Assédio moral organizacional: a gestão degradante como poluição do meio ambiente do trabalho

AutorPaulo Roberto Lemgruber Ebert
Páginas259-277

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Paulo Roberto Lemgruber Ebert *

Introdução

O incremento do processo de globalização econômica verificado nas últimas décadas, somado ao fortalecimento do ideário neoliberal e, nessa esteira, à expansão desenfreada da linguagem e da lógica dos “mercados” em direção à totalidade dos aspectos sociais, trouxeram como principal impacto para as relações laborais a redefinição das formas de organização do trabalho humano, com a consequente implementação de novos métodos destinados ao atendimento daquelas novas “necessidades mercadológicas.”

Tais métodos de gestão do trabalho baseados na lógica do mercado e justificados por sua suposta adequação ao dinamismo das cadeias produtivas no ambiente da economia globalizada têm por diretrizes nucleares a quantificação de todos os insumos relacionados à atividade laboral e a confusão entre as ideias de “eficiência” e “resultados numéricos”.

Nesse contexto, as empresas deixaram de ter por móvel propulsor de suas atividades o atendimento a certas finalidades sociais e econômicas (p. ex.: geração de empregos, desenvolvimento tecnológico, difusão de conhecimento, diversificação de portfolios de produtos e de serviços, etc.) e passaram a buscar freneticamente o atingimento de metas quantitativas e a sucessiva superação de tais indicadores. Os números, as metas, os targets, nesse contexto, tornaram-se o fim em si mesmo da iniciativa empresarial e o trabalho humano, por via de consequência, foi rebaixado à condição de mero meio para a consecução de tais objetivos quantofrênicos.1

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A “ditadura dos números”, a caracterizar a generalidade dos métodos de gestão laboral elucubrados nesse contexto, impôs a reformulação total da organização do trabalho, de modo a adequá-la às novas “necessidades mercadológicas” impostas pela economia globalizada e pelo ideário neoliberal. Nesse sentido, aspectos diversos entre si tais como a estruturação espacial dos locais de trabalho, a divisão das tarefas no âmbito do processo produtivo, a composição da remuneração, a fixação das jornadas, a utilização dos tempos livres, a avaliação do desempenho e até mesmo a nomenclatura daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho (alçados, agora, à condição de “colaboradores”), foram revistos no fito de atender à busca autorreferencial de metas, números e resultados.

Sob tal influxo, os métodos de gestão baseados na quantofrenia produtiva passaram a justificar a adoção, por parte dos gestores, de práticas abusivas e atentatórias aos direitos fundamentais dos trabalhadores desde que úteis ao engajamento destes últimos na obtenção das metas impostas pela empresa, assumindo-se o risco de ocasionar danos pessoais àqueles obreiros.

E a implantação de tais métodos de organização laboral vem gerando como resultado mais evidente o aumento exponencial do adoecimento psíquico — com reflexos físicos, em muitos casos — dos trabalhadores a eles submetidos. Tamanha é a difusão de tais efeitos dentre estes últimos, especialmente nesses primeiros anos do Século XXI, que já é possível considerar a gestão laboral calcada nessas premissas como um risco sistêmico de degradação do meio ambiente do trabalho (poluição labor-ambiental), a receber da doutrina especializada a apropriada denominação de “assédio moral organizacional”.2

Sob tal pano de fundo, o presente artigo buscará enquadrar a gestão laboral deletéria, conquanto espécie de assédio moral organizacional, no conceito de “poluição labor-ambiental”, de modo a submetê-la às diretrizes substantivas e instrumentais concernentes à tutela do meio ambiente do trabalho, a fim de conferir-lhe tratamento jurídico compatível com seu potencial lesivo e com sua natureza eminentemente transindividual.

A ideologia gerencialista do pós-fordismo como pano de fundo para o assédio moral organizacional

Para compreender de modo pleno o fenômeno do assédio moral organizacional é preciso ter em mente, antes de qualquer ilação, que o conceito em referência tem por pano de fundo a implementação e a difusão dos métodos pós-fordistas de organização laboral e de sua peculiar ideologia gerencialista, calcada na desconcentração produtiva, na horizontalização e na captura da subjetividade dos trabalhadores, em substituição ao paradigma fordista-taylorista sob o qual as clássicas relações de trabalho se desenvolveram ao longo dos Séculos XIX e XX.3

