Aspectos da competência jurisdicional penal Internacional

AutorCristiano Ribeiro Ritta
Páginas125-147

    O presente trabalho foi revisado e extraído da monografia Tribunal Penal Internacional: aspectos da competência jurisdicional penal internacional, apresentada na conclusão de curso da Faculdade de Direito da Universidade da Região da Campanha, sob orientação do Prof. José Eduardo Coelho Corsini, obtendo grau máximo.

Cristiano Ribeiro Ritta. Bacharel em Direito pela Universidade da Região da Campanha (Bagé/RS); assessor de Juiz da 3ª Vara Cível de Bagé/RS. crritta@tj.rs.gov.br

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1 Fundamentos da Jurisdição Penal Internacional

A conduta humana que se mostra contrária à norma de Direito forja o ilícito jurídico cuja reprovabilidade depende do grau de afetação do bem juridicamente tutelado. Nessa esteira, seguindo a lição de Nelson Hungria, podemos afirmar que o ilícito penal é a violação do ordenamento jurídico, contra a qual, pela sua intensidade ou gravidade, a única sanção adequada é a pena.3 Por meio das regras impostas à obediência de todos, o Estado mantém o equilíbrio das relações sociais, uma vez que a inobservância da norma penal acarreta a aplicação da sanção penal, deferida somente ao Estado, que detém o monopólio do poder coercitivo-punitivo, chamado jurisdição. Jurisdição é, pois, “a atividade constante, por meio da qual o Estado, pelos seus órgãos específicos, provê à tutela do direito subjetivo, aplicando o direito objetivo a uma situação litigiosa concreta.”

Ante o binômio antagônico que se estabelece entre o jus puniendi e o jus libertatis, o Estado atua como substituto da vontade das partes para, justa e pacificamente, compor o litígio. A apreciação da lide é feita por órgão específico, ao qual o próprio Estado destinou a função jurisdicional. Nos países que adotam o sistema inglês ou sistema de jurisdição única, como o Brasil4, somente o Poder Judiciário é competente para dizer e aplicar, em caráter definitivo, a vontade da lei ao caso concreto. Entretanto, as premissas que fundamentaram o exercício da jurisdição na soberania do Estado, apresentam-se insuficientes para confortá-lo diante da nova ordem jurídica e social que se estabeleceu nas últimas décadas.

Impende reconhecer que o indivíduo é a máxima expressão do Poder e do Direito, e a atuação do Estado só será justificada se for capaz de assegurar-lhe os direitos e as liberdades fundamentais em sua plenitude.5 Essa compreensão rompe as barreiras da soberania formal, na medida em que o indivíduo é sujeitoPage 127 ativo e passivo da atuação do Estado.6

A universalização dos direitos humanos baseia-se em método dedutivo de princípios comuns a todos os povos, sobre os quais a comunidade internacional buscou identificar aqueles que representam a dignidade da pessoa humana. Considerar a existência de valores comuns da humanidade pode parecer ingênuo diante do relativismo ético dos conceitos, mas trata-se dos bens fundamentais do ser humano, sobre os quais o Direito internacional deve efetivar a inviolabilidade.

A teorização desses direitos desenvolveu-se ao longo da história à sombra das concepções jusnaturalistas dos direitos fundamentais da pessoa humana, de onde provém a noção de que tais direitos são inatos, absolutos, invioláveis, intransferíveis e imprescritíveis. É forçoso admitir, sob essa perspectiva, que o Estado moderno não é capaz de garantir, sozinho, a efetiva tutela dos direitos humanos - há muito demonstrado pelas bárbaras violações experimentadas ao longo da história por diversos grupos sociais. A tutela dos direitos humanos transcende a idéia tradicional de que somente ao Estado compete garantir a paz de seus cidadãos e impõe sobre a soberania a atividade conjunta da comunidade internacional.

Não se pretende, com essa iniciativa, suprimir a legitimidade da ordem jurídica dos Estados nacionais na proteção dos direitos humanos. Ao contrário, aspira-se a proporcionar à sociedade elementos estruturais que confirmem a eficácia e a legitimidade de seus direitos, inerentes à condição humana, e que, muitas vezes, no ordenamento jurídico disponível, terminam por frustrar expectativas, justamente pela ausência de confiabilidade operacional.7

Dessarte, o Estado Moderno reconhece e aceita a jurisdição efetivada por órgãos supranacionais quando, diante dos casos em que a justiça interna é incapaz de aplicar o Direito aos crimes contra os direitos humanos, os órgãos jurisdicionais internacionais – ou, em determinados casos, órgãos jurisdicionaisPage 128 internos de outros países – exercerão a competência penal. Não se trata de supressão ou submissão da soberania, mas da única maneira de efetivamente garantir a inviolabilidade dos direitos fundamentais dos cidadãos.

