As politicas migratorias brasileiras do seculo XIX ao seculo XXI: uma leitura biopolitica do movimento pendular entre democracia e autoritarismo/Brazilian migratory policies from the 19th to 21st centuries: a biopolitic reading of pendular movement between democracy and authoritarism.

AutorWermuth, Maiquel

1 Considerações iniciais

O presente artigo visa à discussão do viés biopolítico que subjaz à temática das migrações no Brasil, bastante evidente a partir do movimento pendular entre democracia e autoritarismo que permeia as políticas migratórias do país. Desde os projetos imigrantistas do século XIX--alicerçados em questões raciais que visavam ao "branqueamento" da população brasileira mediante o fomento da imigração europeia--, passando pelas políticas restritivas que marcaram a primeira metade do século XX--marcadas pela instituição de um sistema de cotas que visava a evitar a concentração das nacionalidades estrangeiras e impedir a entrada dos "indesejados" (Decreto-lei no 406/1938)--, o Brasil sempre adotou uma postura restritiva e utilitarista na condução de suas políticas migratórias, a qual se mostra com todo vigor no âmbito do "Estatuto do Estrangeiro" (Lei no 6.815/1980), que impedia a entrada no país de imigrantes que pudessem representar risco à "segurança nacional" e/ou que não fossem relevantes em face das exigências do mercado de trabalho.

Na contemporaneidade, diante dos fluxos migratórios direcionados ao país, a anacrónica legislação de 1980, por sua absoluta incompatibilidade com os pilares do Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição Federal, é substituída pela nova Lei de Migração (Lei no 13.445/2017), a qual aponta para uma ruptura paradigmática orientada pela efetivação dos Direitos Humanos dos migrantes. No entanto, o Decreto que regulamenta a legislação (Decreto no 9.199/2017) é marcado por retrocessos como a utilização do termo "imigrante clandestino"--demonstrando uma continuidade da perspectiva autoritária, que culmina com o recente rompimento do Brasil com o "Pacto Global Para Migração Segura, Ordenada e Regular" da Organização das Nações Unidas.

Nesse sentido, o problema que orienta a pesquisa pode ser sintetizado na seguinte questão: em que medida as políticas migratórias brasileiras, quando analisadas a partir de uma perspectiva biopolítica, permitem evidenciar um movimento pendular entre democracia e autoritarismo no modo como os direitos humanos dos migrantes são assegurados/violados historicamente no país?

Para responder à problemática de pesquisa, o artigo encontra-se estruturado em duas seções, as quais correspondem, respectivamente, aos seus objetivos específicos. Na primeira, procura-se analisar as políticas imigrantistas do final do século XIX, perpassando pelas políticas migratórias implementadas ao longo do século XX, com ênfase no autoritarismo representado pelo Estatuto do Estrangeiro promulgado na década de 1980; na segunda parte, busca-se apresentar a ruptura representada pela nova Lei de Migração vigente no país--apontando para um cenário de maior preocupação com a efetivação dos direitos humanos dos migrantes em atendimento à uma leitura constitucional e convencional da temática--e dos retrocessos recentes representados pela edição do Decreto regulamentador da referida lei e pelo rompimento do país com o "Pacto Global Para Migração Segura, Ordenada e Regular" da Organização das Nações Unidas.

O método de pesquisa empregado na investigação é o fenomenológico-hermenêutico, o qual "representa a superação do domínio da metafísica no Direito" (STEIN, 2004, p. 168), haja vista não se constituir pela sua exterioridade e exclusiva tecnicidade, mas, sim, "se liga tanto mais à discussão das coisas em si mesmas, quanto mais amplamente determina o movimento básico de uma ciência" (STEIN, 2001, p. 162). É a partir da fenomenologia--no caso, pelo seu viés hermenêutico--que, conforme Stein (2001, p. 169), se dá acesso "ao fenómeno no sentido fenomenológico", ou seja, que se possibilita o desvelamento daquilo que "primeiramente e o mais das vezes não se dá como manifesto".

A metodologia escolhida considera a aproximação do sujeito-pesquisador com o objeto-pesquisado, pois, ao tempo em que a fenomenologia busca enxergar as coisas nelas mesmas, a hermenêutica visa ao ato de compreender com fulcro na condição constitutiva do ser no seu sentido de historicidade. Dessa forma, consoante Stein (2001, p. 187-188), o "ser-aí é, em si mesmo, hermenêutico, enquanto nele reside uma pré-compreensão, fundamento de toda posterior hermenêutica", motivo pelo qual a compreensão não se realiza a partir de um ponto zero do pensamento, mas, sim, decorre de uma constante.

