Aspectos jurídicos relativos às desocupações de moradias em áreas de risco em decorrência de desastres

AutorAparecida Veloso Pereira - Fernando Cordeiro Barbosa
CargoGraduação em Direito (UBM), Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil (UNIFOA/ESA) e Mestre em Defesa e Segurança Civil (UFF) - Graduação em História (UFF), Mestrado em Antropologia (UFF) e Doutorado em Antropologia (UFF)
Páginas30-51

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Aspectos jurídicos relativos às desocupações de moradias em áreas de risco em decorrência de desastres

Aparecida Veloso Pereira* Fernando Cordeiro Barbosa**

1. Introdução

Os desastres relacionados às chuvas têm sido recorrentes nos últimos anos no contexto urbano da sociedade brasileira. Inundações, alagamentos, enchentes, desabamentos e deslizamentos têm recebido a atenção de especialistas de diferentes áreas de conhecimento. A possibilidade de integrar estudos da área tecnológica e física e estudos da área de humanas revela o caráter multifacetado e multidisciplinar presente na temática em questão. Estudos sobre clima, relevo, solo e índice pluviométrico, bem como estudos voltados para o processo de urbanização, de políticas habitacionais e de formas de organização social, são algumas das variadas possibilidades de investigação sobre essa temática.

Há enfoques generalizantes, mas também há microanálises. Há aqueles relacionados às transformações ambientais globais em consequência da modernidade, seguindo viés teórico de estudiosos como Beck1e Giddens2, como há enfoques que privilegiam a organização e a estrutura social de uma sociedade especíica, como aqueles relacionados ao planejamento ur-

* Graduação em Direito (UBM), Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil (UNIFOA/ESA) e Mestre em Defesa e Segurança Civil (UFF). E-mail: aparecidaveloso@gmail.com.

** Graduação em História (UFF), Mestrado em Antropologia (UFF) e Doutorado em Antropologia (UFF). E-mail: fernandocordeiro@uol.com.br
1 BECK, 2010.
2 GIDDENS, 1991.

Direito, Estado e Sociedade n.41 p. 30 a 51 jul/dez 2012

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bano e à política habitacional brasileira, como os estudos de Valêncio3, e há ainda análises que privilegiam estudos de casos de determinadas comunidades em um evento especíico, como o estudo desenvolvido por Affonso4,

sobre os desabamentos ocorridos na região de Gentio, no distrito de Itaipava, no município de Petrópolis (RJ).

Uma recorrência presente nesses estudos é a referência a determinadas áreas como “área de risco”. A concepção de um espaço social como “área de risco”, que geralmente é associada à potencialidade de ocorrência de um evento que gera perdas e danos, segue determinados normativos e tem diversas implicações.

Há inclusive no ordenamento jurídico do país regras para a desocupação de imóveis em “áreas de risco”. A desocupação de residências em “áreas de risco”, contudo, está longe de resolver a questão. Acomete ou potencializa outros problemas de ordem social além de demandar outras questões de ordem jurídica, como aquelas relativas ao sentido da proprie-dade. Questões caras, economicamente, socialmente e simbolicamente, aos moradores que vivenciaram processos de desocupação, mas que são praticamente desconsideradas por agentes do Poder Público e que também ainda não mereceram a devida atenção de estudiosos da temática de desastres e de Defesa Civil.

O presente estudo traz deinições de áreas de risco, função social da propriedade, análise de instrumentos jurídicos que transformam a posse em propriedade, como ações de usucapião e desapropriação. Descreve ainda, a concessão de uso especial para ins de moradia, que embora não transforme a posse em propriedade garante aos detentores desse direito a possibilidade de permanecer no imóvel.

O objetivo deste artigo é justamente apresentar algumas situações jurídicas e certos aspectos da propriedade em áreas consideradas de risco e como, eventualmente, ocorrem desocupações de residências nessas áreas devido ao risco de desabamentos. A intenção é focar nas implicações legais desses procedimentos e nos instrumentos jurídicos disponíveis em nossa sociedade, com observação aos direitos dos moradores e se eles são respeitados.

3 VALÊNCIO, 2004.

4 AFFONSO, 2009.

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2. Características de áreas de risco

Antes de analisarmos os aspectos jurídicos relativos às desocupações de moradias em “áreas de risco” em decorrência de desastres faz-se necessário compreender a caracterização de uma área como tal. A concepção de uma área como “área de risco” está atrelada à ideia de perigo. Um even-to que produz perigo é aquele que apresenta dimensões fora dos padrões habituais de ocorrência. Todavia, além do caráter potencial de um evento como ameaça, ele só ganha tal dimensão se o meio social em que ocorre apresente, em regra, condições precárias de existência. Nesse sentido, além dos aspectos de ordem física e natural, como elevados índices pluviométricos em topograias acentuadas ou a beira de rios, no desastre há também aspectos que são da ordem do social, como o complexo processo de ocupação de áreas urbanas.

