Aspectos da reforma trabalhista quanto à duração do trabalho - avançando perigosamente para o passado?

AutorFrancisco Alberto da Motta Peixoto Giordani
Páginas55-63

Page 55

Ver Nota1

O que alguns queriam e vários outros temiam, que o projeto de reforma trabalhista se transformasse em lei, aconteceu; agora, portanto, é hora de “arregaçar as mangas”, estudar as novas disposições legais, que visam/versam aplicações concretas do Direito do Trabalho, sem relegar ao oblívio – imagino –, o que justifica e qual a razão de ser desse frondoso ramo da árvore jurídica, o qual, também e como todos os demais, deve respeito e integral obediência à Constituição, e há de cumprir/honrar os tratados e convenções internacionais que o Brasil firmou e ratificou, como também não deve, nem pode, apartar-se do estágio atual dos estudos acerca da interpretação/aplicação das leis, dando a devida consideração à visão do ordenamento jurídico como um todo (lembrando que a lei não contém todo o direito), não sendo as normas trabalhistas um mundo à parte, que podem e/ou têm o direito de ignorar o resto desse mesmo ordenamento, desprezando a valiosa contribuição que podem dar (rectius: efetivamente dão!) seus princípios e regras, sua doutrina e jurisprudência, sempre tendo em vista a razão final e maior de tudo: a dignidade da pessoa humana, no nosso caso, cuidando da dignidade humana da pessoa que vive-do-seu-trabalho, por conta de um contrato de trabalho, ou não deveria/ deve ser assim?

Os novos dispositivos, em verdade, são, quase todos, muito “duros”, para com a visão tradicional do Direito do Trabalho, parecendo querer romper, apagar do cenário jurídico e/ou deixando apenas como estudo de um direito que não existe mais, a não ser na memória de um passado que se foi, toda a visão, todos os ensinamentos de reconhecidos e valorosos mestres, que com grande sabedoria e de maneira irrefutável, explicaram o porquê de existir e existir do modo que existia (existia?), o Direito do Trabalho, que, na visão dos arautos da mudança, hodiernamente, se constitui (o Direito do Trabalho que se conheceu/conhece até hoje) num entrave, já que a CLT é antiga, da década de 1940 do século passado, logo, com normas ultrapassadas, acabando por incentivar/alimentar a litigiosidade, recebendo a Justiça do Trabalho quantidade absurda de processos por ano, além do que as leis trabalhistas tiram a competitividade dos produtos brasileiros e um empregado já não precisa de tanta proteção, e outros “argumentos” mais, na mesma linha de raciocínio, e utilizados de forma distorcida!

Entretanto, para um posicionamento mais seguro, creio que, à partida, algumas perguntas devem ser feitas e sinceramente respondidas, tais como: a situação do trabalhador brasileiro mudou, a ponto de ser possível dispensar a proteção que o Direito do Trabalho sempre lhe conferiu, de modo a justificar, ou melhor, ser justa/correta a ideia de que pode ser tão intensamente mitigada, como é feito e/ou representa um ponto de partida para inúmeras das prescrições da nova lei? A dignidade da pessoa humana do trabalhador estará preservada ou ficará, num sem-número de situações expostas/sujeitas a agressões/desrespeito? E o meio ambiente de trabalho equilibrado, como obrigação de rasgo constitucional, não restará, em várias situações, comprometido?

No que toca ao primeiro questionamento, difícil conceber como dispensar e/ou mitigar a proteção que o Direito do Trabalho tem por missão conferir ao trabalhador (e razão de ser da implicância de muitos para com ele), numa quadra em que se depara, em nosso País, com milhões de desempregados (fala-se em mais de treze milhões!), e que, por conta disso mesmo, entre outros motivos, um trabalhador, para ter e/ou manter seu emprego, tende a aceitar tudo e mais ainda, ante o mais do que justificado pavor de não consegui-lo ou perdê-lo, como consta de artigo escrito pelo signatário deste singelo estudo, em conjunto com competente estudiosa dos temas laborais:

Não é preciso ser um profundo conhecedor da alma do indivíduo empregado para saber o pânico que lhe toma a alma e atinge-o no mais recôndito do seu ser, a só menção da palavra desemprego; aliás, em muitos casos, nem sequer é preciso mencioná-la, tudo faz lembrá-la: os noticiários dos meios de comunicação, os vizinhos sem trabalho, a massa de pessoas à procura de emprego nas ruas, o próprio ambiente de trabalho, o humor dos superiores hierárquicos, a disputa ou o isolamento entre os colegas de serviço, uma legislação que permite, regra geral, a ruptura do vínculo contatual sem maiores dificuldades etc”.2

Assim e para dizer o mínimo, houve grande insensibilidade e/ou pouca (nenhuma?) preocupação com a sorte de

Page 56

milhões de trabalhadores, ao se propor, no momento atual, uma mudança que parte do “pressuposto” de que um trabalhador, num quadro dantesco de desemprego, tem “força” ou igualdade que permita-lhe negociar e recusar quando lhe convier, alguma diretiva que seu empregador anele seja observada, na relação entre ambos.

