Os atos processuais

AutorRafael Calmon
Páginas61-92
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OS ATOS PROCESSUAIS
Não é difícil perceber que o processo judicial civil – visto como método para a pres-
tação de jurisdição1-2 – precisa não só ser iniciado por alguma conduta praticada pelo
interessado (CPC, art. 2º; LJE, art. 14), mas ser obrigatoriamente composto por uma série
de atos no intervalo que medeia sua instauração e sua f‌inalização pelo órgão judiciário.
Porém, este é somente seu aspecto meramente extrínseco, visível. Ele não se
resume a essa sequência de atos. Em seu aspecto intrínseco, o processo estabelece,
simultaneamente, uma relação jurídica entre os sujeitos parciais e imparciais, da qual
emanam incontáveis situações jurídicas processuais inter-relacionadas, como direitos,
ônus, deveres, poderes e sujeições, todas voltadas a um propósito: permitir a prestação
de jurisdição.
Eis o procedimento.
1. Sobre a natureza jurídica do processo, é possível destacar-se pelo menos quatro concepções clássicas, já que as
teorias que o enxergavam como um contrato e como um quase contrato possuem valor mais histórico que jurídico
atualmente. São elas, as teorias que o classif‌icam: a) como uma relação jurídica de direito público distinta da
relação de direito que lhe subjaz, possuindo sujeitos, objeto e pressupostos distintos. Seu principal expoente foi
Oskar von Büllow, na conhecida obra “Teoria das exceções e dos pressupostos processuais”; b) como uma situação
jurídica, por entender que não se poderia falar na existência de relações jurídicas propriamente ditas entre os
sujeitos do processo, mas sim uma série de situações jurídicas geradoras de direitos, deveres, faculdades, poderes,
sujeições e ônus para as partes. Seu teórico mais inf‌luente foi James Goldschimidt, na célebre obra “Der Prozeß als
Rechtslage”, publicada em Berlim em 1925; c) como instituição jurídica, buscando a explicação para a natureza
jurídica do processo fora dos domínios da Ciência do Direito. Parte da premissa sociológica de que o processo
representa uma escolha do grupo social. Apesar de ter sido desenvolvida por Jaime Guasp na obra, encontrou
em Eduardo J. Couture um de seus principais defensores; d) como procedimento em contraditório, partindo da
concepção de que o procedimento seria o gênero do qual o processo seria uma espécie: a do procedimento em
contraditório. A noção de procedimento como mera sucessão ordenada de atos visando a atingir um resultado
era complementada com a de efetiva participação dos interessados. Seu principal expoente foi Elio Fazzalari, na
obra “Instituições de Direito Processual”.
2. Parece ser importante mencionar outras duas classif‌icações, que, enxergando o fenômeno a partir de perspectiva
diversa, classif‌icam o processo também de forma diversa. Na opinião de Fredie Didier Jr., se o processo for visto sob o
enfoque da Teoria da Norma Jurídica, poderá ser concebido como um método de produção de normas jurídicas pela
jurisdição, que, por isso, deve seguir o modelo traçado pela Constituição Federal. Sob essa concepção, o processo
poderia ser examinado a partir do plano da existência ou da ef‌icácia dos fatos jurídicos. De acordo com o primeiro,
seria enxergado como uma espécie de ato jurídico (ato jurídico complexo de formação sucessiva), pois formado
por um conjunto de atos processuais relacionados entre si que se sucedem no tempo. De acordo com o segundo,
processo seria o conjunto (feixe) das relações jurídicas que se estabeleceriam entre os diversos sujeitos processuais
(O juízo de admissibilidade na Teoria Geral do Direito. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP – UERJ. v.
VI. Disponível em: www.e-publicacoes.uerj.br). Já para Paula Costa e Silva, o processo é uma realidade dinâmica,
e, por isso, não poderia ser considerado como uma situação jurídica (que, por ser um “estar”, é estática) nem como
uma relação jurídica (que mesmo sendo um “estar para”, continua sendo estática). Ele seria considerado um fato
jurídico pertencente à categoria dos atos-procedimento (Acto e processo: o dogma da irrelevância da vontade na
interpretação e nos vícios do acto postulativo. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 88-94 e 98-123).
