As nulidades e o processo administrativo: algumas breves considerações

AutorJorge Coutinho Paschoal
Páginas153-190
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aS nUlIDaDeS e O PROCeSSO
aDMInIStRatIvO: alGUMaS bReveS
COnSIDeRaçÕeS
JORGE COUTINHO PASCHOAL
SUMÁRIO: 1. A centralização do poder estatal: primeiro passo
rumo à contenção do arbítrio. 2. Da importância de um
regramento do procedimento ante o monopólio do poder
sancionatório: da passagem do Estado totalitário para o Estado de
Direito. 3. Do formalismo valorativo. 4. Da importância do tema
das nulidades em qualquer disciplina jurídica. 5. O processo
administrativo e o sistema de nulidades. 6. Os planos da existência,
da validade e eficácia do ato jurídico. 7. Classificação das nulidades.
8. Dificuldades da aplicação do sistema de nulidades no direito
administrativo. 9. Da necessidade de estudos a respeito das nulidades
no processo administrativo: algumas observações quanto ao critério
do prejuízo e à insubsistência do critério da violação dos direitos
e garantias fundamentais. Referências Bibliográficas.
1. A CENTRALIZAçÃO DO PODER ESTATAL: PRIMEIRO
PASSO RUMO à CONTENçÃO DO ARBÍTRIO
A resolução dos conflitos, por meio do direito, em todas as searas
jurídicas, mostrou-se uma conquista em termos de ganhos civilizatórios,
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que ainda hoje se mostra algo irrenunciável. Embora sempre seja possível
idealizar um sistema jurídico e/ou punitivo melhor, quer dizer, mais
humano e justo, não é crível ou possível pensar na existência de uma
alternativa ao direito regulamentado.
O direito foi instituído diante da necessidade de conter o caos
punitivo então reinante nas sociedades primitivas, já que – sem alguma
formalização, inexistindo a centralização de um poder central –, a
violência e a brutalidade imperavam em meio à desordem, ínsita a um
sistema orientado pela justiça privada. No Direito Penal, mais
especificamente, Basileu Garcia demonstra os inconvenientes de um
modelo de justiça assim, naturalmente violenta e acompanhada de todos
os excessos, em que a vítima agia contra o seu agressor de modo
emocional e desproporcional: não raras vezes, o que era para ser um
dissídio limitado às partes envolvidas acabava virando um conflito de
todos contra todos, o que só gerava ainda mais guerra, ódio, dor e
violência.1 No velho sistema de vingança privada inclusive os terceiros
poderiam sofrer com a grande incerteza na aplicação dos castigos: não
raro, estes se davam de modo coletivo.
À evidência, sistemas como estes não tinham como oferecer
qualquer tipo de garantia, já que, na resolução do embate, prevalecia
sempre a vontade do mais forte.
Como lembra Antonio Scarance Fernandes, com a “justiça”
privada, havia o risco de ocorrer o massacre de uma tribo pela outra e
o perigo sempre constante de, em cada agrupamento humano, seus
indivíduos passarem a eliminar uns aos outros, sendo imprescindível
delinear-se alguma forma de direito, ainda que rudimentar2, por meio
da instituição de limites e regras que visassem limitar um pouco o arbítrio
então reinante.
Pouco a pouco, assim, percebeu-se o quão perigoso seria um
sistema como esse, baseado muito ainda na ideia de punição privada,
1 Instituições de direito penal. 7ª ed. vol. 1. tomo 1. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 07.
2 A reação defensiva à imputação. São Paulo: RT, 2002, p. 49.
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AS NULIDADES E O PROCESSO ADMINISTRATIVO: ALGUMAS BREVES...
deixada exclusivamente ao arbítrio e nas mãos dos particulares, o que
acarretava inúmeros problemas, pois, como bem se sabe, “ninguém é
bom juiz em causa própria (nemo judex in rem sua)”.3
Deu-se, assim, paulatinamente, em épocas afastadas e distantes da
história (que aqui não seria possível precisar exatamente4), o surgimento
de um incipiente direito sancionatório – na origem, de cunho penal5
mais formalizado, cujo objetivo foi o de conferir maior segurança e
liberdade para todos, em prol do desenvolvimento individual e social.
Evidentemente, essa evolução não se deu de uma hora para outra.
É importante destacar que a concentração de poder – paralelamente
às muitas vantagens que trouxe – também acarretou diversos problemas
(haja vista os abusos de poder), o que demandou a necessidade de se
instituírem maiores garantias; contudo, ainda assim, o quanto exposto
se mostrou algo muito melhor e preferível ao que havia antes (a mais
completa anarquia e o imérito da lei do mais forte), imprescindível para
permitir o desenvolvimento do indivíduo e da vida em sociedade.
Do monopólio do poder regulatório e sancionatório nasce para o
Estado o dever de solucionar a controvérsia mediante um mecanismo
pautado em regras, que, aos poucos, dada a necessidade de uma maior
proteção e segurança, foram se tornando mais claras, precisas e efetivas.
Nesse sentido, o formalismo procedimental (a legitimação pelo
procedimento) colocou-se – nas mais diversas áreas do direito – como
um segundo passo necessário e, talvez, imprescindível, à própria garantia
consubstanciada no formalismo do direito instituído mediante a
institucionalização dos conflitos, de modo a propiciar uma maior
segurança e liberdade para todos os indivíduos.
3 PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. O princípio do devido processo legal: direito
fundamental do cidadão. Coimbra: Almedina, 2009, p. 30.
4 A respeito dessa imprecisão entre as fases de vingança religiosa, privada e pública:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. vol 1. 19ª ed.
São Paulo: RT, 2013, p. 72.
5 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de José Cretella Júnior; Agnes
Cretella. 2ª ed. São Paulo: RT, 1999, p. 27.

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