Aspectos nebulosos do contrato de mandato: uma cortina de fumaça a ser dissipada

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas43-59

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Estudo previamento publicado na Revista do Advogado 32 (2012), pp. 78-ss.

Introdução

Dados os estreitos limites da tarefa que nos foi “confiada” – e logo mais o leitor terá a oportunidade de compreender que a utilização do termo destacado não é acidental – pretendemos aqui abordar, de maneira bastante singela (ainda que sob uma perspectiva problematizante), alguns aspectos pontuais do contrato de mandato – tal qual disciplinado pelos artigos 653 a 692 do Código Civil em vigor.

Desta forma, o material seguinte não pode ser compreendido como uma análise “científica” do contrato de mandato; para tanto, seria necessário utilizar um espaço talvez maior do que aquele que nos é gentilmente cedido pela “Revista do Advogado” (e pelo qual ficamos imensamente agradecidos). Contudo, para não correr o risco oposto (o da “superficialidade” excessiva, que redunda em “mais do mesmo”), devemos destacar que a batuta que conduz a presente exposição é a do advogado – sempre a buscar respostas ágeis (porém teoricamente robustas) a questões exsurgentes em seu próprio dia a dia. Assim, o leitor encontrará em inúmeras obras doutrinárias uma abordagem exauriente do tipo contratual objeto de nossa incursão. Dedicaremos nossa atenção, todavia, a pequenos aspectos práticos que podem exsurgir na vida do profissional – aos quais a doutrina não nos parece dedicar uma atenção suficiente.

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Feita tal ressalva inicial, propomos – como método de análise – cinco problemas práticos, para cuja solução contribuem as regras estabelecidas no Código Civil vigente a propósito da disciplina do contrato de mandato. Vamos aos casos.

  1. Mévio é surpreendido com a notícia de que sua filha está grávida. Ela se apresenta ao próprio pai, junto de seu namorado, informando que os dois pretendem se casar, uma vez que embora a gravidez não tivesse sido plane-jada, fora recebida com muita alegria pelos futuros cônjuges. Mévio, pretendendo socorrer o casal (desprovido este de um patrimônio mais expressivo), pretende adquirir, à vista, um imóvel contíguo àquele habitado atualmente pela família, com a finalidade de que os recém-casados tenham a privacidade necessária ao estabelecimento de sua relação conjugal. Contudo, Mévio está ciente de que, tão logo tal informação chegue ao conhecimento de Tício, seu vizinho, este elevaria o preço do imóvel, à vista do interesse daquele em um deslinde rápido da questão. Pergunta-se: de que forma poderia Mévio se precaver ante um eventual ânimo especulativo de Tíciofi

  2. Paulo precisa viajar ao exterior e tem interesse, contudo, em participar de uma licitação ainda não concluída quando de seu embarque à Europa. A fim de que seja representado durante as etapas sucessivas do certame, celebra contrato de mandato com Semprônio. Tão logo procurado por Paulo, Semprônio se sensibiliza com os particulares contornos da matéria submetida, notadamente naquilo que concerne à importância da vitória ao cabo do procedimento licitatório referido, uma vez que a situação patrimonial do primeiro é bastante delicada. Ajustados os honorários de Semprônio, fica convencionado o seu parcelamento em três vezes: a primeira parcela para pagamento no dia seguinte à contratação; a segunda na véspera do ato mais importante do certame licitatório; e a derradeira, trinta dias após o encerramento da licitação (qualquer que seja o desfecho do certame). Tendo havido o inadimplemento, pelo mandante, das duas primeiras parcelas que inte-gram a remuneração neste mandato oneroso, pergunta-se: pode Semprônio lançar mão da “exceptio non adimpleti contractus”, deixando de comparecer a solenidade integrante do procedimento licitatório – e ainda que a suspensão da execução contratual redunde, pois, em prejuízo ao mandantefi

  3. A fim de comemorar suas bodas de prata, Públio pretende adquirir imóvel situado no Município de Santos/SP, diante do qual havia – muitos anos antes – um banco de praça no qual passava as longas tardes de domingo

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    ao lado daquela que veio a ser a sua esposa. Contudo, assoberbado de atribuições profissionais, não pode comparecer pessoalmente ao litoral paulista, a fim de que a avença seja celebrada (em tempo hábil, aliás, para que seja promovido o “tempestivo” registro imobiliário). Para tanto, outorga poderes de representação a Tício, constando da procuração que este tem poderes para “adquirir imóvel no Município de Santos/SP”. No entanto, em virtude de ressentimentos derivados de acalorada discussão após uma partida de futebol, Tício – conquanto soubesse que Públio pretendia adquirir exclusivamente o imóvel que lhe havia sido previamente indicado – celebra contrato de compra e venda tendo por objeto imóvel diverso daquele contratualmente ajustado. Pergunta-se: o comportamento malicioso de Tício pode isentar Públio de responsabilidade ante o vendedor?