Se no paradigma fordista-taylorista os trabalhadores eram recrutados e alocados na linha de produção em função de sua especialização, sendo exigidos quantitativa e qualitativamente em estrita relação com as funções para as quais foram contratados, no paradigma pós-fordista são eles convocados a compartilhar dos objetivos empresariais, na medida em que se lhes exige conhecimento total do processo produtivo e, nessa senda, a assunção de uma miríade de novas

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tarefas, com o consequente comprometimento com a obtenção dos resultados quantitativos (as metas, os objetivos) impostos pelos empregadores.4

Nesse contexto, os obreiros assumem individualmente a responsabilidade pelos resultados dos setores a que se vinculam e pelas eventuais deficiências no desempenho de suas atividades, de modo que a empresa captura para si, em proveito próprio, por meio da utilização de discursos calcados na hipotética parceria entre os atores do processo produtivo, os desejos e os anseios pessoais de seus trabalhadores, agora alçados à condição de “colaboradores” nesse jogo de palavras destinado a descaracterizar a identidade coletiva daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho.5

No paradigma pós-fordista, cada indivíduo e cada área são vistos como centros autônomos e autogeridos de custos e de receitas, cuja continuidade na estrutura empresarial, no entanto, encontra-se constantemente ameaçada, na medida em que sua viabilidade será avaliada periodicamente em função da produtividade e da lucratividade. Nisso consiste, exatamente, o que Vincent de Gaulejac classifica como gestão gerencialista:

Sob uma aparência objetiva, operatória e pragmática, a gestão gerencialista é uma ideologia que traduz as atividades humanas em indicadores de desempenhos, e esses desempenhos em custos ou em benefícios. Indo buscar do lado das ciências exatas uma cientificidade que elas não puderam conquistar por si mesmas, as ciências da gestão servem, definitivamente, de suporte para o poder gerencialista. Elas legitimam um pensamento objetivista, utilitarista, funcionalista e positivista. Constroem uma representação do humano como um recurso a serviço da empresa, contribuindo, assim, para sua instrumentalização.

(...)

A gestão gerencialista é uma mistura não só de regras racionais, de prescrições precisas, de instrumentos de medida sofisticados, de técnicas de avaliação objetivas, mas também de regras irracionais, de prescrições irrealistas, de painéis de bordo inaplicáveis e de julgamentos arbitrários. Por trás da racionalidade fria e ‘objetiva’ dos números, dissimula-se um projeto ‘quantofrênico’ (a obsessão do número) que faz os homens perderem o senso da medida.

(...)

Se o poder disciplinar, analisado por Michel Focault (1975), tinha como função tornar os corpos ‘úteis, dóceis e produtivos’, o poder gerencialista mobiliza a psique sobre objetivos de produção. Ele põe em ação um conjunto de técnicas que captam os desejos e as angústias para pô-los a serviço da empresa. Ele transforma a energia libidinal em força de trabalho. Ele encerra os indivíduos em um sistema paradoxal que os leva a uma submissão livremente consentida.

(...)

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O poder gerencialista não funciona como uma ‘maquinaria’ que submete indivíduos a uma vigilância constante, mas como um sistema de solicitação que suscita um comportamento reativo, flexível, adaptável, capaz de pôr em prática o projeto da empresa. Projeto que pode evoluir no tempo, em função do contexto, das flutuações do mercado, das descobertas tecnológicas, das estratégias de concorrência, mas cuja finalidade número um permanece a rentabilidade. (...) Cada serviço é um centro de custo e um centro de lucro. O conjunto das atividades é avaliado em função de sua rentabilidade financeira.6

Ao incutir nos trabalhadores a crença de que são eles os responsáveis pelo êxito ou pelo fracasso na obtenção dos resultados de seus setores e, consequentemente, por sua própria permanência nos quadros da empresa, os métodos pós-fordistas de “gestão gerencialista” acabam por colonizar aspectos estritamente vinculados à esfera de intimidade dos indivíduos. Nessa sistemática perversa, os sentimentos, as aflições, as angústias e até mesmo os traumas e complexos pessoais dos obreiros são colocados à disposição dos gestores que optarem por utilizá-los como joguetes motivacionais com vistas ao alcance daquelas metas quantitativas.7

Com isto, a estrutura de produção pós-fordista escancara as portas para a elaboração e para a implementação de métodos de “gestão de pessoas” baseados na exploração consentida da intimidade e da personalidade dos trabalhadores, que podem ser mais ou menos sutis a depender da criatividade, da habilidade (e da perversidade) dos gestores. Quando tais práticas são assumidas ou toleradas institucionalmente pelas empresas, tem-se a materialização da figura do assédio moral organizacional.

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