As razões do direito : desafios da argumentação jurídica para a justiça do Século XXI

AutorGraça Maria Borges de Freitas
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho do TRT da 3ª Região. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) e Especialista em Argumentação Jurídica pela Universidade de Alicante (Espanha).
Páginas127-133

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1. Introdução: a importância do tema

Por fatores de distintas ordens, o tema da argumentação jurídica tornou-se um dos mais estudados e sobre o qual mais produção teórica tem sido feita na área da Filosofia do Direito nos últimos anos.

Há fatores políticos e sociais que justificam esse interesse, pois as mudanças ocorridas na sociedade contemporânea trouxeram consigo o aumento da litigiosidade e da complexidade das demandas judiciais.

Do ponto de vista político, a partir do final dos anos setenta, foi intenso o processo de redemocratização dos países ibero-americanos, cuja repercussão jurídica mais significativa foi o surgimento do constitucionalismo democrático em Portugal e Espanha e, a partir da década seguinte, também em países da América Latina, inclusive no Brasil, com a queda de várias ditaduras e a promulgação de novas constituições de feitio democrático.

Esse fenômeno alterou as estruturas do Estado e, em consequência da ampliação de direitos fundamentais, sociais e políticos, também transformou a aplicação do Direito e o papel do próprio Poder Judiciário.1

O direito produzido a partir daí, denominado de pós-positivista, mudou, seja diante da necessidade de regular situações novas ou mais complexas, seja pela dificuldade de formulação de consensos políticos em uma sociedade mais plural e, portanto, com maior número de interesses em conflito.

Esses fatores fizeram com que o Poder Legislativo transferisse ao Judiciário algumas decisões sobre o conteúdo das normas jurídicas, tanto nas questões envolvendo direitos fundamentais, cujas normas contêm forte carga principiológica, quanto na edição de normas infraconstitucionais abertas, dotadas de conceitos vagos ou conteúdo indeterminado, que pudessem ser adequadas à pluralidade de situações submetidas à apreciação judicial.

A consequência de uma ordem jurídica fundada em normas tanto baseadas em princípios quanto em regras, como a que se verificou com mais força a partir de então, foi a modificação do papel do juiz na construção e aplicação do direito.2

Ao ampliar as possibilidades de soluções jurídicas dos casos e de situações em relação às quais o direito passou a amparar novas pretensões e, ainda, diante da necessidade de concretizar normas abertas e principiológicas aplicando-as aos casos concretos, a necessidade de expor as razões do direito e de justificá-las explicitando os critérios adotados para a decisão também se ampliaram, o que trouxe maior interesse sobre o tema da aplicação das normas jurídicas e da justificação das decisões para filósofos, estudiosos do direito e seus profissionais.

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2. A argumentação jurídica no constitucionalismo democrático

Malem Seña, em texto de título curioso que fala das mudanças históricas do conceito de virtudes do juiz e do significado político da motivação das decisões3, comenta que, em 1768, Carlos III, por meio da "Real Cédula 23", proibiu que os juízes de Maiorca motivassem suas decisões, o que tinha a finalidade de uniformizar o direito espanhol no particular, pois a prática já vigia no direito castelhano desde o século XV.

Havia razões pragmáticas para tal decisão, que era a economia dos trâmites processuais, mas também razões de ordem política, que era a não possibilidade de questionar as decisões dos juízes, que exerciam suas funções por delegação direta do poder do próprio rei:

Quien detentaba la potestad jurisdiccional era el soberano absoluto en virtud de imposición divina, que a su vez delegaba a sus jueces y magistrados el ejercicio de tal potestad, aunque conservando su titularidade y el control sobre las decisiones de sus delegados. Si la legitimidade de la actividad de juzgar y hacer cumplir lo juzgado le era concedido a los jueces por Dios, a través de la delegación del soberano, sus decisiones debian considerarse justas y, por lo tanto, no requerían ser fundadas. Un ataque a las sentencias constituía, en esse sentido, un ataque a la autoridade de los jueces y del monarca, en definitiva, un ataque a Dios. 4

Ressalta o autor que, se a justificação das decisões não decorria de nenhuma motivação ou do princípio da legalidade, elas tinham de se fundar no caráter moral da própria autoridade, ou na qualidade ética do juiz, transferindo-se, na falta de leis, para a figura do juiz a personificação da própria justiça, de modo que o controle das decisões recaía sobre a pessoa do juiz.

Ainda que hoje os magistrados também tenham exigências específicas de qualificações éticas para exercerem o cargo e sofram restrições para o exercício de algumas atividades na vida pública e privada e fiscalização dessas atividades por órgãos integrantes da estrutura do Poder Judiciário, com o surgimento do direito moderno, legislado, a necessidade de justificação das decisões torna-se patente como forma de controlar a própria atividade jurisdicional.

Nesse direito de base liberal, a função do juiz é entendida como de mero aplicador da lei (a boca da lei, no dizer de Montesquieu), de modo que a motivação era vista como forma de controlar o procedimento de subsunção dos fatos à norma jurídica, sendo negada a função criadora da aplicação do direito pelo Poder Judiciário nesse paradigma de Estado.

No constitucionalismo contemporâneo, o dever de motivar a decisão vai mais além do controle da legalidade em sentido estrito, prende-se à exigência de que as decisões observem a ordem constitucional. A explicitação das razões de fato e de direito que levaram à escolha e aplicação da norma para condenar ou absolver a parte demandada, está sujeita ao controle democrático das partes pela via do devido processo legal que, entre outras garantias, dispõe do duplo grau de jurisdição por meio do qual as razões da decisão podem ser questionadas e revistas.

Mas já que o dever de motivar as decisões antecede as mudanças constitucionais atuais, o que diferencia, então, o direito liberal, moderno, daquele fundado no constitucionalismo democrático? E quais diferenças se observa hoje no dever de fundamentar as decisões?

Aguiló Regla5, comentando as características do processo histórico de constitucionalização da ordem jurídica, definido por Riccardo Guastini6 como uma questão de grau, e não de tudo ou nada, enumerou sete características do Estado de Direito fundado em uma ordem constitucional que, de modo resumido, seriam as seguintes:

1 - Conta com uma constituição rígida que incorpora uma série de direitos fundamentais. Quanto maior a rigidez constitucional (dificuldade de modificá-la), maior o grau de constitucionalização da ordem jurídica;

2 - Está prevista a prevalência da constituição sobre as leis e também uma reserva de matérias que somente podem ser derrogadas ou modificadas com alteração da constituição (reserva constitucional);

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3 - Se reconhece força normativa vinculante à constituição, o que supõe que todos os enunciados constitucionais, independentemente de sua estrutura e conteúdo, são normas jurídicas que obrigam os seus destinatários e, portanto, são autoaplicáveis. Desaparece, portanto, a velha categoria de "normas programáticas";

4 - Produz-se uma "sobreinterpretação" da constituição, ou seja, uma interpretação extensiva que foge da mera literalidade e da qual se extrai grande quantidade de normas e princípios implícitos;

5 - Considera-se que as normas constitucionais são suscetíveis de ser aplicadas diretamente por todos os juízes e em todos os tipos de casos (aqui acrescento que isso se aplica mesmo aos ordenamentos jurídicos em que prevalece o regime de controle concentrado), logo, as normas constitucionais se aplicam tanto nas relações com o Estado quanto nas...

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