As origens do igualitarismo

AutorBruno Amaro Lacerda
Páginas28-52
Direito, Estado e Sociedade n.51 p. 28 a 52 jun/dez 2017
As origens do igualitarismo
The origins of egalitarianism
Bruno Amaro Lacerda*
Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora-MG, Brasil
1. Introdução
Em suas ref‌lexões sobre o problema da igualdade, Norberto Bobbio def‌ine
o igualitarismo como a concepção que, não satisfeita com a isonomia ou
“igualdade perante a lei”, defende a realização de uma igualdade material que
elimine, ou ao menos atenue, a desproporção de riquezas entre os homens.
Bobbio observa ainda que, ao contrário de outras doutrinas, o igua-
litarismo não se fundamenta em uma natureza humana comum, mas no
princípio ético segundo o qual a maior igualdade possível entre as pessoas
é um bem e, como tal, uma meta desejável. Este juízo de valor faz com
que as teorias igualitárias se apresentem invariavelmente como propostas
reformistas ou revolucionárias, buscando a transição de uma sociedade de
desiguais para uma sociedade futura de iguais1.
Ciente da complexa história do igualitarismo, que passa pelas pro-
postas socialistas do século XIX, pelo emergir da noção de justiça social
na virada do século XIX para o XX, pela socialdemocracia e, nas últimas
décadas, por uma miríade de concepções que combatem a desigualdade
(liberalismo igualitário, marxismo analítico, éticas da redistribuição e do
reconhecimento etc.), esta investigação pretende regressar aos primórdios
da noção, buscando captá-la em sua origem e em seus primeiros desenvol-
vimentos. O problema que a move pode ser assim enunciado: quando e
por qual razão as primeiras ideias igualitárias surgiram?
* Doutor em Filosof‌ia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora/MG, Brasil. E-mail: brunoamarolacerda@
gmail.com
1 BOBBIO, 1995, p. 35.
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Direito, Estado e Sociedade n. 51 jul/dez 2017
Justif‌ica-se a tarefa lembrando que, nos dias atuais, a igualdade conti-
nua sendo um dos temas mais comuns, senão o mais frequente, das dis-
cussões político-jurídicas. Há quem clame por uma igualdade “real”, “de
fato”, não meramente “formal”, mas também quem repudie com veemên-
cia o discurso igualitário-material, sustentando que o papel do Estado se
limita à garantia das liberdades individuais pela via da isonomia. Nesse
embate, as pessoas tomam posição e partido, discutem, fazem propostas
e contrapropostas, mas nem sempre se preocupam em perquirir a gênese
e o fundamento da visão de mundo que defendem. Desconhecer isso, no
entanto, é ignorar o sentido da própria ideia. Se não se sabe quando e por-
que o igualitarismo surgiu, o que pretendia combater e por quais motivos,
buscar sua realização social como exigência da justiça parece uma atitude
pouco sensata.
Parte-se de uma hipótese que coincide com a visão liberal amplamente
difundida: o igualitarismo teve origem com Rousseau (Bastiat, por exemplo,
criticando as ideias do genebrino sobre a lei e a igualdade, chama-o de “su-
prema autoridade dos democratas” 2) e sua condenação da disparidade de
riquezas contida no Discurso sobre as origens e o fundamento da desigualdade
entre os homens, obra que exerceu profunda inf‌luência sobre alguns dos ex-
poentes da Revolução francesa, como Robespierre e Saint-Just, “montanheses”
que propuseram algumas medidas práticas de combate à desigualdade.
Esta visão, como se verá, não está completamente equivocada. De fato,
tanto Rousseau quanto os montanheses têm um papel de destaque nos pri-
meiros desdobramentos do igualitarismo. A leitura dos textos do período,
porém, mostra que se deve atribuir a Graco Babeuf e seus seguidores, em
um período já avançado da Revolução, a elaboração do primeiro igualita-
rismo consciente, embrião das teorias socialistas que, no século seguinte,
iriam abalar as estruturas políticas da Europa.
2. Locke e a igualdade de direitos
No Segundo tratado sobre o governo civil de John Locke encontra-se uma das
primeiras formulações liberais, com a defesa da igualdade de direitos ou
igualdade perante a lei, a qual posteriormente será rejeitada como insuf‌i-
ciente ou mesmo errônea pelos primeiros defensores do igualitarismo.
2 BASTIAT, 1850, p. 46.
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