  4. A Fundação “Alfa” desenvolve atividades de radiodifusão sonora e radio-difusão de sons e imagens voltadas à cultura e ao entretenimento infantil; em um dado momento, a Fundação “Alfa” veicula uma atração intitulada “X” – obra intelectual coletiva (de natureza audiovisual) – que gera considerável sucesso junto ao público infantil. Instada por “Beta” – sociedade por quotas de responsabilidade limitada que tem por objeto, dentre outras atividades, a produção e distribuição de sandálias – a Fundação “Alfa” é convidada à celebração de contrato de licenciamento de direitos de propriedade intelectual (direitos patrimoniais de autor, direitos de imagem e direitos de propriedade industrial) para a produção de “Sandálias X” – a vigorar por um prazo de 03 (três) anos – contra o pagamento de uma contrapartida de Y% sobre a receita líquida obtida por “Beta” graças à comercialização dos produtos licenciados. Considerando-se que a Fundação “Alfa” dispõe de todos os instrumentos de cessão de direitos de imagem dos participantes da atração “X” (inclusive os direitos patrimoniais de autor sobre a obra intelectual referida), sua exigência é apenas e tão somente a de que, ao final do contrato, “Beta” esteja proibida de utilizar a marca “X” – abrindo-se, assim, a possibilidade de celebração de novo contrato de licenciamento com terceiro. Pergunta-se: a Fundação “Alfa” pode celebrar o contrato de licenciamento da marca “X”, a fim de que venha a ser utilizada por “Beta” para a produção das “Sandálias X”? Como seria possível atender às necessidades da Fundação “Alfa”, tendo-se em conta a peculiar rigidez de seu objeto (consoante o disposto nos arts. 62 e seguintes do Código Civil)fi

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    e) Caio pretende viajar durante um intervalo expressivo. Homem pacato, acaba sendo supreendido na véspera de seu embarque por uma citação promo-vida por certo adversário processual. Não conhecendo nenhum advogado a quem possam ser outorgados os poderes inerentes à cláusula “ad judicia”, os confere a Tício, torneiro mecânico com quem mantém estreito contato desde tenra idade. Pergunta-se: é válida a outorga de poderes de representação, inerentes à cláusula “ad judicia”, a quem não é habilitado ao exercício da advocaciafi

    Ora, a resposta a cada um dos problemas referidos somente pode ser obtida após uma análise, mesmo que ligeira, de algumas disposições concernentes a cada uma das cinco seções em que se subdivide a disciplina do contrato de mandato (constante dos arts. 653 a 692 do Código Civil). No entanto, antes de mais nada, parece-nos conveniente tecer duas ou três considerações a respeito: da dissociação entre o contrato de mandato e o negócio jurídico de outorga de poderes representativos (procuração); da “causa-função” do contrato de mandato (papel desempenhado pelo arcabouço normativo escorçado pelo legislador); e dos contornos do negócio jurídico de outorga de poderes de representação (procuração). Passemos, de imediato, a essas questões de natureza preliminar.

1. Primeiro pressuposto da análise: a necessária dissociação entre o contrato de mandato e o negócio jurídico unilateral de outorga de poderes de representação (procuração)

O art. 653 do Código Civil vigente é o melhor exemplo da falta de técnica que permeou a construção do regime jurídico do contrato de mandato, no âmbito da atual codificação civil. Não que o texto do art. 1288 do Código Civil de 1916 fosse diferente. Bem ao contrário. Ambos refietem um modelo “insatisfatório” que não resiste às indagações do estudante mais distraído.

De fato, a parte derradeira do dispositivo assinala que “a procuração é o instrumento do mandato”. Ora, se mandato é um tipo “contratual”, como justificar a ausência da assinatura do “mandatário” (rectius, “outorgado”) no instrumento de “procuração”? Explicações as mais excêntricas já foram expendidas por notáveis civilistas que – correndo o risco de comprometerem a sua própria reputação – sustentaram a existência

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de contrato, na hipótese, a despeito da ausência de uma declaração de vontade por parte do procurador1. Contudo, pergunta-se: estariam certos tais autoresfi

Em parte, sim. Pois, de fato, é desnecessária a assinatura do “outorgado” na “procuração”; exatamente porque não se trata de contrato, mas de negócio jurídico unilateral de outorga de poderes de representação. Ou seja: para que poderes de representação sejam outorgados...

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