Uma “área de risco”, portanto, caracteriza-se por ser uma área potencialmente em perigo, devido à sua vulnerabilidade social, que é relexo de uma frágil base infraestrutural. Nessa concepção, a natureza dos desastres não estaria diretamente relacionada aos fenômenos naturais, mas sim à vulnerabilidade existente em uma organização social que se revela de forma emblemática frente a esses eventos5. O grau de vulnerabilidade, por sua vez, varia de acordo com as características socioambientais. As ameaças que fazem parte desta questão apresentam fatores que se entrelaçam e são interdependentes, possuindo uma variabilidade que vai desde a questão climática e geológica até o sistema produtivo e o uso dos recursos naturais.

A classiicação, por seu turno, de uma área como “área de risco” não é universal e nem é consensual. Todavia, a classiicação feita por determinados agentes do poder público é a que tem preponderância para efeitos legais e é a que subsidia ações de controle sobre as áreas assim denominadas. Os parâmetros utilizados são baseados em um conjunto de conhecimentos institucionalizados produzidos para avaliação dos efeitos deletérios e para ações de controle de danos e da ordem social, atendimento emergencial e prevenção.

Há inclusive o Manual de Desastres do Ministério da Integração Nacional que, sobre moradias em “áreas de risco”, airma que a daniicação e a destruição de residências são as consequências naturais da constru-

5 VALÊNCIO, 2004; MARCHEZINI, 2010.

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ção de unidades residenciais em desacordo com as normas de segurança construtiva e construções em áreas inseguras. Devido à ocupação de locais com pouca ou sem infraestrutura, especialmente em morros e encostas, os escorregamentos e desabamentos ocorrem e geram um enorme custo material e social. Ser proprietário de um imóvel em área considerada de risco, ou seja, área com probabilidade de perigo, nem sempre, portanto, é uma opção do morador, tornou-se falta de opção por áreas melhores. As cidades foram crescendo, parte delas, planejada, urbanizada, todavia, a maior parte sem planejamento e sem regularização, o que gerou a ocupação de áreas impróprias e inseguras, do ponto de vista estrutural.

3. Instrumentos jurídicos relativos à posse e à propriedade nas áreas de risco

Para compreender as questões relativas à posse e à propriedade, necessário se faz, além de entender o que vem a ser uma área de risco, observar as questões sobre a função social da propriedade. Na sequência, a análise de parte das regras que está positivada no ordenamento jurídico do Brasil, ou seja, o que é necessário para ter a posse de um imóvel, a diferença entre a posse de fato e a propriedade de direito, como um cidadão que tem a posse de um imóvel pode transformá-la em propriedade, em quais situações são cabíveis as ações de usucapião e desapropriação; o que é a concessão de uso especial para ins de moradia e o direito adquirido.

A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB) de 1988 garante o direito à propriedade e determina que a propriedade deve atender a sua função social. Expõe regras sobre a competência da União, Estado e Municípios, conforme artigo 23, que determina que “é de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios pro-mover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” (inciso IX).

A propriedade, segundo regulamentos jurídicos, vem a ser o amplo direito sobre um bem imóvel, adquirido através de escritura pública regis-trada em Cartório, podendo o possuidor usar e dispor.

A posse, por sua vez, é uma situação de fato, gerada pela ocupação de um imóvel, não necessariamente registrado em nome de quem o habita. Sobre a posse, prevê o art. 1196 da Lei nº 10.406/2002 que institui o Código Civil (C.C.) e identiica como “possuidor todo aquele que tem de

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fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à proprie-dade”. E o Art. 1204 determina que se adquire a posse “desde o momento em que se torna possível o exercício, em nome próprio, de qualquer dos poderes inerentes à propriedade”.

Segundo Nascimento6, a posse acontece antes de ser pensada juridicamente, ou seja, realiza-se no mundo dos fatos. Só depois de um deter-minado momento passa a ter aspecto jurídico. Ressalta que “o direito, ao receber a posse já formada, não lhe muda a estrutura; somente acrescenta qualiicações e efeitos”. Portanto, para o autor, posse é fato que relete em diversas consequências jurídicas.

As duas situações (posse e propriedade) são encontradas nas áreas consideradas de risco, porém em sua grande maioria o que ocorre é apenas a posse, que não está totalmente amparada pelo ordenamento jurídico, pois este...

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