PEDIDOS IMPLÍCITOS • RAFAEL CALMON
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De acordo com uma das mais clássicas lições doutrinárias sobre o tema, o processo
se apresenta, em sua conf‌iguração externa, como a “série de atos coordenados regulados
pelo direito processual, através dos quais se leva a cabo o exercício da jurisdição”.3 Já em
sua compleição interna, possui um conteúdo: a relação jurídica processual, que seria
justamente a responsável por manter a coesão entre todos esses atos.
Semelhante entendimento parece ser adotado em boa parte do estrangeiro.4
Daí se poder af‌irmar que, enquanto processo é instrumento, método, o proce-
dimento constitui o meio extrínseco pelo qual ele é instaurado e desenvolvido. Sua
manifestação fenomenológica, portanto.5
Como a jurisdição é inerte, a instauração do processo depende, em regra, da pro-
vocação de algum interessado.6 Não obstante, depois de ter início, pode se desenvolver
por impulso do próprio órgão judicial (CPC, art. 2º).
Conforme se verá oportunamente, é o pedido o ato responsável pela provocação da
jurisdição estatal. Convivendo com ele, os diversos atos que dão relação de continuidade
ao processo são chamados de “atos processuais”.
Contudo, a compreensão exata do fenômeno é tão importante, que parece melhor
ser aberto um parêntese para que possam ser relembradas noções elementares da Teo-
ria Geral da Ciência do Direito. Af‌inal, Pontes de Miranda7 já advertia que “nada mais
reprovável, em método, começar-se a falar dos direitos, das pretensões, das ações e das
exceções, antes de se falar da regra jurídica, do suporte fático, da incidência da regra
jurídica, da entrada do suporte fático no mundo jurídico (fato jurídico)”.
3. CALAMANDREI, Piero. Estudios sobre el Proceso Civil. Buenos Aires: Editorial Bibliograf‌ia Argentina, 1945, p. 287.
4. Na percepção de Jaime Guasp, processo é “una serie o sucesión de actos que tienden a la actuación de una pretensión
fundada mediante la intervención de órganos del Estado instituidos especialmente para ello”. (Concepto y Metodo
de Derecho Procesal. Madrid: Civitas, 1997, p. 8). Já para Eduardo J. Couture seria a “secuencia o serie de actos que
se desenvuelven progresivamente con el objeto de resolver, mediante un juicio de autoridad, el conf‌licto sometido
a su decisión”. (Fundamentos del Derecho Procesal Civil. 3. ed. Buenos Aires: Depalma, 1973, p. 121). Em Piero
Calamandrei, é possível encontrar que processo conformaria “una serie de actividades tendientes a la obtención
de la decisión jurisdiccional”. (La Casación Civil. t. II, Buenos Aires: Editorial Bibliográf‌ica Argentina, 1961, p.
42). Por sua vez, Andrés de La Oliva Santos, Ignacio Díez-Picazo Giménez e Jaime Vegas Torres entendem que
“Proceso es uma serie o sucesión juridicamente regulada de actos (del órgano jurisdicional, de sujetos jurídicos
particulares o de otros órganos del Estado, que no sean jurisdiccionales) tendentes a la aplicación o realización
del Derecho em um caso concreto”. (Curso de Derecho Procesal Civil. v. I. Parte General. 2. ed. Madri: Editorial
Centro de Estudios Ramón Areces S.A., 2013, p. 184). No Chile, Juan Colombo Cambpell ensina que “el proceso
jurisdiccional se def‌ine generalmente como un conjunto de actos jurídicos vinculados por la relación procesal,
guiados por un procedimiento y destinado a resolver, por medio de una sentencia, un conf‌licto de intereses de
relevancia jurídica con efecto de cosa juzgada”. (Los Actos Procesales. T. I. Santiago: Editorial Jurídica de Chile,
1997, p. 16). Em Portugal, contudo, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre escrevem que, “à relação jurídica que
o processo constitui dá-se o nome de instância e ao esquema dos atos que constituem a sua tramitação necessária,
def‌inida pela lei (arts. 546 e 548 e ss.) ou adaptado pelo juiz (art. 546), dá-se o nome de forma do processo”.
