Aspectos curiosos da prova testemunhal: sobre verdades, mentiras e enganos

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas27-44

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Ao meu pai Lourival Vilela Viana (in memoriam) e ao amigo Luiz Otávio Linhares Renault

1. Introdução

A prova testemunhal nos sugere muitas perguntas. No campo estritamente legal, podemos indagar, por exemplo, qual é o rito adequado, quem tem capacidade para depor e quais as conseqüências do falso testemunho.

No campo das ideias, podemos pesquisar a diferença entre a verdade real e a formal, ou até mesmo discutir a existência de verdades.

Mas esse texto não se aprofunda em análises jurídicas, e muito menos se atreve a devaneios filosóficos. Apenas aqui e ali toca de leve nessas questões. O objetivo é outro; o enfoque é diferente.

O artigo começa por uma breve incursão na história da prova, recolhendo no trajeto os seus aspectos mais interessantes; em seguida aborda a face oculta do processo, para enfim se deter, mais longamente, na psicologia do testemunho.

Embora importantes, as questões aqui tratadas não costumam merecer grande atenção nas Escolas de Direito. Mas isso não significa que essa abordagem seja muito original: na verdade, é apenas a soma de umas tantas leituras, outras tantas reflexões e algumas pitadas de experiência.

Apesar do que possa sugerir o título, o traço que liga esses aspectos curiosos não é tanto o pitoresco, mas o humano. E humano não em oposição a desumano, cruel, e sim no sentido de falho, instável, contingente.

O propósito é servir aos que se iniciam na carreira — especialmente na Justiça do Trabalho. Mas seria sempre bom se um colega mais experiente ou competente se sentisse instigado a prosseguir nesses caminhos.

2. A testemunha e as suas verdades
2.1. Uma breve história da prova

A história da prova quase se confunde com a do homo sapiens.

Muito antes de haver um processo, os homens já julgavam os seus semelhantes; e para isso, com frequência, recorriam à magia1. Ainda assim, é de se supor que — quando sucedia alguma desgraça — as testemunhas do fato eram ouvidas.

Num mundo ainda sem letras — e mais tarde, durante muitos séculos, com poucos letrados — a fala era virtual-mente o único modo de transmitir saberes, perpetuar experiências e assim garantir a vida do grupo. Entre os antigos hindus, dizia-se, por isso, que:

A palavra é santa. É a nossa própria alma, leva em si o nosso alento, nossa própria vida (...) É tudo obra da palavra (...) Com palavras há de provar-se (...) A palavra é o próprio deus falando por nosso intermédio. 2

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Mais tarde, as primeiras civilizações criaram as ordálias — ou juízos de Deus. O Código de Hammurabi já as conhecia:

Se um awilum lançou contra um (outro) awilum (uma acusação de) feitiçaria mas não pôde comprovar: aquele contra quem foi lançada (a acusação de) feitiçaria irá ao rio e mergulhará no rio. Se o rio o dominar, seu acusador tomará para si sua casa. Se o rio purificar aquele awilum e ele sair ileso: aquele que lançou sobre ele (a acusação de) feitiçaria será morto e o que mergulhou no rio tomará para si a casa de seu acusador. 3

Assim, a verdade não era investigada, mas revelada; deus, presente ao julgamento, ordenava ao rio o que fazer. Ou talvez o próprio rio fosse também um deus...

Mais além, no Império Romano, as ordálias cederam passo a outros meios de conhecer a verdade — e a prova testemunhal ganhou novo impulso.

Nem por isso, no entanto, era vista sem cuidados. O legislador “multiplicava os seus conselhos ao juiz”4 — recomendando, por exemplo, não aceitar as “testemunhas infames”, como prostitutas e gladiadores.

Com os bárbaros, as ordálias voltaram, com toda a força. AMARAL SANTOS relata alguns exemplos, colhidos aqui e ali5.

Assim é que, em caso de homicídio, o acusado tocava o umbigo ou as feridas do morto. Se este sangrasse, esbravejasse ou espumasse, o juiz o condenava6. Na prova do pão e do queijo, comia-se até não poder mais. Na prova das serpentes, quem morresse picado era o culpado — e já estaria punido.

Em outra prova, o acusado tocava um pão que o padre abençoara; se o pão (aos olhos dos juízes) ondulasse, a culpa estaria provada. Algumas vezes, pedia-se aos litigantes que abrissem os braços diante da cruz, enquanto se rezava o Evangelho; quem os deixasse cair, perdia a causa.

Havia também a prova das bebidas amargas. Era preciso tomá-las sem fazer caretas. Na prova do fogo, o acusado passava entre espinheiros em chamas, com a roupa embebida em cera7.

Entre os franco-lombardos, o acusado devia retirar objetos da água fervente, sem queimar as mãos. Em outra prova, bem ao contrário, mergulhava as mãos na água fria; se elas se queimassem — naturalmente por obra divina — ele seria condenado.

Uma ordália ainda mais estranha, referida por FOUCAULT, consistia em amarrar a mão direita ao pé esquerdo do acusado e jogá-lo ao rio. Se ele se salvasse, era sinal de que nem mesmo o rio o queria — atestando assim a sua culpa8.