1. 1 Jurisdição Penal Internacional e soberania do Estado

A fim de estudar a amplitude da jurisdição penal internacional, é necessário traçar um conceito sobre o objeto em foco. A premissa que norteia a jurisdição penal internacional não se restringe ao dogmatismo dos elementos de territorialidade e soberania interna. No plano internacional, não há hierarquia entre as jurisdições nacionais, porquanto não há poder verticalizado. Conforme observa Rodrigo Fernandes More, as relações internacionais são horizontais, decorrentes da harmonia do “pacto das soberanias”, onde nenhum Estado deixa de ser mais ou menos soberano ao permitir que decisões estrangeiras produzam efeitos em seus territórios, já que o ato permissivo é um exercício de soberania.

A toda evidência, percebe-se que o modelo de Estado absolutista evoluiu para o Estado Democrático de Direito como forma de satisfazer as necessidades individuais, e, na impossibilidade, a comunidade internacional deve supervisionar e assegurar a proteção dos direitos humanos8. A mera coexistência entre os Estados soberanos deu lugar a um sistema de cooperação entre as nações, a fim de que toda comunidade internacional caminhe para um bem comum: a paz.

Essa preocupação ficou bastante evidente quando o modelo da soberania de Westfália - surgido em 1648 e que durou até 1945, concebido como a estrutura orgânico-jurídica dotada de poder normativo e força coercitiva exclusiva sobre determinada comunidade9 – sucumbiu ante os desmandos cometidos contra os direitos humanos durante a Segunda Guerra Mundial. O emblemático “Estado racial” criado por Hitler no período do Holocausto representou o marco definitivo da luta pela dignidade humana. As violações contra os direitos fundamentais foram tantas e tão graves que não se poderia esperar outra oportunidade para que aPage 129 comunidade internacional fixasse a criação de uma justiça penal internacional.

Esse período terrível da história da humanidade foi crucial para que as nações iniciassem um processo de arquitetura internacional de proteção aos direitos individuais, com vistas a impedir que esses fatos voltassem a ocorrer, o que culminou na criação da Organização das Nações Unidas – ONU. No plano da responsabilidade criminal, foram criados o Tribunal Internacional Militar (Tribunal de Nüremberg) e o Tribunal Internacional para o Extremo Oriente (Tribunal de Tókio). Nesse contexto histórico, é que a Assembléia Geral das Nações Unidas promulgou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, com o fim de estabelecer limite mínimo para a atuação do Estado em relação aos cidadãos, ainda que sem a pretensão de transformá-la em direito internacional positivo.

Esses crimes afetam toda a humanidade independentemente do local onde foram cometidos ou de quem sejam seus perpetradores – pessoas individuais ou o próprio Estado. Essa compreensão designou nova roupagem para os instrumentos internacionais de proteção não mais considerados apenas como um conjunto de princípios de pragmatismo moral, mas deduzidos como mecanismos de tutela jurídica do Direito Internacional que se apresentam, no plano interno, como normas de jus cogens.

A dimensão da jurisdição internacional deixou de ser simplesmente “a prerrogativa estatal atribuída pelo ordenamento internacional que permite aos Estados estender seu controle sobre pessoas, recursos e eventos ocorridos fora de seu território”.10 Por certo que a universalização das relações entre Estado e cidadão abriu as portas da tutela dos direitos humanos a uma ordem jurídica internacional supra-estatal, na qual se reconhece a legitimidade de instâncias externas superiores, com jurisdição e competência capazes de sobrepor-se às jurisdições nacionais.

Nessa esteira, o eminente Professor Carlos Eduardo Adriano Japiassú conceitua o Direito Penal internacional:

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“O Direito Penal Internacional é o ramo do Direito que define os crimes internacionais (próprios e impróprios) e comina as respectivas penas. O Direito Penal Internacional estabelece, também, as regras relativas: à aplicação extraterritorial do Direito Penal interno; à imunidade de pessoas internacionalmente protegidas; à cooperação penal internacional em todos os seus níveis; às transferências internacionais de processos e de pessoas presas ou condenadas; à extradição; à determinação da forma e dos limites de execução de sentenças penais estrangeiras; à existência e funcionamento de tribunais penais internacionais ou regionais; a qualquer outro problema criminal vinculado ao indivíduo que possa surgir no plano internacional”.11

2 Competência Jurisdicional Penal Internacional

A delimitação das condições para o exercício da jurisdição é realizada por meio de critérios de fixação da competência, com o objetivo de resguardar a ordem jurídica e a autoridade da lei nos limites estabelecidos para o exercício de cada órgão jurisdicional. Conforme sintetiza Elias Braga, competência é a porção do poder...

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