(Código de Processo Civil anotado. v. 1º. Arts. 1.º ao 361.º. 4 ed. Coimbra: Almedina, 2018, p. 276).
5. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: teoria geral do processo. v. 1.
e-book tirado a partir da 7. ed. impressa. São Paulo: Saraiva, 2017, sem paginação.
6. O novo CPC não mais permite a abertura do inventário judicial de ofício, como fazia o diploma antecedente
(CPC/73, art. 989), embora autorize que o juiz instaure a efetivação de sentença que imponha prestação de fazer,
não fazer ou dar coisa distinta de dinheiro (CPC/15, art. 536 e 538), assim como que dê início a determinados
incidentes processuais, como o de Resolução de Demandas Repetitivas (CPC/15, arts. 976/977), o de arguição
de inconstitucionalidade (CPC, art. 948) e o conf‌lito de competência (CPC, art. 951).
7. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. T. V. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 1983, p 226.
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1 • OS ATOS PROCESSUAIS
Vale ser feita apenas a advertência de que não se tem qualquer pretensão de esgotar
toda a problemática relacionada ao tema, até porque a importância jurídica de cada item
a ser estudado comportaria o desenvolvimento de pesquisa própria. O objetivo aqui é
meramente relembrar lições básicas sobre a própria estrutura da norma jurídica, dos
enunciados normativos e suas proposições jurídicas, das relações e situações jurídicas
antes que o estudo dos atos processuais possa ser continuado.
Este é o propósito do tópico seguinte.
1.1 OS ATOS JURÍDICOS NA TEORIA DA NORMA JURÍDICA E DOS FATOS
JURÍDICOS
1.1.1 Noções element ares sobre incidência, estrutura e função das normas
jurídicas
Def‌initivamente, não se pode af‌irmar que exista um conceito de norma jurídica, o
que decorre mesmo da ambiguidade e vagueza de que se reveste a locução. Etimologica-
mente, contudo, o vocábulo “norma” signif‌ica esquadro, régua, exprimindo a “diretriz
de um comportamento socialmente estabelecido”,8 o que serve, de certa forma, como
referencial para o estudo de suas características.
Na literatura, entretanto, parece existir uma opinião mais ou menos harmônica a
seu respeito. Após transcrever a opinião de diversos juristas, Orlando de Almeida Secco,
por exemplo, def‌ine normas jurídicas como “as regras imperativas pelas quais o Direito
se manifesta, e que estabelecem as maneiras de agir ou de organizar, impostas coerci-
tivamente aos indivíduos, destinando-se ao estabelecimento da harmonia, da ordem e
da segurança da sociedade humana.”9 Por sua vez, Marcos Bernardes de Mello as têm
por uma “proposição através da qual se estabelece que, ocorrendo determinado fato ou
conjunto de fatos (=suporte fáctico) a ele devem ser atribuídas certas consequências no
plano do relacionamento intersubjetivo (=efeitos jurídicos).”10
Encarregado de um estudo minucioso acerca do fenômeno sob enfoque, Paulo de
Barros Carvalho alerta sobre a possibilidade de o conceito de norma jurídica poder ser
apreendido em duas acepções diversas. De acordo com sua lição, o vocábulo norma ju-
rídica em sentido amplo poderia ser empregado para designar todo e qualquer texto do
sistema do direito positivo, como as leis, os decretos, medidas provisórias etc., ao passo
que norma jurídica em sentido estrito deveria ser utilizado para fazer alusão apenas às
signif‌icações advindas desses textos, proporcionadas pela interpretação do hermeneuta.
Em suas palavras:
a norma jurídica é a signicação que obtemos a partir da leitura dos textos do direito positivo. Trata-se
de algo que se produz em nossa mente, como resultado da percepção do mundo exterior, captado pelos
8. SLAIBI FILHO, Nagib. Sentença Cível: fundamentos e técnica. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 28.
9. SECCO, Orlando de Almeida. Introdução ao estudo do direito. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 57-59.
10. MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 20.

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