A propósito do argumento da crise – e que não empolga – , de lembrar, à partida, que o Direito do Trabalho nasceu com e por causa de crise, logo, viver/conviver com crise, não é novidade para esse ramo do direito!

Ainda, quanto ao argumento “crise”, é preciso considerar que há recebê-lo com muita cautela, grande reserva e muita desconfiança, pois, como lembram Patrícia Dittrich Ferreira Diniz e Marco Antônio César Villatore, citando posicionamento de Joseph Alois Schumpeter3:

Por fim, ele assegura que a crise é essencial para o desenvolvimento do capitalismo, inclusive chamando-a de destruição-criativa, uma vez que em razão de determinado distúrbio, no sistema, o capitalismo precisa ser criativo e se reinventar para sobreviver”.

Vale citar a observação de António Casimiro Ferreira, de que4:

Neste sentido, e em muitos casos, a crise tem sido utilizada como mais uma oportunidade de subordinar os trabalhadores individuais, os governos e mesmo sociedades inteiras ao ritmo dos mercados do capitalismo global. Quanto aos trabalhadores, os sucessivos pacotes de austeridade agravam as situ-ações de trabalho precário e de fragilidade laboral, evidenciando que a função de pagar a crise recai sobre as pessoas, suas famílias e pensionistas”.

Por seu turno, no “Dicionário das Crises e das Alternativas”, dos investigadores do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, na palavra crise, está dito que5:

Por vezes, a palavra ‘crise’ não é tanto usada para descrever uma situação difícil, e até perigosa, mas antes para agravar e até criar essa mesma situação. A História antiga e contemporânea diz-nos que os políticos (e poderes dominantes) procuram produzir, frequente e ativamente, um clima de crise – seja social, econômico ou ‘afetivo’ – de forma a alterar o equilíbrio da balança constitucional a seu favor”.

Foi criado um clima de terror, com intenso uso da cultura do medo, para que as pessoas passassem a acreditar na absoluta necessidade das modificações propostas, as quais foram já adotadas, em alguma medida, talvez nem tão insensível em outros países, sob os mesmos pretextos, mas sempre sem o sucesso alardeado, o que demonstra o acerto do asserto de que “O texto respira o ar do seu contexto”, que José de Melo Alexandrino em artigo de sua larva, atribui ao Presidente do Tribunal Constitucional, em Seminário que teve lugar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 23.04.2014.6

Todavia, ficou/fica por demonstrar, mais uma vez e como sempre, qual a relação entre os níveis de proteção do emprego e os números de desemprego, que sempre se fala, “se joga no ar”, mas não se demonstra, como pondera o grande Prof. João Leal Amado7:

A verdade é que, até hoje, a ciência econômica nunca conseguiu demonstrar a existência de uma relação causal entre o nível de proteção do emprego e as taxas de desemprego”.

Fato esse que fragiliza a coluna vertebral da argumentação acerca da necessidade das medidas adotadas, ou não?

Relativamente ao princípio da dignidade da pessoa humana, antes do mais, há recordar lição do preclaro Celso Antônio Bandeira de Melo, para quem:

A Constituição não é um simples ideário. Não é apenas uma expressão de anseios, de aspirações, de propósitos. É a transformação de um ideário, é a conversão de anseios e aspirações em regras impositivas. Em comandos. Em preceitos obrigatórios para todos: órgãos do Poder e cidadãos.

6. Como se sabe, as normas jurídicas não são conselhos, opinamentos, sugestões. São determinações. O traço característico do direito é precisamente o de ser disciplina obrigatória de condutas. Daí que por meio das regras jurídicas não se pede, não se pede, não se exorta, não se alvitra. A feição específica da prescrição jurídica é a imposição, a exigência.” 8

Page 57

Parece que esse “aspecto” da Constituição não foi muito (ou quase nada) observado pelo legislador reformista, o qual ainda olvidou o peso/valor que possui o princípio da dignidade da pessoa humana na nossa Lei Maior, atento a que, como superiormente dito pelo inesquecível mestre Antonio Junqueira de Azevedo9, “o princípio jurídico da dignidade fundamenta-se na pessoa humana e a pessoa humana pressupõe, antes de mais nada, uma condição objetiva, a vida. A dignidade impõe, portanto, um primeiro dever, um dever básico, o de reconhecer a intangibilidade da vida humana (...) Em seguida, numa ordem lógica, e como consequência do respeito à vida, a dignidade dá base jurídica à exigência do respeito à integridade física e psíquica (condições naturais) e aos meios mínimos para o exercício da vida (condições materiais)”; aliás, essa magna relevância do princípio em tela nem precisaria/precisa de maior desenvolvimento para justificá-la, porquanto “o princípio da dignidade da pessoa humana, expresso no artigo 1º, inciso III, da Carta Magna, como fundamento estrutural da Nação, e que merece, portanto, ser interpretado como o princípio maior ou determinante no âmbito constitucional e geral. Tal princípio poderia até ser denominado ‘princípio dos princípios’, na medida em que constitui o núcleo essencial do Estado...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT