As normas internacionais de direitos humanos e a Lei da Reforma Trabalhista no Brasil

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas207-218

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1. Introdução

O patamar civilizatório mínimo fixado na ordem jurídica brasileira para a inserção, em adequado nível, da pessoa humana no mundo econômico e social do trabalho é estruturado a partir de três grupos fundamentais de normas jurídicas: as normas constitucionais brasileiras, as normas internacionais vigorantes no âmbito interno do Brasil e as normas federais trabalhistas em vigência no País.

Nesse conjunto essencial, cumprem papel de destaque as normas internacionais de direitos humanos, em seu sentido amplo, que envolvem também os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, inclusive os direitos humanos de natureza trabalhista.

O presente estudo irá examinar o papel dessas normas internacionais de direitos humanos trabalhistas e sua comparação com as modificações implementadas, pela Lei n. 13.467/2017, no corpo da CLT e de outros diplomas conexos, no quadro da recente reforma trabalhista promovida no Brasil.

Este texto examinará, em primeiro lugar, as fontes norma-tivas internacionais sobre direitos humanos e seu status jurídico no território brasileiro.

Nesse quadro, estudará a abrangência dos chamados direitos humanos, considerada a sua compreensão original mais restrita e a sua compreensão contemporânea, que é significativamente mais ampla, abrangendo os direitos humanos econômicos, sociais e culturais, inclusive os de natureza trabalhista.

O texto analisará, a seguir, o patamar em que essas normas internacionais de direitos humanos ingressam na ordem jurídica interna brasileira, evidenciando, por esse foco, a notável relevância que tais normas ostentam na realidade jurídica do País — fato especialmente relevante em um período histórico de tamanhas modificações supressoras ou precarizadoras de direitos laborais vivenciado na realidade jurídica brasileira.

O presente estudo se completa com a análise de alguns aspectos controversos da reforma trabalhista e seu contraponto com as normas internacionais de direitos humanos imperantes na ordem jurídica interna brasileira.

2. As fontes normativas internacionais de direitos humanos e seu status jurídico no Brasil

As fontes normativas sobre direitos humanos no plano internacional apresentam uma abrangência diversificada.

Nessa medida, o conceito de direitos humanos inicialmente se restringiu aos direitos eminentemente civis e, de alguma maneira, englobando também direitos eminentemente políticos. Essa primeira fase do conceito de direitos humanos permaneceu até meados do século XX, basicamente.

A partir do impacto provocado pela Segunda Guerra Mundial, que alargou a influência da concepção social de constitucionalismo, que fora inaugurada no período histórico imediatamente precedente, em torno da Primeira Guerra Mundial e de seus importantes efeitos culturais e jurídicos (criação da Organização Internacional do Trabalho; criação de constituições de caráter social, tais como a Constituição do México, de 1917, e a Constituição Alemã, de 1919), é que se ampliou o conceito de direitos humanos.

Nesse novo quadro conceitual, documentos internacionais relevantes surgiram, vislumbrando a necessidade de se alargar a noção anteriormente restrita de direitos humanos, de modo a abranger direitos também econômicos, sociais e culturais da pessoa humana. Em tal linha evolutiva, os direitos individuais e sociais trabalhistas passaram igualmente a ostentar a natureza de direitos humanos.

No debate acerca da importância dos direitos humanos na ordem jurídica interna do Brasil, torna-se necessário analisar o status jurídico em que tais normas ingressam na realidade normativa brasileira. Esse status, com seu patamar jurídico diferenciado perante as normas legais internas, cumpre importante papel no tocante à influência dessas normas no ordenamento jurídico brasileiro.

Tais assuntos é que serão examinados pelo presente item II deste texto acadêmico.

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2.1. Os Direitos Humanos e sua Abrangência

A formulação teórica sobre os Direitos Humanos é tarefa vasta e complexa, que exige do intérprete a sistematização de seus principais aspectos e prismas a partir de perspectivas diferenciadas de ordem filosófica, internacional e constitucional. O que importa, em verdade, é que tais perspectivas se estruturem a partir de um centro comum, que é a concepção de dignidade da pessoa humana, valor-fonte na contemporaneidade do Direito3.

A existência dos Direitos Humanos foi justificada, originariamente, pelo jusnaturalismo, corrente do pensamento filosófico que considerava os homens dotados de direitos naturais anteriores à formação da sociedade, direitos que lhes pertenciam, pura e simplesmente, pelo fato de serem humanos. A partir do contratualismo, os Direitos Humanos tornaram-se juridicamente exigíveis, despontando, assim, a dinâmica de seu reconhecimento e garantia pelo Estado4.

