As transformações do campo judiciário na república

AutorJosé Guilherme Vasi Werner
Páginas47-132
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AS TRANSFORMAǛES DO
CAMPO JUDICI˘RIO NA REPÐBLICA
O Poder Judiciário brasileiro passou por diversas modiicações no curso de nossa
história. Essas alterações envolveram sua estrutura, seu organograma, por assim
dizer, e seus membros, em especial a magistratura de carreira.
Mesmo que a maior parte dessas transformações tenha se dado em sua or-
ganização formal e distribuição de competências, não há dúvida de que resulta-
ram, também, em modiicações no campo judiciário como um todo, afetando as
relações de poder e as posições referenciadas no campo.
A importância dessas transformações se deve às características do campo
judiciário da qual já falamos, isto é, sua ligação com o campo jurídico e com o
Estado (por meio de sua parcial organização formalizada), e os habitus de seus
agentes, tudo fazendo com que se valorizem signiicativamente suas posições
formais, que se transformam nos capitais objetivados de que cuida Bourdieu.
Como vimos, a simples ocupação de cargos ou funções no campo investe o
ocupante de um grande montante de capital judiciário que, por sua vez, conver-
te-se a taxa favorável em capital aproveitável no campo do poder, de modo que a
modiicação do organograma é levada em alta conta.11
A frequência e a intensidade das transformações da organização formal do
judiciário são compatíveis com outras características do campo judiciário, por
nós descritas e que, por sua vez, dão conta de uma de suas principais causas: as
demandas sociais.
Quanto à frequência, poderíamos dizer que desde a Independência a orga-
nização formal do Judiciário sofreu alterações dignas de nota em pelo menos 12
ocasiões (em 1890, com a criação da Justiça Federal pelo governo provisório da
República; em 1891, com a primeira Constituição republicana; em 1926, com a
Reforma Constitucional levada a efeito pela Emenda de 3 de setembro; em 1932,
com o Código Eleitoral e o destaque dado ao papel dos juízes; nos regimes cons-
11 Essa valorização do cargo, por si só, é acentuada e desenvolvida especialmente na obra de Weber
(CITAÇÃO) e é um dos fatores que nos leva a reconhecer a enorme inluência do CNJ na consolida-
ção da hierarquização e centralização do Poder Judiciário no Brasil.
48 O CNJ e a Reconfiguração do Campo Judiciário
titucionais de 1934, 1937 e 1946; no restabelecimento da Justiça Federal de pri-
meiro grau pelo Ato Institucional nº 2, de 27 de outubro de 1965; no regime
Constitucional de 1967 e de sua emenda de 1969; com a edição da Lei Comple-
mentar nº 35, de 14 de março de 1979 – LOMAN; na redemocratização reletida
na Constituição de 1988 e inalmente na Reforma do Judiciário representada na
Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
Embora tal frequência seja elevada se comparada a modiicações relatadas
nas sociedades democráticas tradicionais do mundo ocidental, sugerindo certa
instabilidade institucional, devemos notar que tais modiicações se deram, em
sua absoluta maioria, na esteira das transformações político-constitucionais que
levaram a organização judiciária “a reboque” e normalmente não a viam como
um objetivo principal.
Paradoxalmente, porém, mesmo “pegando carona” nas transformações de
regime, as modiicações ocorridas no campo judiciário por força do redesenho
de sua dimensão formal não se devem tanto à necessidade de adequação às mu-
danças dos focos de poder (salvo na passagem da unidade para a dualidade com
a superação do Império unitário pela República federada), mas à oportunidade
de se atender às demandas especíicas de maior independência dos magistrados,
de maior autonomia dos tribunais e de maior controle de uns e outros.
Ao analisarmos o campo judiciário de uma perspectiva histórica, podemos
perceber, ao contrário de uma primeira impressão de instabilidade, que é um
campo normalmente estável, ainda que sujeito a episódios de transformação
eventuais e espaçados no tempo, o que se relete na caracterização da evolução
de sua dimensão formal (o Poder Judiciário) por aquilo que os teóricos do insti-
tucionalismo chamariam de “punctuated equilibrium”, um equilíbrio com inter-
corrências que não chegam a descaracterizá-lo.
E enxergar o Poder Judiciário no Brasil como uma instituição sujeita a um
equilíbrio intermitente e o campo que dele emana como um domínio de espaços
e disputas suscetível a estímulos externos permite destacar as inluências que
sofre do campo político que, por sua vez, veicula estímulos oriundos de certas
demandas sociais e de exigências do campo do poder.
São essas demandas e o modo como foram veiculadas nos principais epi-
sódios de transformação anteriormente referidos que procuraremos descrever
brevemente neste capítulo, com a intenção de indicar o sentido dessas transfor-
mações e, assim, contextualizar historicamente e identiicar o signiicado da cria-
ção do Conselho Nacional de Justiça para a evolução do campo judiciário.
Apresentaremos as principais transformações do campo judiciário desde a
Proclamação da República, procurando identiicar nesses momentos os interes-
ses sociais atinentes ao Judiciário que então se colocavam em disputa no campo
As Transformações do Campo Judiciário na República 49
político e o faremos não somente com os textos constitucionais, mas com o auxí-
lio dos discursos parlamentares extraídos das sessões dos órgãos encarregados
de deini-los, fossem eles assembleias constituintes ou casas legiferantes. Por
meio desses discursos, esperamos demonstrar que a cada momento de modiica-
ção corresponderam diversos interesses sociais ou setoriais especíicos quanto
à organização do Poder Judiciário e que afetaram, consequentemente, a conigu-
ração do campo.
Veremos que na conformação do Estado republicano as discussões sobre o
Poder Judiciário reletiram interesses que traduziam uma preocupação com as-
pectos genéricos e abrangentes (macro) da organização da jurisdição no Brasil,
praticamente não aparecendo discussões sobre temas mais especíicos (micro),
como as relações entre os agentes do campo e o papel que cada um deveria exer-
cer, o que se justiicava pelas necessidades mais imediatas das estratégias políti-
cas de divisão do poder no território nacional.
Diferentemente, nos demais episódios de transformação, os interesses fo-
ram aos poucos se orientando para aspectos micro do espaço social representa-
do no campo, ensejando uma interferência mais profunda, dirigida não apenas ao
desenho das estruturas, mas, também, ao ingresso e comportamento dos agen-
tes do campo, de forma que, paulatinamente, as demandas sociais foram deixan-
do de lado as preocupações com a divisão do poder nacional e a contenção da
autoridade. Ao mesmo tempo, as modiicações do campo judiciário podem ser
relacionadas com movimentos e interesses orientados para a maior ou menor
autonomização do campo.
Veremos, também, que se até uma certa fase na sua história o campo judiciá-
rio evoluiu em direção a uma maior autonomia, talvez indicando uma comunhão
de seus interesses com aqueles de outros campos, a partir de um determinado
ponto as disputas entre eles acabaram por favorecer uma estratégia de redução
de sua autonomia, quem sabe por que a alguns deles se mostrou mais eiciente a
disputa a partir de posições no campo político ou da advocacia e valendo-se de
interferências externas ao campo.
A criação do CNJ coincide com esse movimento de inlexão no processo de
autonomização do campo, como procuraremos demonstrar.
4.1 AUTONOMIZAÇ‹O E CAMPO JUDICI˘RIO
Antes, porém, de apresentar as principais transformações do campo judiciário,
devemos explanar, mesmo que brevemente, aquilo que, na esteira de Bourdieu, to-
mamos por “autonomização” de um campo e como identiicamos esse processo no

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