As Recentes Decisões do STF sobre os Direitos dos Trabalhadores: Reforma ou Destruição? Uma Releitura

AutorAlmiro Eduardo de Almeida e Oscar Krost
Páginas204-212

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I Introdução

O Direito não se resume ao texto de lei, embora nele encontre uma de suas principais fontes. O conteúdo das normas jurídicas (regras e princípios), sejam elas explícitas (positivadas) ou implícitas (detraídas da interpretação), é descoberto e construído posteriormente a sua elaboração pelos Poderes Legislativo ou Executivo, quando aplicado a casos concretos pelo Poder Judiciário. Mais do que um processo silogístico e hermenêutico, a averiguação da hipótese normativa ao suporte fático e as consequências daí advindas, em lides concretas e originadas na vida social, são resultado de embates entre interesses divergentes, em um dado momento histórico e político, marcando a tensão entre regulação e emancipação.

Neste particular, a jurisprudência ocupa papel de destaque na revelação e atribuição de sentido às normas, sendo compreendida não como uma sucessão de precedentes judiciais, mas uma sedimentação (nunca definitiva) em dada linha sobre um tema, ao longo de um considerável tempo, culminando, por sua vez, com a harmonização de entendimentos mediante a edição de súmulas pelos tribunais.

A nosso ver, não resta dúvida de que essa compreensão do papel do Poder Judiciário, se faz necessária, sobretudo, nesse momento, que poderia ser designado como pós-apocalíptico do Direito do Trabalho.

Ocorre que, dentro do panorama de “reformas”, algumas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) vêm causando profundas e abruptas modificações na jurisprudência trabalhista, contrárias aos fundamentos axiológicos do próprio Direito do Trabalho, fato que merece atenção dos atores juslaboralistas.

Sem dúvida alguma, cabe ao STF a guarda e a inter-pretação da Constituição, conforme art. 102 da própria Constituição. Mas de igual forma, não apresenta qualquer dúvida a afirmação de ser a Justiça do Trabalho o ramo competente e especializado para processar e julgar demandas oriundas das relações de trabalho em sentido amplo, merecendo os fundamentos e interpretações de

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suas construções jurisprudenciais o devido acatamento e observância, salvo em hipóteses de manifesta violação à Lei Maior.

Assim, propõe-se neste estudo, analisar as particularidades da jurisdição trabalhista, inclusive as inspiradas nos fundamentos do próprio Direito do Trabalho, e, em um segundo momento, examinar alguns julgados recentemente proferidos pelo STF em matéria trabalhista, cuidando de suas implicações práticas no mundo do trabalho. Para tanto, serão utilizados textos doutrinários e alguns precedentes jurisprudenciais, de modo a fornecer elementos iniciais para o estabelecimento de debate sobre o tema. Por questão de honestidade intelectual, esclarecemos, desde já, ao leitor, que o presente texto trata da atualização de artigo semelhante, publicado antes da aprovação da Lei n. 13.467/2017.1

II Separação de poderes, constitucionalismo e direitos fundamentais dos trabalhadores

A compreensão das crises social, política e econô-mica que atingem grande parte dos países ocidentais, exige o conhecimento prévio da estrutura organizacional desses países, pois grande parte dos problemas são resultado de uma incapacidade do Estado em fazer política e realizar justiça. Por isso, faz-se premente examinar a dinâmica que cerca a separação dos Poderes do Estado, o significado do constitucionalismo e a fundamentalidade dos direitos dos trabalhadores.

Muito embora os filósofos gregos da Antiguidade já sustentassem sua necessidade2, a realização prática da separação de poderes remonta ao século XVIII, o século das revoluções (Americana de 1776 e Francesa de 1789), marcadas pela queda dos Estados Absolutistas e Monárquicos e sua substituição por Estados de

Direito de matriz Liberal. Deixou-se para trás a concentração em uma única figura, o rei ou imperador, das funções Executiva, Legislativa e Judiciária, bem como dos estamentos sociais desprovidos de mobilidade. Em seu lugar, a burguesia em ascensão clamava por uma organização governamental escalonada e sujeita à alternância de gestores, com representantes que exercessem mandatos temporários, escolhidos por voto, para ocuparem postos nos Poderes Executivo e Legislativo, com duração estabelecida, além de independência em relação ao Poder Judiciário.