A concepção da historicidade, em contraponto às clássicas teorias do direito natural, considera que os Direitos Humanos se apresentam, no curso histórico, em três momentos distintos: o da conscientização da existência de direitos naturais, evidentes à razão; o da positivação desses direitos no ordenamento constitucional; e, finalmente, o da efetivação dos direitos, eis que reconhecidos e concretizados, no plano social, de forma dinâ-mica e não compartimentada5.

Com respaldo na perspectiva histórica, os Direitos Humanos foram identificados por meio das gerações de direitos, conforme o momento histórico em que surgiram e se afirmaram institucionalmente.6

No curso do Estado Liberal de Direito, desenvolveram-se, com predominância, os direitos de primeira geração ou direitos de liberdade (civis e políticos), que valorizam o homem enquanto indivíduo singular, livre e independente do Estado7.

Os direitos civis, conquistados no século XVIII, fundamentam a concepção liberal clássica de direitos. Os políticos, oriundos do século XIX, referem-se à liberdade de associação e participação política, eleitoral e sindical8.

Importantes exemplos de Constituições que exaltaram os direitos fundamentais de primeira geração são a Constituição Norte-Americana de 1787 e a Constituição Francesa de 1791.

Durante o Estado Social de Direito predominaram os direitos de segunda geração ou direitos de igualdade (direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades9). Esses direitos valorizam o homem enquanto indivíduo pertencente a uma coletividade institucionalizada por um poder estatal de intervenção10. Tais direitos desenvolveram-se sobretudo a partir da segunda metade do século XIX, parte em decorrência das grandes manifestações operárias e sindicais que se acentuaram desde então, depois de consumada a Revolução Industrial na Grã Bretanha e, logo a seguir, na Europa Ocidental; parte desse desenvolvimento se deu igualmente em razão da estratégia adotada pelo próprio Estado para a manutenção da hegemonia do poder.

As Constituições Mexicana, de 1917, e Alemã, de 1919 (Weimar), foram precursoras no processo de afirmação do Estado Social e de constitucionalização dos direitos de segunda geração, processo que também se difundiu largamente pela Europa no período seguinte (ressalvado o refluxo provocado pela experiência nazi-fascista).

Com o Estado Democrático de Direito, particularmente depois da Segunda Guerra Mundial, exaltaram-se os direitos de terceira geração ou direitos de fraternidade e solidariedade. Tais direitos são considerados eminentemente difusos11, eis que marcados por uma alta carga de humanismo e de universalidade, por se ocuparem da defesa dos direitos genericamente atribuídos à sociedade como um todo12. São seus exemplos: direito à paz, ao meio ambiente, ao patrimônio comum da humanidade, à autodeterminação dos povos, entre outros.

Há que se ressaltar que os Direitos Humanos não se revelam de forma estanque na marcha histórica. Enquanto padrão de humanidade e de reivindicação de ordem moral,13 eles se encontram em permanente processo de construção e reconstrução14, surgindo no curso histórico mediante processo

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cumulativo e qualitativo e não por meio de evolução linear15.

É que os Direitos Humanos integram uma mesma realidade dinâmica, podendo e devendo ser compreendidos em múltiplas dimensões, respeitados os seus movimentos dialéticos.

Diante dessa circunstância de não haver linearidade ou sucessividade temporal rigorosa quanto ao surgimento dos diversos tipos de Direitos Humanos, é que a expressão “gerações de direitos” vem sendo insistentemente criticada, por sugerir a impressão de que no curso histórico uma geração de direitos é automaticamente substituída por outra, num processo de necessária alternância16. Ou, de outra sorte, que as três “gerações” se apresentam cronologicamente no tempo, sem inversão possível — o que não se comprova, historicamente, nem mesmo no conjunto da Europa, e muito menos em certos países latino-americanos. Por essas razões, inclusive, é que também se fortalece, na doutrina, o uso da expressão dimensões de direitos.

Nesse mesmo debate teórico e jurídico, acentuou-se a concepção contemporânea ampla de Direitos Humanos, que os identifica a partir de seu caráter indivisível, interdependente e inter--relacionado. Esta teorização representa decisivo avanço em relação à clássica divisão compartimentada e isolada de direitos, na medida em que respeita e exige uma interseção permanente de todo o catálogo de Direitos Humanos (catálogo de direitos civis e políticos em composição com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais)17.

Ressalte-se que este amplo e diversificado catálogo de Direitos Humanos, além de ser integrado por direitos...

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