Aspectos jurídicos do desabamento

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas293-326

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E caddi come corpo morto cade.

Dante

Depois, a casa continuou desabitada e caiu lentamente em ruínas, como toda habitação à qual a presença do homem não mais comunica vida.

Victor Hugo, Os Miseráveis

I Introdução

Em qualquer caso, o desfazimento da edificação constitui operação claramente perigosa e da qual podem surgir consequências pessoais e patrimoniais muito graves. Assim, além da responsabilidade civil e profissional dos agentes, nosso ordenamento consagra a responsabilidade penal por vícios de construção ou manutenção do edifício que o levem à ruína. Há três delitos tipificados no ordenamento jurídico-penal que, determinando a solidez continuada da edificação, punem o seu reverso que é o desabamento. São eles o crime do art. 256 do Código Penal (“desabamento ou desmoronamento”) e as contravenções dos arts. 29 (“desabamento de construção”) e 30 (“perigo de desabamento”) da Lei das Contravenções Penais (v. textos no anexo). Desconsiderando as normas de segurança, o ruir descontrolado, utili-

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zando meios poderosos ou irrazoáveis, constitui ato ilícito notório que atinge a incolumidade pública, tendo consequências jurídicas várias, dentre elas a penal1. Mas dele igualmente derivam consequências civis e administrativas importantes porquanto os controles se multiplicam dada a gravidade potencial do fato.

Por certo, o sistema jurídico pune tão fortemente os agentes humanos que, por ação ou omissão, causam desabamento em razão de exporem a perigo a vida, a integridade física e o patrimônio de outras pessoas, em número indeterminado, que se encontram no entorno da edificação ou mesmo dentro dela (os operários, por exemplo). Esta exposição ao perigo ou mesmo a mera probabilidade de expor ao perigo pessoas e bens circundantes – e não apenas o dano efetivo, que pode ocorrer ou não, assim como o próprio perigo, diante da queda do prédio, pode não se configurar – basta para dar fundamento à punição dos responsáveis pelo desabamento: pune-se a possibilidade do dano, punese melhor dizendo o risco, pune-se mesmo a provocação, voluntária ou involuntária, do perigo. É a chamada “dupla couraça” (Sebastian Soler) do Direito Penal que, visando tutelar certos bens jurídicos, pune tanto a lesão efetiva quanto a probabilidade da lesão. Cabe observar que o termo “risco”, para Joan Corominas, pode ter derivado do termo catalão para “penhasco”, considerando o enorme perigo que correm “os que transitam por estes lugares ou o navegante que se aproxima deles”.

Considerando que, ao contrário do que escreve Vasari na vida de Brunelleschi, os arquitetos deixaram de considerar a eternidade da construção, veja-se, com clareza, que tanto o levantamento da edificação quanto o seu posterior desfazimento (= desconstrução), ou seja, a demolição da obra já feita, dependem de licença prévia do Poder Público porquanto se trata de modificação do prédio e, logo, do solo

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urbano. No entanto, como bem mostra a jurisprudência, o erro na execução do projeto de demolição ou de edificação poderá caracterizar o delito, como desabamento culposo, involuntário, não querido. Nesse sentido, o desabamento é fato – anormal, patológico, antinatural – que foge do controle seja dos responsáveis, seja Poder Público e que tem potencial danoso efetivo, tanto que é punido desde a Mesopotâmia, região onde vários assentamentos humanos começaram a se formar há cerca de 10.000 anos atrás2. Daí a existência das várias figuras típicas, criminosas, como veremos, que atingem tanto o fato concreto quanto sua provocação, ou mesmo a possibilidade de sua existência (ruína), mesmo não havendo prejuízo presente algum.

Com função preventiva de ilícitos, o Direito, dessa forma, protege o cidadão seja contra a lesão efetiva à pessoa (forma típica qualificada) seja contra o perigo do dano (arts. 256 do CP e 29 da LCP), seja ainda contra a ameaça do perigo do dano (art. 30 da LCP, perigo de desabamento) causado pela queda da edificação. Em outras palavras, mesmo a eventualidade do fato merece punição do Estado para coarctar, de qualquer modo, a conduta perigosa. Ocorre aqui, como em todos os delitos de perigo, uma “antecipação ou adiantamento da proteção do direito penal” (Pierangeli).

II O contrário da solidez

Conceitualmente, desabar é vir abaixo, é cair com estrépito, violência e rapidez; é ruir, é derribar, é desmantelar, é desmanchar-se a edificação de modo inusitado e, às vezes, inesperado – porquanto pode haver a intenção do desabamento, que se torna então voluntário, por ação ou omissão, ingressando no campo penal. O clássico dicionário do filólogo Émile Littré define bem como “ruine”: “destruction d’um bâtiment qui tombe de lui-même ou qu’on fait tomber” (“destruição de uma

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edificação que cai ou que alguém faz cair”)3. As duas hipóteses – cair e fazer cair – estão bem caracterizadas nesta definição. No Brasil, a ruína há de ser sempre da estrutura física, ao contrário do que acontece, por exemplo, na Espanha onde o Tribunal Supremo evoluiu a interpretação de ruína “física” para admitir a “ruína funcional”, como vício da edificação (art. 1591 do Código Civil espanhol4), equiparando-as.

