual forma, surge para o Estado a obrigação de criar infraestrutura para uma adequada execução disso, visando impedir a degradação e a dessocializacão dos infratores.

O princípio da humanidade pretende, tanto na imposição de pena, como das medidas socioeducativas, uma racionalidade e uma proporcionalidade que antes inexistiam; e é fruto do mesmo processo histórico que culminou por edificar o princípio da legalidade. Este, basilar ao direito como um todo, como controlador técnico do próprio princípio da tipicidade.

Vê-se então que tal princípio volta-se também como um princípio garantidor dos direitos fundamentais da pessoa humana, o que o posiciona como membro de um esquadrão de princípios do garantismo, à proteção dos valores consagrados na Constituição como invioláveis, sequer pelo Estado.

No Brasil, o princípio encontra-se expresso na Constituição, conforme se vê nos incisos III (proibição de tortura ou tratamento cruel ou degra-dante), XLVI (individualização da pena), XLVII (proibição de penas cruéis, perpétuas e de morte), todos do art. 5º.

José Henrique Guaracy Rebêlo1 identifica em sua obra estudiosos que reconhecem tal princípio, com destaque a Nilo Batista, Montesquieu, Cesare Beccaria. Igualmente, Luiz Luisi2 explana da mesma maneira o princípio em apreço.

Pela exposição das características do princípio em comento já é possível se perceber que não se confunde com a evidente ineficácia das medidas socioeducativas diante do princípio da proporcionalidade, mesmo que ambos retratem preceitos voltados à proteção e à garantia do indivíduo perante o Estado.

É de conhecimento comum a expressão de que “com Beccaria raiava a aurora do direito penal liberal”. Foi o marquês de Beccaria3 que primeiro

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visualizou a necessidade da distribuição justa, igualitária e proporcional da sanção, não podendo esta ultrapassar a pessoa do indivíduo tido como autor de determinado fato delitivo.

Magalhães Noronha4, embora tenha reconhecido o fenômeno, emprestou lhe denominação diversa, qual seja, princípio da personalidade.

De qualquer modo, seu conteúdo diz respeito ao fato de a sanção não poder sair da esfera de direitos do infrator e atingir quaisquer outras pessoas a ele ligadas, como, por exemplo, seus familiares. Cremos que, nesse ponto, nem mesmo a sociedade, advinda de um pacto social e a quem se propôs ao estado democrático de direito proteger.

Muito embora haja autores que façam distinção, conveniente é emparelhar como sinônimos os princípios da lesividade e da ofensividade.

Segundo Nilo Batista, com base em Del Vecchio, este princípio transporta para o terre-no infracional a questão geral da exterioridade e da bilateralidade do direito: ao contrário da moral, o direito coloca face a face dois sujeitos, pelo menos.

Consubstancia-se no segundo enunciado:

Só se castiga o comportamento que cause lesão a direitos de outras pessoas e que não seja simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral. O Direito só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade e, além desse limite, nem está legitimado e nem é adequado para educação moral dos cidadãos. À conduta puramente interna ou puramente individual, seja ela pecaminosa, imoral, escandalosa ou diferente, falta lesividade que possa legitimar a intervenção do Direito.

Seu objetivo é proibir a criminalização de um proceder que não exceda o âmbito do próprio autor, a criminalização de atos internos, bem como a de meros estados ou condições existenciais, afora as condutas desviadas. Isso deve ser extensivo aos atos infracionais em correspondência às medidas socioeducativas.

No entender de Roxin, a lesividade, como princípio, aproxima-se mais de uma justificativa doutrinária para o princípio da intervenção mínima, porquanto, relacionada com o processo de seleção prévio de condutas.

O legislador não pode prever aprioristicamente todos os casos os quais deve a lei englobar. Na seara infracional, opta-se por abordar todos os casos possíveis, até porque, senão, se sofreria demasiada restrição pelo princípio da reserva legal, o que tornaria inútil todo o processo jurígeno. Na criação da lei, o legislador acolhe todas as hipóteses, pois. Acarreta-se, consequentemente, uma espécie de cega escolha das condutas a serem atingidas, máxime ao passar dos anos, quando uma destas escolhas pode deixar de ser social e axiologicamente relevante, ocasionando, concomitantemente, eventuais situações restritivas injustas.

O princípio da proporcionalidade também funda a ideia de insignificância, tornando inócuas ou desproporcionais as medidas socioeducativas, em descompasso com a ressocialização do adolescente.

Para Zaffaroni, o fundamento do princípio da insignificância está na ideia de proporcionalidade que a...

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