2 O viés biopolítico das políticas migratórias brasileiras do século XX: do "branqueamento" da população à ameaça à "segurança nacional"

No Curso que ministrou no Collège de France entre 1975 e 1976, Michel Foucault empreendeu uma análise mais aprofundada--quando comparada aos textos (FOUCAULT, 2012) e conferências (FOUCAULT, 2003) nos(as) quais anteriormente havia se debruçado sobre o tema--da relação existente entre o poder disciplinar e a biopolítica, evidenciando que há entre eles uma relação de articulação, mesmo que ambos não operem no mesmo nível. Esta articulação estána origem das "sociedades do controle" contemporâneas, as quais são resultado de um movimento de ampliação das técnicas disciplinares de padronização dos corpos que caracterizam as instituições ao longo dos séculos XVII e XVIII, e que nos séculos XX e XXI espraiaram-se para a sociedade como um todo, tendo por objetivo a normalização dos indivíduos em diversas instâncias, induzindo comportamentos e fabricando subjetividades não autênticas.

O que viabilizou essa articulação entre as duas formas de exercício de poder, segundo o filósofo francês, foi a norma. Isso porque a norma representa tanto o que pode ser aplicado "a um corpo que se quer disciplinar quanto a uma população que se quer regulamentar", de modo que a sociedade de normalização não é outra coisa senão "uma espécie de sociedade disciplinar generalizada cujas instituições disciplinares teriam se alastrado e finalmente recoberto todo o espaço." Por meio desses mecanismos--disciplina e regulamentação--o poder, a partir do século XIX, passa a incumbir-se da gestão da vida, o que significa dizer que o poder "conseguiu cobrir toda a superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma parte, e das tecnologias de regulamentação, de outra." (FOUCAULT, 2010, p. 213).

Nesse contexto, o paradoxo que se apresenta diz respeito à conciliação do direito de matar--próprio do modelo soberano--com um exercício de poder preocupado essencialmente com a gestão da vida, seja no que concerne a aumentá-la, seja no que se refere a prolongá-la ou, ainda, multiplicar suas possibilidades à medida que desvia seus acidentes e compensa suas deficiências. A grande questão que se coloca, então, é: como se pode exercer o poder da morte num sistema político centrado no biopoder?

Segundo Foucault (2010, p. 214), o mecanismo que vai permitir o exercício desse poder de morte em um regime de biopoder é o racismo, compreendido a partir de uma dupla perspectiva: em um primeiro momento, o racismo pode ser visto como um meio de introduzir no domínio da vida--de que o poder se incumbiu--o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Eis a primeira função desempenhada pelo racismo: "fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder."

A segunda função do racismo consistirá em legitimar a morte do "outro" a partir de uma maneira inteiramente nova, compatível com o biopoder, qual seja, deixar a vida em geral mais sadia e, consequentemente, mais pura. A eliminação do perigo biológico representado pelo outro é legitimada, dessa maneira, conforme estiver diretamente relacionada ao fortalecimento da própria espécie ou da raça: "a função assassina do Estado só pode ser assegurada, desde que o Estado funcione no modo do biopoder, pelo racismo." (FOUCAULT, 2010, p. 215).

O refinamento da tese foucaultiana reside justamente nesse ponto: a biopolítica enquanto forma encontrada pelo Estado para "gerir a vida da população" não pode ser ingenuamente compreendida pelo seu "caráter humanitário" de administrar, por meio de intervenções políticas, as condições de vida da população. Há um aspecto violento desse controle, denunciado pelo autor, que reside justamente na exigência contínua e crescente da morte em massa do "outro", enquanto instrumento privilegiado para a garantia de melhores meios de sobrevivência de uma determinada população: o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida. Nesse contexto, o princípio "poder matar para poder viver" se transforma no princípio de estratégia entre os Estados, com a particularidade de que a existência em questão já não é aquela--jurídica--da soberania, é outra--biológica--de uma população (WERMUTH, 2014).

O viés biopolítico que subjaz à temática das migrações, no Brasil, fica bastante evidente a partir dos projetos imigrantistas do século XIX, os quais já estavam alicerçados--ainda que sub-repticiamente--em questões raciais. O "branqueamento" da população brasileira--mediante o fomento da imigração europeia--tinha por escopo evitar a "degenerescência" decorrente da mestiçagem. O aporte ao Brasil de imigrantes europeus é visto, então, como condição de possibilidade para a proeminência de uma raça "superior" em detrimento das raças "inferiores".

Em um discurso proferido em julho de 1911, no âmbito do I Congresso Universal das raças, realizado em Londres, o então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro João Batista Lacerda (1) apresentou um ensaio intitulado Sur les métis au Brésil, no qual defendia a tese segundo a qual a população miscigenada do Brasil, dentro de um século, apresentaria um aspecto bastante diferente do atual: "as correntes de imigração europeia, que aumentam a cada dia e em maior grau o elemento branco desta população, terminarão, ao fim de certo tempo, por sufocar os elementos dentro dos quais poderiam persistir ainda alguns traços do negro."(LACERDA apud SCHWARCZ, 2011, p. 239).

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