Comuns, também, eram os duelos. Quando envolviam dois nobres, as regras eram igualitárias. Mas quando um nobre duelava com um plebeu, tirava a armadura e descia do cavalo, para diminuir as diferenças.

Mulheres, velhos e crianças também duelavam, mas por intermédio de seus campeões. Em alguns lugares, as mulheres podiam combater pessoalmente — mas nesse caso o nobre se fazia enterrar até a cintura9.

Mais do que a simples procura da verdade, o processo — sobretudo em sua versão medieval — era a metáfora da guerra; ou, se preferirmos, uma nova etapa do conflito, com a mesma lógica de antes, embora com outros fins e novas regras10. Assim, não importava investigar a verdade; o vencedor era o mais forte, ou o mais hábil, o que (como veremos) até certo ponto ainda acontece. Também por isso, nem havia sentença; e poucas vezes se ouviam testemunhas. O árbitro, quando presente, garantia apenas a observância do rito.

Pouco a pouco, porém, o Direito Romano foi voltando, misturado com o Canônico e com as próprias ordálias.

Assim, em certos lugares, privilegiavam-se as testemunhas; mas se elas se contradiziam, tinham de duelar entre si. As do grupo vencido, se ainda vivas, perdiam a mão direita — salvo se preferissem pagar 1/3 do valor da causa ao fisco e 2/3 ao adversário11.

Quando os Estados nacionais vão se fortalecendo, várias demandas passam a interessar ao rei — que não se sujeita, naturalmente, às ordálias. Assim, na França, Luis IX proíbe os duelos. E como as testemunhas já não correm o risco de perder as mãos, são obrigadas a depor. Pouco a pouco, elas se destacam das partes para se aproximar do juiz — embora conservem, ainda e sempre, um pouco do traço antigo.

Nasce o sistema do inquérito12. Agora, o que se quer é reconstituir os fatos fielmente. A verdade já não é revelada,

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mas investigada13. A justiça se insere na idade da razão, que implica o cálculo, a organização, a regra precisa — modos de explicar e assim legitimar a sentença do juiz.

Um exemplo dessa evolução está justamente na prova testemunhal. Em geral, no período anterior, as testemunhas apenas atestavam a credibilidade de quem jurava. Já agora, como ensina REIS DE PAULA, elas próprias

(...) passaram a ter de tomar posição com relação ao tema objeto da prova, submetendo-se a um interrogatório para revelarem a ciência própria que tinham dos fatos. 14

É dentro desse quadro que penetra, pouco a pouco, o sistema da prova legal ou tarifada.

Os autores contam quase 100 regras. Duas testemunhas valiam prova plena. Um homem era igual a três mulheres. Um nobre valia cinco plebeus. Um padre tinha o peso de sete. Contra o papa, nada se podia provar. Testis unus, testis nullus15.

A prova testemunhal chega a superar até o documento escrito: témoins passent lettres. O depoente que tergiversa é torturado. A partir do século XV, a situação se inverte: lettres passent témoins. Mas não de todo, pois a testemunha deve confirmar os documentos. As Ordenações do Reino proíbem a prova apenas oral em vários casos, para evitar os “sangrentos conflitos” provocados pelos falsos testemunhos16.

Ainda hoje — no sistema da persuasão racional17

— a prova oral, como sabemos, é muito comum. Mas é sobretudo no foro trabalhista que as testemunhas desfilam, intermináveis, à frente do juiz.

É que a relação de emprego, mesmo quando formal, contamina-se de informalismos; apesar dos limites da lei, o contrato de trabalho se transforma tanto que, às vezes, “é reconhecível apenas pelos seus sujeitos”18. Ou talvez nem mesmo assim19.

Por outro lado, se as ordálias eram um modo de continuar e ritualizar a guerra, o processo moderno conserva boa parte desses traços. Para além do interesse expresso na demanda, o contraditório esconde ou sublima a vontade de agredir, de ferir, às vezes até de matar.

A prova oral, em particular, pode servir de palco para pequenas batalhas paralelas e silenciosas, envolvendo partes, advogados, testemunhas e juiz. Uma das mais comuns é a que se trava entre o advogado que “trabalhou” a testemunha e o juiz que procura neutralizar aquele “trabalho”. Assim, se o depoente, tranquilizado pelo advogado, parece mentir calmamente, o juiz tenta intranquilizá-lo de novo, lembrando que “pode ser preso”.

Mas o processo esconde outras batalhas, quase sempre despercebidas. Na Escola Judicial do TRT da 3ª Região, por exemplo, a psicóloga JUDITH DE ALBUQUERQUE tem observado, pela análise de dezenas de audiências, como um simples pedido de horas-extras pode conter graves motivações subjetivas. As questões entre as partes chegam ao juiz “travestidas de lides trabalhistas, quando, na verdade, são relacionadas a afetos intensos, de outra ordem”20.

O próprio juiz traz para a sala de audiências as suas simpatias, os...

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