O desabamento, portanto, significa a ruína material da edificação, que é um conceito bastante abrangente seja pelas causas (porque caiu?), seja pela extensão daquilo que ruiu (o que caiu?), seja, de outro lado, pelas consequências jurídicas (quais os danos ou perigos causados e quem são os responsáveis?). E, potencializando o ilícito, pode significar a violação do dever profissional de preocupação com o bem-estar coletivo, gerando várias responsabilidades (que é sempre decorrência da violação de deveres, “deberes colegiales o deontológicos”, como diz a lei espanhola). Ele é a própria negação da exigência – legal e técnica – de solidez da obra de Engenharia e Arquitetura: (a) construção, obra em processo, ou (b) edificação, obra concluída, como um estádio, um muro ou um condomínio edilício. A obra desaba primeiramente quando não é “firme” (firmitas), qualidade destacada por Vitrúvio (e mesmo bem antes dele) como essencial do edifício.

Na Mesopotâmia – que produziu uma magnífica arquitetura monumental urbana –, o Código de Hammurabi, cujo texto foi identificado e traduzido em 1902, já tratava do assunto em 1754 a.C., punindo com a pena do talião (ius talionis). O texto é o seguinte: “Se um pedreiro edificou uma casa para um homem livre, mas não reforçou o seu trabalho e casa, que construiu, caiu e causou a morte do dono da casa, esse pedreiro será morto. Se causou a morte do filho do dono da casa, ma-

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tarão o filho desse pedreiro” (§§ 229/2305). É sabido que a metáfora da construção na areia é bíblica: Jesus, no Sermão da Montanha, chama sensato o homem que constrói sobre a rocha e de insensato o homem que constrói sobre a areia (supra petram/supra arenam) – “Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, ela caiu. E foi grande sua ruína” (Mt, 7:24-27).

Já no início da ordenação sistemática do solo urbano, entre nós, o Código de Posturas do Município de São Paulo, de 1886, igualmente punia com prisão o mestre de obras “que der por concluída qualquer obra e esta ameaçar ruína, quer por mal construída, quer por falta de alicerce ou má combinação dos materiais empregados”. Neste caso, “sendo assim declarado por peritos em exame, será [o mestre de obras] multado em 30$ e oito dias de prisão, sem prejuízo da indenização a que for obrigado” (art. 33). Hoje, para além dos aspectos administrativos – que permanecem –, o tema está consagrado pelo Direito Penal, que contempla o crime de desabamento, tanto pelo perigo posto quanto pelo perigo suposto e até pressuposto (perigo de desabamento, art. 30 da LCP).

III Especificações do conceito de desabamento

Para estabelecer corretamente o conceito, é importante distinguir o desabamento (a) do desmoronamento e (b) da demolição, que são figuras jurídicas afins. Quanto à primeira distinção, o Código Penal dá o mesmo tratamento punitivo a ambas as figuras delituosas (desabamento e desmoronamento), quando praticadas por vontade humana. Mas são fenômenos distintos. Como ensina José Henrique Pierangeli, o desabamento refere-se à “queda de construções em geral”, enquanto o desmoronamento ajusta-se à “queda de formações telúricas (rochedos, pedreiras, minas, barrancos, etc.)”6, ou seja, movimentação de partes

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do solo natural causada pelo homem. A origem etimológica do termo é significativa: vem do castelhano “borona”, ou seja, broa, confeito cuja massa espedaça e esfarela (esboroa)7. Um deslizamento de encosta (fenômeno geológico que ocorre em superfícies naturais inclinadas), uma avalanche (“valanga”, prevista na lei penal italiana) não constituem desabamento mas desmoronamento, que também pode ser provocado voluntariamente, por ação ou omissão (v.g., falta de um muro de arrimo).

Quanto à segunda distinção, o desabamento absolutamente não se confunde com a demolição embora sejam termos com o mesmo prefixo latino, denotando privação, afastamento, separação. Aqueles são modos bastante distintos de desfazimento ou desmantelamento8 da obra que antes tinha sido aderida ao solo natural: considerando a impermanência das formas, ela vai se desincorporar dele, voltando os materiais à condição de bens móveis (art. 84 do CC/02). Sendo compulsória ou voluntária, a demolição é uma obra de Engenharia ou de Arquitetura destinada a desfazer a edificação de modo técnico, racional, metódico. Daí porque depende de licença do Poder Público (a licença para executar demolição), que vai verificar, dentre outros aspectos, a...

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