As mulheres catolicas e as origens do Servico Social: o caso do Instituto Social do Rio de Janeiro (1937-1947)/Catholic women and the origins of social work: the case of the Rio de Janeiro's Instituto Social (1937-1947).

AutorMartins, Ana Paula Vosne

Em 1937 foi fundado na cidade do Rio de Janeiro o Instituto de Educação Familiar e Social, segunda escola católica de formação de assistentes sociais e educadoras familiares no Brasil. Há referências sobre as primeiras escolas católicas em publicações de pesquisadoras do Serviço Social, geralmente a respeito da história da organização do ensino e de suas diretrizes doutrinais, teóricas e metodológicas, bem como algumas informações mais pontuais a respeito dos promotores daquelas iniciativas (LIMA, 1983; BACKX, 1993; MESTRINER, 2005; MACHADO, 2015).

Compreende-se que a abordagem destes e de outros trabalhos seja no sentido de explicar o contexto histórico da criação das escolas e da organização do ensino do Serviço Social, razão pela qual não tiveram como objetivo produzir uma análise histórica mais específica que articulasse o nível político-ideológico com as trajetórias e as inter-relações dos diferentes atores envolvidos com as origens do Serviço Social no Brasil. Mesmo um trabalho mais específico e de alta qualidade sobre o Instituto Social, como a dissertação de mestrado de Sheila S. Backx (1993), não se deteve nos atores, mas sim nas orientações doutrinais e teóricas transmitidas pela escola, ao analisar os trabalhos de conclusão de curso entre as décadas de 1940 e 1950.

Este artigo apresenta uma proposta de análise que vai em outra direção. Propõe uma análise histórica das origens do Serviço Social que privilegia duas dimensões pouco ou escassamente presentes não só nos estudos da área, mas igualmente na história das mulheres: a religião e a agência feminina conservadora.

Os estudos sobre a história das mulheres e a religião foram marcados pelo enfoque na suspeição e no controle do corpo feminino e da sexualidade, ou então pela discussão sobre as formas de opressão e subordinação feminina por parte de uma instituição hierárquica e masculina como a Igreja Católica (BROWN,1990; FOUILLOUX, 1995; RANKE-HEINEMANN, 1996). Mais recentemente as abordagens históricas têm privilegiado a agência religiosa feminina, entendida como a capacidade de ação, escolhas, projetos, adequação e margens de criação por parte das mulheres, mesmo em situações de subordinação e de dominação, afinal estas situações nem sempre são restritivas ou impeditivas de protagonismo e de fortalecimento das mulheres em suas comunidades religiosas(SARTI, 1984; FAYET-SCRIBE, 1990; KANE, 1991; GIORGIO, 1994; FOUILLOUX, 1995; COVA, 2000; CLARK, 2004; MAHMOOD, 2005; DELLA SUDDA, 2007; COVA; DUMONS, 2010; DAWES, 2011).

Permanecendo no campo religioso católico, tendo em vista a contribuição historiográfica internacional significativa sobre as mulheres protestantes, nota-se uma constante na historiografia feminista que é o pouco interesse não só pelas mulheres conservadoras, mas por suas alianças devo-cionais e políticas com a Igreja Católica. A análise proposta neste artigo se alinha às reflexões desenvolvidas por pesquisadoras como Della Sudda (2007), para as católicas, e Mahmood (2005), para as muçulmanas, a respeito da agência feminina conservadora ou, mais adequadamente, dos paradoxos do conservadorismo feminino, seja pela militância religiosa e política, seja pela afirmação de um lugar de ação para as mulheres sem subversão das hierarquias e das relações de poder. Procura-se entender as margens de ação de mulheres católicas-laicas e religiosas-, reveladoras de seu alinhamento inconteste com a doutrina e as orientações da Igreja a respeito do papel que os católicos-homens e mulheres-deveriam desempenhar no mundo, no sentido de recuperar seu poder, e a unidade de sua direção espiritual e temporal.

Para tanto o foco da análise se ajusta para a agência feminina num terreno fundamental para o catolicismo desde meados do século XIX, que foi a delimitação da "questão social" e de seus inúmeros "remédios", entre eles a educação e a intervenção social no sentido de correção e de ajuste do que então se denominava "males sociais", advindos das profundas transformações econômicas e sociais do capitalismo industrial e que afetaram de forma mais contundente as famílias das classes trabalhadoras. A partir das diretrizes formuladas pela teoria do catolicismo social ao longo do século XIX e sistematizadas pela encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891, foram organizadas diversas associações e iniciativas de educação e intervenção social, sendo o Serviço Social uma delas, tanto como conhecimento dos problemas sociais, e também como profissão a ser exercida ideal e preferencialmente por mulheres.