Cada uma dessas forças exerceria uma função preponderante3, dentro do Estado, de administrar, normatizar e julgar, podendo ser fiscalizada e até mesmo refreada pela outra. Com isso, pretendeu-se alcançar uma harmonia que concebia o poder de julgar como “invisível e nulo”, recebeu, mais tarde, o nome de sistema de freios e contrapesos.4

Por questão de segurança jurídica – valor fundamental para a realização de negócios pelos burgueses emergentes do século XVIII – essa estrutura deveria contar com um documento escrito e formal, não suscetível à mudança por maiorias ocasionais. Interessante notar que a lógica se mantém nos dias de hoje, em que o Mercado e organismos internacionais se apresentam como sujeitos interessados nas estruturas internas dos países com os quais se relacionam, erigindo a segurança jurídica como valor fundamental. É justamente a pretensão de aumentar a segurança jurídica que se encontra na grande maioria das justificativas do que vem sendo chamado de reforma trabalhista.

Esta regra, de maior rigidez e hierarquia no sistema jurídico, é a Constituição Nacional dos países, ápice da normatividade e verdadeiro filtro de validade das demais disposições legais. O positivismo jurídico

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oitocentista pode ser considerado como uma guinada na tentativa de superação do Direito Natural até então adotado como fonte de direitos e deveres, já que o rei não era escolhido pelos súditos, mas assim considerado por questões de linhagem ou divindade.5

Com as Constituições e a separação de poderes, acabaram, por consequência, sendo positivados alguns direitos dos cidadãos considerados fundamentais, por sua relevância social, cuja evolução, segundo Ingo Sarlet, é “de certa forma, também a história da limitação do poder”.6

Esses direitos, de natureza civil e política, tinham por principal característica assegurar a liberdade do indivíduo em face do poder público, bem como sua participação política. São os direitos fundamentais de primeira geração7, garantidores de uma igualdade de natureza formal.

Há um deslocamento do eixo produtivo entre os séculos XVIII e XX, do comércio para a indústria, gerando grande acumulação de renda, mas também sua concentração e desigualdade social. Uma série de fatores levam à transição do Estado Liberal Clássico para o Estado de Bem Estar Social, que tem por objetivo a busca da igualdade em sentido material, não mais sendo a preocupação manter a “liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado (...) revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas”.8 Passam a ocupar a pauta estatal direitos a prestações sociais positivas, marcados não mais por uma omissão do poder público no que diz respeito a essas questões, mas por uma ação vinculada à assistência social, à saúde, à educação e ao trabalho, dentre outros, originando os direitos fundamentais de segunda geração. Nesse período, reconhece-se a fundamentalidade dos direitos sociais, em especial, do Direito do Trabalho. A partir de então, um rol de direitos trabalhistas mínimos passa a constar expressamente em várias Constituições Nacionais.9

Em um período histórico não muito exato, iniciado após 1945, passa a ser difundida a ideia de Direitos de fraternidade ou de solidariedade, fundamentais de terceira geração, afetos a interesses coletivos e difusos, como a paz, a autodeterminação dos povos, o meio ambiente e a qualidade de vida, muitos dos quais sequer objeto de constitucionalização expressa. Não há neste momento, como ocorre em relação àqueles que o precederam, uma definição clara do papel do Estado, havendo uma forte tendência à redução de seu campo de atuação.

Divididas as funções do Estado, positivado este arranjo em uma Constituição Nacional e assegurados aos cidadãos direitos fundamentais de liberdade, igualdade e fraternidade, tornou-se necessária a criação de um órgão dentro do Poder Judiciário que exercesse a tutela da própria Constituição.

Neste particular, existem dois grandes modelos no Ocidente, o de origem norte-americana e o de matriz alemã. No primeiro, foi instituída uma Suprema Corte, integrada por juízes antigos e experientes, com papel de decidir casos em que as regras poderiam violar em tese a Carta Maior – controle de constitucionalidade concentrado. No segundo, por sua vez, optou-se pela diluição entre todos os juízes do país, do poder de apreciar a constitucionalidade das regras em vigor, em sistema conhecido por difuso.

Como se infere dos arts. 97 e 102 da Constituição, adotou-se no Brasil um modelo híbrido. Enquanto compete ao STF analisar a constitucionalidade de leis e atos

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normativos em abstrato mediante Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIns), Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), dentre outras, cabe aos tribunais e juízes em geral, inclusive ao próprio STF, apreciar a constitucionalidade de leis e atos normativos quando julgam os casos concretos que lhes são submetidos à apreciação. Especificamente quanto ao controle de constitucionalidade em concreto realizado pelo STF, é necessário destacar que, embora julgue casos particulares, o órgão pode atribuir eficácia erga omnes a tais decisões, que passam a ser vinculativas.

Entretanto, mesmo cabendo ao STF a guarda da Constituição e de seus valores, sua competência em matéria trabalhista deve ser examinada com cautela, em caráter residual, pois o...

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