A partir da criação de escolas católicas de Serviço Social, como foi o Instituto de Educação Familiar e Social do Rio de Janeiro, a primeira parte do artigo tem como objeto de análise a organização dessas escolas no cenário europeu à luz dos valores e princípios norteadores do catolicismo social, bem como a atuação feminina laica e religiosa. Na segunda parte a análise se direciona para o papel desempenhado pela congregação feminina Sociedade das Filhas do Coração de Maria, tanto na mobilização da militância católica internacional, como também na educação social, com destaque para o protagonismo da primeira Filha do Coração de Maria do Brasil, a liderança feminina da Ação Católica Brasileira, Stella de Faro (1888-1972), não apenas idealizadora, mas também uma das fundadoras e diretora do Instituto Social do Rio de Janeiro, como passou a ser denominado a partir de 1939.

A ação social feminina

Entre 1898 e 1899 o intelectual católico francês Max Turmann (1866-1943) ministrou conferências no Collège Libre des Sciences Sociales, em Paris, onde era professor de Ciências Políticas e Econômicas. Definido por Lanfrey (1987) como um democrata cristão, Turmann representa bem o católico militante que já se apresenta no século XIX como um combatente da causa da Igreja e da fé católica no mundo, desempenhando seu papel intelectual como divulgador da doutrina e principalmente dos princípios norteadores do catolicismo social. Suas publicações demonstram como se tornou um especialista nas questões sociais, abrangendo temas como sindicalismo, direitos dos operários, associativismo agrícola, patronatos para a juventude, educação popular e ação social das mulheres católicas.

Naquelas conferências, que depois foram publicadas em livro (TURMANN, 1900), explicava que o catolicismo social era uma doutrina sustentada no Evangelho para enfrentar os problemas decorrentes das transformações sociais e econômicas do mundo moderno e também uma resposta ao coletivismo revolucionário e à organização dos sindicatos socialistas. O interesse da Igreja pelas múltiplas facetas da questão social demonstrava, segundo Turmann, como esta não se encontrava isolada, muito menos distante da realidade do mundo. Sob a orientação das encíclicas papais e dos bispos, os católicos de diferentes países se empenhavam em conhecer e estudar os problemas sociais mais urgentes, propor soluções e se dedicar à sua execução, tanto por meio de iniciativas mais antigas, como obras de caridade, quanto pela criação de novas instituições que respondessem às urgências do tempo, entre elas a educação de crianças e jovens, o apoio às famílias dos trabalhadores e a orientação cristã na organização sindical dos trabalhadores.

Nesse livro ele traça as origens históricas do catolicismo social, remontando à década 1840 na Alemanha e às décadas de 1860 e 1870 na França. O envolvimento de clérigos e de laicos na defesa dos direitos dos trabalhadores fez parte não só da aproximação dos católicos com o mundo do trabalho, mas igualmente do envolvimento com a política e a proposição de leis protetoras dos trabalhadores. Ao mesmo tempo esse movimento social dos católicos resultou num amplo conjunto de estudos produzidos especialmente por laicos, como o próprio Turmann, sobre os problemas sociais, o que deu origem ao pensamento social católico que, segundo o autor, desaguou na Rerum Novarum.

Inicialmente o movimento foi orientado mais para a organização dos trabalhadores, ou do sindicalismo cristão, em oposição ao sindicalismo socialista, como atestam várias publicações e organizações, entre elas a Ação Popular, na Bélgica e na França, cujas atividades foram iniciadas em 1903 sob a orientação dos jesuítas (DROULERS,1981). O movimento católico estava representado também nos parlamentos da Holanda, Alemanha, Áustria, França, Suíça, Bélgica, além de oradores bem preparados e pessoas envolvidas em obras sociais católicas em vários lugares do mundo. Turmann se refere também à imprensa católica como importante instrumento de divulgação das ideias sobre o movimento social, trazendo uma longa lista de revistas e jornais católicos por país (TURMANN, 1900, p. 19-20).

Mas o catolicismo social são se restringiu à organização dos trabalhadores. Outros dois campos importantes foram a educação popular, com destaque para as crianças e os adolescentes, e a família dos trabalhadores por meio da orientação e da educação das mulheres no seu papel de esposas e mães. Assim, observa-se que a frente da ação social não era homogênea: num sentido mais político a ação social era masculina, praticada por homens de elite para homens das classes populares e para a própria organização dos laicos; mas se esperava que as mulheres católicas também participassem da ação social, que elas irrigassem esse vasto campo com a sua larga experiência nas obras de caridade e com sua notória benevolência celebrizada pelas vidas de santas, mas igualmente pela ação de muitas mulheres de elite que patrocinaram obras voltadas para o atendimento aos pobres, aos doentes e às crianças (MARTINS, 2013).

A participação das mulheres na vida religiosa foi intensa e crescente ao longo de todo o século XIX, sendo um forte apoio ao movimento restaurador da Igreja Católica, tanto pelas práticas devocionais, quanto pela histórica adesão às obras de caridade. No entanto, o clero e os laicos envolvidos com a ação social reconheceram que para além da piedade as mulheres tinham um conhecimento...

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